COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA
SANTÍSSIMA TRINDADE – 27.05.2018
Caros Leitores,
Celebramos hoje a festa litúrgica da
Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do tempo pascal.
A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum até
a festa de Cristo Rei, quando se encerra o ano litúrgico. O dogma da
Santíssima Trindade ocupa o ponto central de toda a fé cristã,
ponto de convergência de todas as demais verdades teologais. Por
isso, esta solenidade se coloca no ponto final da catequese litúrgica
anual, que tem início no advento, prossegue com a
paixão-ressurreição, depois, ascensão e pentecostes, todos esses
eventos anteriores fazem a corrente preparatória para o desfecho na
celebração da Trindade.
Nos tempos atuais, existe uma
resistência às verdades dogmáticas, isto é, aquelas que nunca
mudam. Então, chamemos de “o grande mistério do cristianismo”,
pois não há similar em nenhuma outra religião, a Divindade que é,
ao mesmo tempo, una e trina. Algumas religiões antigas (Egito,
Índia) apresentam trilogias de deuses, mas em nenhuma delas existe a
trindade-unidade, a divindade ao mesmo tempo trina e una, essa figura
só existe no cristianismo. E lembrando-nos de que a palavra mistério
significa “revelação”, um conhecimento que não seria alcançado
apenas com os recursos da razão humana e que só é possível de
obter se alguém revelar. Pois esta verdade da nossa fé somente veio
a ser conhecida através da revelação de Cristo, quando ele por
várias vezes explicou aos discípulos que Ele e o Pai são um só e
que, depois dele, virá o Paráclito, o consolador, o mentor que vem
confirmar e esclarecer todas as verdades ensinadas, para que não
pairem dúvidas sobre elas. Através do Espírito, Jesus prometeu
permanecer conosco todos os dias, até o fim do mundo. (Mt 28, 20).
Na antiga Torah dos hebreus, não existia ainda a Trindade, pois não
havia sido revelada.
Na primeira leitura deste domingo,
retirada do livro do Deuteronômio (4, 32-40), lemos o discurso de
Moisés ao povo hebreu, ensinando: “ grava-o
em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá
embaixo na terra, e que não há outro além dele.”
(Dt 4, 39) Moisés e os patriarcas do Antigo Testamento não
conheceram a Trindade. Para eles, havia somente Javeh, que fez com
eles uma aliança e se mostrou fiel sempre com grandes sinais e
prodígios. Mas Javeh, esse Deus onipotente, cujo nome os hebreus não
pronunciavam com receio de invocá-lo em vão e provocar a sua ira,
tinha a voz igual ao trovão e era ciumento e vingativo com os
deslizes do seu povo. O Senhor dos exércitos (em hebraico
transliterado para o latim: Deus sabaoth, como antigamente se cantava
no Sanctus), era terrível e mais poderoso do que uma tropa treinada
para o combate, implacável, invencível e inevitável, essa era a
imagem que dele tinham os hebreus. Então, veio Jesus e disse: vocês
estão enganados, vocês estão transferindo para Deus a imagem dos
seus reis insensíveis e prepotentes. O Pai não é assim, o Pai é
amor. Isso foi uma reviravolta tão enorme e inesperada na crença
dos hebreus, que eles nunca conseguiram assimilar e compreender.
Jesus desenhou para eles uma imagem de Deus totalmente diferente
daquela da tradição hebraica, os hebreus não conseguiram absorver
tamanho choque de ideias e não acreditaram. Viram e não creram.
A primeira manifestação da Trindade,
de acordo com a Escritura, ocorreu no batismo de Jesus no Jordão,
quando ouviu-se a voz do Pai e o Espírito Santo se tornou visível
em forma de pomba. Evidentemente, naquela hora, ninguém entendeu do
que se tratava. Foi no dia a dia da sua vida de pregador que Cristo
aos poucos foi ensinando aos apóstolos esta novidade. Essa foi a
lição mais difícil de todas que Jesus ensinou a eles, não lhes
entrava na cabeça pouco afeita a raciocínios profundos. Somente
Paulo, com a sua cultura filosófica grega, foi capaz de melhor
compreender essa doutrina e explicá-la nas suas cartas. Na segunda
leitura de hoje, lemos a explicação que Paulo fez aos cristãos de
Roma (Rm 8, 14-17): “Todos
aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de
Deus. … E,
se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e
co-herdeiros de Cristo.”
E na primeira carta aos cristãos de Corinto, ele dá essa mesma
lição, com outras palavras (1Cor 12, 3): “Portanto,
vos quero fazer compreender que ninguém que fala pelo Espírito de
Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus é o
Senhor, senão pelo Espírito Santo.” Com palavras
simples e excelente didática, Paulo foi aos poucos transmitindo aos
cristãos das diversas comunidades essa verdade fundamental, que
chegou até ele por revelação de Cristo, na sua conversão,
diretamente com certeza, pois os outros apóstolos não saberiam
repassar-lhe tão elevado conhecimento. E as cartas de Paulo foram
fundamentais para a formulação da verdade teológica da Trindade,
ainda nos primeiros séculos do cristianismo, época em que havia
muitas divergências e falsos entendimentos doutrinários.
O esclarecimento da doutrina da
Trindade se deu na discussão sobre o arianismo, no século IV d.C.
Destacou-se nesta luta o Bispo de Alexandria, Santo Atanásio,
considerado o autor de um poema-declaração de fé, no qual elenca
as principais verdades do cristianismo, proclamando contra Ario e
seus seguidores a identidade divina das três pessoas trinitárias.
Seu ensinamento consistente e bem definido serviu de fundamento para
a elaboração do “símbolo dos Apóstolos”, o Credo, que ainda
hoje é recitado nas missas, e que foi oficialmente aprovado no
Concílio de Niceia, em 325 d.C. O Pai criou todas as coisas, mas o
Filho não foi criado e sim gerado. Essa distinção conceitual é
importante porque indica que há uma diferença entre as coisas
criadas (que não são iguais ao criador) e o Filho gerado, que é
igual ao Pai. E o Espírito procede do Pai e do Filho, sendo também
igual a ambos, e foi Ele quem falou pelos profetas, mesmo que esses
não soubessem disso e mesmo que o povo hebreu nunca tenha percebido
isso. As formulações precisas e coerentes de Santo Atanásio fazem
dele uma figura venerável em todas as tradições cristãs ortodoxas
e romana, sendo ele considerado o pai da ortodoxia.
Então, nós tomamos conhecimento desse
mistério trinitário pela pregação de Cristo. A revelação disso
é uma liberalidade de Deus ao ter aberto seu cofre de segredos para
nós, através dos ensinamentos de Cristo. E a compreensão dessa
verdade só se tornou possível por meio da ação do Espírito, que
inspira a Igreja e que habita em nós, que o recebemos pela
transmissão outorgada aos apóstolos por Cristo. No evangelho de
Mateus, lido hoje (28, 16-20), lemos a última
recomendação-determinação de Jesus, antes de retornar
definitivamente para o seio do Pai: “'Toda
a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e
fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que
vos ordenei!” Foi
na sequência desse mandato que a fé cristã chegou até nós, que
agora podemos estar refletindo e acreditando nesses sábios
ensinamentos. No início da vida pública de Jesus, ao ser batizado
no Jordão, revelou-se pela primeira vez a Trindade divina. E agora,
na sua despedida, ele novamente faz presente a Trindade, através da
ordem batismal em nome das três pessoas divinas. A Trindade
percorre, desse modo, toda a missão salvífica de Cristo, formando a
linha mestra de toda sua catequese, e é por isso que a verdade de fé
da Trindade Santa é a verdade central e fundamental do cristianismo.
Meus amigos, reflitamos: um Deus em
três pessoas, sendo cada pessoa um Deus inteiro, mas sem perder a
unidade. Na nossa experiência corporal, jamais essa realidade
poderia ser alcançada somente com as nossas potências racionais. Os
discípulos só entenderam isso depois de Pentecostes, quando o
Espírito veio confirmar todos os ensinamentos de Cristo e os
transformou em doutores. O apóstolo Paulo começou a desvendar esse
mistério nas suas cartas, ao passo que a necessidade catequética
exigia dele a busca de palavras adequadas para explicá-la de forma
simples. A teologia somente veio a consolidar essa verdade muitos
anos mais tarde, no Concílio de Niceia. Atualmente, os teólogos
simplificam a exposição dessa doutrina, dizendo que a Palavra
(Verbo) de Deus é tão poderosa que se transforma em outra pessoa
divina. E o amor do Pai pelo Verbo é tão enorme que se torna outra
pessoa divina, o Paráclito (assistente, advogado). Três pessoas,
mas um só Deus.
Tenhamos sempre em mente essa verdade
ao nos persignarmos, para que esse não seja apenas um ato mecânico
e automático, mas uma demonstração da fé de que a Santíssima
Trindade está presente em nós.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário