COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO
COMUM – PALAVRA DA VIDA – 26.08.2018
Caros Leitores,
As leituras litúrgicas deste 21º
domingo comum nos convidam a refletir sobre a nossa vivência de
fidelidade ao evangelho. Josué, ainda no deserto, reuniu o povo, que
teimava em adorar as divindades pagãs, e lhes dá um ultimato:
escolham a qual Deus ireis servir, pois somente os adoradores de
Javeh terão acesso à terra da promessa. E Jesus, tempos depois,
coloca também para os discípulos o mesmo desafio, quando eles
reclamam que a palavra dele é muito dura: o que foi? isso vos
escandaliza? Pois procurem outro rumo, só quero comigo, quem tiver
coragem de ser assim. E foi então que Pedro respondeu pelos demais:
calma, Mestre, só tu tens palavra da vida.
Na primeira leitura, do livro de Josué
(cap. 24), ele, como sucessor de Moisés na condução do povo hebreu
à terra prometida, verificando a contínua presença da idolatria
entre os israelitas, convoca todos para uma grande assembléia e lhes
põe a questão: a qual Deus ou deuses vocês irão adorar? “Se
vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir:
se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos
deuses dos amorreus, em cuja terra habitais.”
Os amorreus eram o povo que habitava a terra de Canaã, quando o povo
de Israel ali chegou, depois da marcha de quarenta anos pelo deserto.
Essas tribos eram descendentes de Caim e, portanto, tinham parentesco
de sangue, embora longínquo, com o povo de Israel, mas já não
tinham fidelidade a Javeh e adoravam seus próprios ídolos. Por
isso, Josué fez a pergunta e completou: “Quanto
a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor”.
Em resposta, o povo jurou mais uma vez fidelidade a Javeh: “nós
também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus.”
A convocação de Josué tinha então o caráter de opção
definitiva, isto é, estavam chegando ao destino final de sua
peregrinação, ali iriam se estabelecer e assim quem permanecesse
fiel à promessa receberia a recompensa, quem desistisse, arcaria com
as consequências da sua opção pelos ídolos. O povo então renovou
a promessa a Javeh.
Uma situação análoga é vivenciada
por Cristo diante dos seus discípulos, logo após o milagre da
multiplicação dos pães, nas proximidades de Cafarnaum. Para melhor
compreensão do discurso de Cristo na leitura de hoje, precisamos ler
as frases anteriores, no evangelho de João. No dia anterior, Jesus
havia feito aquele extraordinário milagre da multiplicação dos
pães. No dia seguinte, uma multidão se apresentou para ouvir Jesus.
Notando aquele invulgar incremento dos seus ouvintes, Jesus ficou
curioso e perguntou: “viestes à minha procura para me ouvir ou
para comer novamente aquele pãozinho? Porque eu sou o verdadeiro pão
do céu.” Então, eles pediram a Jesus um sinal, para que
acreditassem n'Ele, assim como Moisés havia dado aos seus ancestrais
o maná do deserto. Foi quando Jesus explicou: não foi Moisés quem
deu a eles aquele pão, mas o meu Pai. E agora, ele me mandou, eu sou
o pão vivo que ele mandou para vós. Os vossos pais comeram o maná
no deserto e morreram, mas quem comer deste Pão não morrerá. O pão
que Eu vos darei é a minha carne para a vida do mundo. O povo não
entendeu, pois muitos achavam que Jesus estava ali para liderar uma
revolta, para expulsar os romanos da Palestina, e ficaram balançando
a cabeça, murmurando que Jesus devia estar louco. Como é que alguém
pode dar a sua carne para outros comerem? Sabendo o que eles
pensavam, Jesus completou: Em verdade vos digo, quem não comer a
minha carne e beber o meu sangue não terá a vida. Isso agora foi
demais. Muitos dos que o ouviram isso ficaram decepcionados,
balançaram a cabeça, deram meia volta e começaram a se retirar.
Nesta situação embaraçosa, os
discípulos ficaram preocupados se Jesus estava mesmo certo do que
falava e disseram: este teu discurso é muito “duro”, quem será
capaz de ouvi-lo? A palavra grega que foi traduzida por “duro” é
“sklirós”, que tem o sentido de algo áspero, rígido,
inflexível. É como se dissessem: a tua palavra causa um choque na
gente, como é que alguém pode dar seu corpo para os outros comerem?
Isso é impossível. Ao que Jesus respondeu: ah, isso vos
escandaliza? Pois outras coisas mais duras haverão de acontecer. E
vendo que alguns dos ouvintes começaram a dispersar-se, Jesus
intimidou os seus doze escolhidos: vocês também querem ir embora?
Eu sei que alguns dentre vocês não acreditam nisso. Foi quando
Pedro, inspirado, acalmou a situação: calma, Senhor, não é isso,
a quem iremos? Só tu tens palavra da vida eterna. Nesse diálogo,
João evangelista deixa transparecer duas situações ocultas.
Primeiro, Jesus sabia que muitos o procuravam com a esperança de que
ele fosse um Messias político, guerreiro, e Ele quis deixar claro
que sua missão era outra, o seu reino era de outra natureza.
Segundo, ele sabia que mesmo entre os doze havia alguns inseguros e
até reticentes.
Observamos uma clara analogia nesse
diálogo de Jesus e seus discípulos com a situação vivenciada por
Josué e o povo hebreu: resolvam agora, pegar ou largar. Jesus
colocou para os discípulos a mesma opção que Josué colocou para o
povo de Israel. E tal como no caso dos israelitas, que optaram por
Javeh, também os doze renovaram sua opção pela missão de Cristo,
cumpridor da vontade do Pai. Inclusive Judas, que resolveu ficar até
a última hora, para ver o rumo que as coisas tomariam
posteriormente. João diz textualmente no versículo 71 deste
capítulo 6, que Jesus fez essa pergunta assim bem direta
referindo-se a Judas. Mas não apenas ele. Além de Judas, Jesus
sabia que havia outros discípulos fracos na fé, Ele sabia os que
criam de fato e os que tinham dúvidas. Foi por isso que, após a
ressurreição, Jesus passou ainda 'quarenta dias' na sua catequese
final com os discípulos, preparando a vinda do Paráclito. Mesmo
depois de ter concluído sua missão encarnada e ter-se imolado na
cruz, Jesus continuou a preparar os discípulos para a sua missão
futura, pois Ele sabia o material humano de que dispunha e sabia que,
sem essa catequese residual, havia grande risco de dispersão, tal
como acontecera com aqueles que, no relato de João, debandaram
diante do seu duro discurso.
Na segunda leitura, da carta de Paulo
aos Efésios (5, 21-32), o Apóstolo aconselha os casais cristãos a
se comportarem com dignidade, respeitando-se mutuamente, amando-se
reciprocamente, assim como Cristo ama a sua Igreja. Daqui Paulo
evolui para a sua doutrina do corpo místico de Cristo. A linguagem
paulina não é mais aplicável aos tempos atuais, na relação entre
maridos e esposas, porque reflete a situação social da época em
que ele viveu, por isso não pode ser interpretada em sentido
literal. Paulo diz que as mulheres devem “ser submissas” aos
maridos, porque o marido é a cabeça da mulher. Assim era a
compreensão da união conjugal na cultura grego-romana, que se
transferiu para o direito civil e perdurou até as últimas décadas.
Porém, pelo menos dos anos oitenta para cá, no Brasil, deixou de
ser aceita tanto no campo social quanto no campo jurídico essa ideia
da submissão. Esse ponto de vista ainda se observa residualmente na
cultura machista que marca a nossa tradição e é defendida pelos
tradicionalistas. Por essa razão é que muitas pessoas não cristãs
dizem que a Bíblia está cheia de erros e, por não terem interesse
de compreender o verdadeiro significado do livro sagrado, preferem
desdenhar dele. Mas é também por isso que nós, crentes em Cristo,
não podemos ler e aplicar os textos bíblicos de modo
fundamentalista, literal, mas precisamos dar a interpretação
adequada à mensagem ali contida. No caso, a mensagem é a do amor
conjugal, como se encontra sintetizada na conclusão de Paulo: “Por
isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e
os dois serão uma só carne. Este mistério é grande, e eu o
interpreto em relação a Cristo e à Igreja.
” (Ef 5, 31-32) Na época em que Paulo viveu, o amor entre os
cônjuges era entendido como a submissão da esposa ao marido, porque
as mulheres daquele tempo não estudavam, viviam apenas para o lar,
não tinham conhecimentos outros do mundo social e profissional, eram
como crianças grandes. Por isso, elas precisavam ser tuteladas pelos
maridos. Assim era na Grécia e em Roma, as mulheres nunca alcançavam
a plena maioridade, elas deviam estar sempre sob a tutela de um
homem, mesmo que elas fossem mais idosas do que este (por exemplo, um
filho, um sobrinho, até um neto). As mulheres não tinham condições
de governar-se, de administrar a própria vida de modo independente.
Então, na mensagem de Paulo que deve ser trazida para os tempos
atuais, em que as mulheres se encontram em posição de igualdade com
os homens, deve prevalecer a idéia do amor mútuo, do respeito
recíproco, da solicitude, da tolerância, da ajuda, da caridade
plena, que se encontra simbolizada no conceito do amor-ágape, o
amor-comunhão. Ao ler o texto paulino, devemos mentalmente fazer a
transposição adequada dos conceitos, para que possamos compreender
o recado que ele quer nos transmitir.
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