COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – SERVIR A DOIS
SENHORES – 22.09.2019
Caros Confrades:
As leituras litúrgicas
deste 25º domingo comum colocam para a nossa reflexão um tema
político muito atual que, nos últimos anos, tem movimentado a
sociedade brasileira mais do que em outros tempos: a honestidade dos
dirigentes públicos, em todas as esferas do poder estatal. Isso
ocorre não apenas no Brasil, mas é uma consequência da tecnologia
de comunicação global, através da qual os cidadãos de todo o
mundo discutem e exigem a probidade dos seus representantes nas casas
legislativas. A liturgia deste domingo põe em destaque um tipo
censurável de conduta que, embora lamentável, é bastante frequente
nos homens e mulheres ligados à administração pública:
aproveitar-se do mandato eletivo para promover a locupletação
própria. Daí a advertência de Jesus: ninguém poderá servir de
modo digno a dois interesses – o público e o privado.
Na primeira leitura,
retirada do livro do Profeta Amós (Am 8, 4-7), o discurso do profeta
até parece que se refere ao estereótipo do “político
profissional” dos nossos dias, mais interessados em esfolar os
concorrentes e enganar os eleitores, em proveito próprio. Tudo vale
para conseguir maior número de sufrágios, até mesmo eliminar o
adversário moralmente ou até fisicamente. No tempo do profeta Amós,
ainda não havia os modelos políticos do capitalismo nem do
comunismo, nem a economia de mercado nem a globalização, mas um
sistema social arcaico, baseado na teocracia, e um sistema econômico
também arcaico, fundado em grande parte na prática do escambo. Mas
lamentavelmente as práticas de corrupção e de engodo da população
já existiam, assim como as práticas comerciais escusas de fraudar
balanças, diminuir medidas, inflacionar o preço para conseguir
lucrar sempre mais. Portanto, desde os tempos do Profeta Amós, cerca
de 800 anos antes de Cristo, a cobiça dos governantes e dos
comerciantes já era alvo de reprovação pelos arautos de Javeh.
Isso mesmo continuou a ocorrer nos séculos seguintes, dominados pela
tradição romanista e depois pelo mercantilismo, que se instalou a
partir do Renascimento. As mesmas práticas reprováveis de certos
líderes sociais, que frequentemente são noticiadas nos dias de
hoje, já ocorriam naqueles tempos. No livro de Amós, o profeta
condena a injustiça social e a exploração gananciosa dos mais
humildes. Fazendo-se as contas, podemos avaliar há quanto tempo esse
tipo de prática vem sendo condenada e apesar disso nunca deixou de
ser vergonhosamente replicada.
Na segunda leitura,
retirada da carta de Paulo a Timóteo (1Tim 2, 1-8), o Apóstolo
exorta à comunidade para que reze pelos administradores, pelos
governantes, pelos que ocupam altos cargos, pois Deus quer que todos
sejam salvos. Verifica-se, nas entrelinhas das palavras de Paulo, que
os administradores públicos eram tidos por pessoas inescrupulosas,
cuja ação não era agradável a Deus, daí porque era necessário
orar por eles, para que cheguem ao conhecimento da verdade e sejam
salvos. A preocupação de Paulo com os dirigentes da comunidade se
faz sentir na necessidade de que os cristãos que ocupam cargos
elevados devem dar exemplo aos não cristãos, para que a sua virtude
seja imitada por estes. E para que isso aconteça, é importante a
oração da comunidade em seu apoio. Naquela antiga oração que
rezávamos após a bênção do Santíssimo Sacramento, havia um
trecho que dizia assim, depois de orar pelo Papa, pelos Bispos, pelos
administradores eclesiásticos: “rezemos por todas as pessoas
constituídas em dignidade, para que governem com justiça”. E os
vários documentos expedidos pelo Magistério da Igreja ao longo dos
últimos séculos, desde o Papa Leão XIII, com a encíclica Rerum
Novarum, tem dado continuidade a essa missão iniciada por Paulo no
sentido de orientar os governantes no caminho da verdadeira justiça
social. O Papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio (1967)
escreveu uma frase emblemática sobre a situação econômica na
metade do século XX: o desenvolvimento é o novo nome da paz. A
situação das nações em relação ao desenvolvimento de cada uma é
o mecanismo de equilíbrio para a manutenção da paz mundial. De um
modo indireto, isso quer dizer que a consciência dos administradores
públicos, sobretudo dos países mais ricos, será determinante para
que todas as nações vivam em paz. E podemos ver diariamente isso,
na prática, e constatar o quanto o Papa estava com a razão. As
guerras que eclodem em diversas partes do mundo são o contraponto
para comprovar a validade dessa doutrina.
No evangelho de Lucas,
lemos hoje a conhecida parábola do administrador infiel. Esta
parábola contém um forte paradoxo, destacando a pedagogia do
contraditório, pois ao mesmo tempo em que Cristo elogia o
comportamento do administrador inescrupuloso, Ele está querendo nos
dizer: não façam assim. No tempo de Cristo, a parábola se dirigia,
como na maioria das vezes, aos fariseus e aos chefes do povo, que
agiam de forma perdulária e opressora, transformando a religião
judaica num emaranhado de regras e proibições, em que a prática
exterior da religião era mais valorizada do que a intencionalidade
do crente. No evangelho de Mateus (cap 23), Cristo faz essa mesma
advertência com outras palavras, dizendo que os fariseus atam
pesadas cargas e as colocam nos ombros do povo, enquanto eles mesmos
não ajudam nem com o dedo para aliviar o peso. Noutro contexto,
vemos repetida aí a mesma reprovação feita pelo Profeta Amós
contra os administradores do tempo dele. E podemos encontrar
semelhante atitude de reprovação no episódio em que Jesus expulsa
do templo aqueles que vendiam rolinhas e carneiros para o sacrifício,
chicoteando-os e quebrando suas bancas. “Ninguém
pode servir a dois senhores. Porque
ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o
outro.
Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, diz o evangelista
Lucas (16, 13).
Apesar dessa atitude de
reprovação, Jesus utiliza o argumento do raciocínio inverso para
elogiar o mau administrador, destacando a sua criatividade e
inteligência: os filhos das trevas são mais hábeis nos seus
negócios do que os filhos da luz (Lc 16, 8). E diz mais: usai o
dinheiro injusto para fazer o bem... pois se não fordes fiéis no
uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? (Lc 16,
9-11). Jesus está contrapondo as coisas da terra (dinheiro injusto)
com as coisas do céu (verdadeiro bem). Aquele que possui bens
materiais e/ou desfruta de poder social tem em mãos um 'dinheiro
injusto', porque toda acumulação de bens nas mãos de alguém é
resultado da falta daqueles bens nas mãos de outrem. Contudo, isso
não é de todo mau, desde que a administração desses bens
“injustos” esteja voltada para a satisfação das necessidades
dos irmãos carentes. Este é o grande desafio que se põe para o
cristão que administra bens particulares ou públicos. Jesus sabia
que a sociedade sempre seria desigual, quando ele disse em João (12,
8): “pobres sempre tereis entre vós”. Ele sabia que mesmo a
divulgação da sua doutrina não acabaria com as desigualdades
sociais, mas, por outro lado, isso não seria empecilho para que os
cristãos tivessem em suas mãos a responsabilidade de administrar
bens materiais. Daí Ele dizer em Lucas (16, 8) que o dono do negócio
elogiou a esperteza do seu administrador. Deus quer que nós tenhamos
essa mesma “esperteza” com os bens injustos para que saibamos
utilizá-los com sabedoria e disponibilizá-los em benefício dos
pobres da comunidade.
A advertência de que
“ninguém pode servir a dois senhores” não significa que existe
uma incompatibilidade absoluta entre amar a Deus e administrar bens
materiais, mas sim que o amor a Deus não pode competir com o amor
desses bens, pois o amor a Deus não pode ter concorrência. A
propriedade e a administração de bens materiais não deve nos
desviar do amor a Deus, mas sim fazer-nos amá-lo ainda mais e isso
ocorre quando os bens possuídos são postos a serviço da caridade e
do amor ao próximo. Aquele cujo Deus é a riqueza ou o poder, este
sim estará desvirtuando os bens recebidos e colocando-os a serviço
do próprio egoísmo, tal como fez o mau administrador. Podemos
dizer, em resumo, que a diferença entre o bom e o mau administrador
está sintetizada naquele critério que Jesus já ensinara aos
apóstolos e a todos nós, através da palavra do evangelista Mateus
(6, 21): “porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também
o vosso coração”. Se o nosso tesouro estiver em Deus, o nosso
coração não se apegará ao dinheiro injusto, mas nós saberemos
administrá-lo para fazer amigos que nos receberão, depois, na
morada eterna.
Que assim saibamos
compreender a esperteza dos filhos deste mundo para conseguirmos
colocá-la em prática no exercício da nossa fé.
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