COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – A PORTA ESTREITA –
25.08.2019
Caros Confrades,
As leituras litúrgicas deste 21º
domingo comum nos convidam a refletir sobre o tema da salvação, que
é oferecida universalmente, ou seja, Deus não escolheu apenas um
grupo, ainda que numeroso, para distribuir com este a sua graça, mas
a oferece a todos. Porém exige certos requisitos para que a graça
salvífica passe a agir na vida do crente. A graça divina é
infinita e está disponível para todas as pessoas de boa vontade,
todos os que procuram a Deus com o coração sincero, isso significa
que há diversas “portas” por onde é possível entrar para a
vida eterna, no entanto, o cristão deve desconfiar das portas
largas, pois estas levam a paragens ilusórias. A salvação vem
associada à cruz, portanto, não é merecedor da salvação quem não
carrega alegremente a sua cruz, seguindo o exemplo de Cristo.
A primeira leitura, retirada do livro
de Isaías (66, 18-21- deuteroIsaías, parte do livro escrita após o
cativeiro da Babilônia) é de uma clareza extraordinária. É
impressionante a visão de futuro do profeta, a precisão dos
detalhes com que ele aponta os acontecimentos da salvação: “virei
para reunir todos os povos e línguas; eles virão e verão minha
glória.” (Is 66, 18) E
prossegue mais adiante: “Escolherei
dentre eles alguns para serem sacerdotes e levitas.”
(Is 66, 21) O profeta anuncia como será o futuro da humanidade.
Obviamente, ele escrevia para as pessoas do seu tempo. Porém, numa
perspectiva escatológica, o profeta se refere a todos nós, quando
explica: “...para
as terras distantes, e, para aquelas que ainda não ouviram falar em
mim e não viram minha glória.”
(Is 66, 19) Com isso, o profeta estava anunciando ao povo hebreu que
a aliança de Javeh com Abraão não se referia apenas a eles, ou
seja, quando Ele disse que a descendência de Abraão seria mais
numerosa do que as estrelas do céu, isso significava o alcance
universal da promessa, ultrapassando os limites da nação hebraica.
E o profeta complementa: dentre estes estrangeiros, escolherei alguns
para serem sacerdotes e levitas, ou seja, esses que ainda não Me
conhecem também serão meus anunciadores. É curioso como alguns
pregadores de visão curta e fundamentalistas insistem em contar o
número de pessoas a quem Javeh dirigiu a mensagem da salvação,
ligando essa ideia aos 144.000 assinalados do Apocalipse (Ap 7,1). A
imagem transcrita por João contém um enigma a ser decifrado e
comporta divergências. Ao contrário, a profecia de Isaías é clara
e direta: a mensagem da salvação é dirigida a todos os povos,
inclusive àqueles que ainda não conhecem Javeh, mas que virão a
conhecê-lo, através dos seus mensageiros. O momento histórico
vivido pelo povo de Israel naquela época, retornando à pátria após
livrar-se do cativeiro babilônico, era de grande euforia e isso
refletia o desejo do Profeta de levar a todos os povos a misericórdia
e a fidelidade de Javeh.
Na segunda leitura, retirada da Carta
aos Hebreus, o tema da salvação universal também está presente em
outra perspectiva, numa dimensão do castigo disciplinar, da correção
educativa, para aqueles que não estão comprometidos com a sua
missão. O autor da carta, antes atribuída ao apóstolo Paulo,
exorta os seus compatriotas hebreus, após a morte de Cristo, sobre a
nova forma de compreender o sofrimento. Havia entre os hebreus uma
entendimento antigo que interpretava o sofrimento como castigo
divino, de modo que uma pessoa infeliz era tida como alguém que não
gozava da amizade de Javeh. Vemos diversas passagens no evangelho em
que Cristo recrimina os fariseus por causa dessa ideia (por ex: Jo 9,
1-3). O autor da Carta aos Hebreus vem repetir essa mesma lição de
Cristo em outro contexto, dizendo que o sofrimento faz parte da vida
e que devemos compreendê-lo como um recurso pedagógico para nos
aproximar do caminho da verdade. Assim diz: “não
te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem
ele ama e castiga a quem aceita como filho'.”
(He 12, 6) E complementa: qual o filho a quem o pai não corrige,
quando aquele erra? Daí a advertência em He 12, 13: “acertai
os passos dos vossos pés', para que não se extravie o que é manco,
mas antes seja curado.”
Isso quer dizer que as pessoas que sofrem e as mais necessitadas não
devem ser excluídas, mas trazidas para o convívio fraterno, para
que não se percam, mas sejam socorridas. “É
para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos
trata.
” (He 12, 7) Exemplo dessa linha pedagógica nós
encontramos também nas cartas de Paulo, quando trata da questão dos
judaizantes (por ex: Romanos 14, 5), pois o povo hebreu tinha aquela
ideia de que, por serem descendentes de Abraão e, portanto, os
legítimos herdeiros da promessa, eles eram os primeiros da fila, ou
seja, os demais deviam inspirar-se no exemplo deles. A Carta aos
Hebreus, assim como as outras lições de Paulo, vêm mostrar que
esse raciocínio é ilegítimo, pois pode até ocorrer o oposto, isto
é, os últimos serem os primeiros, conforme está no evangelho de
Lucas (13, 30).
A terceira leitura é exatamente do
evangelista Lucas (13, 22-30), no trecho em que narra a pergunta
feita por alguém a Jesus: é verdade que são poucos os que se
salvam? Curiosamente, o evangelista não identifica quem foi o autor
da pergunta, mas por se tratar de um tema muito preocupante para os
fariseus, podemos supor que tenha sido um deles. Muitos fariseus de
boa vontade acompanhavam Jesus e escutavam seus ensinamentos.
Partindo do estilo da resposta dada por Jesus, deve ter sido mesmo um
fariseu o perguntador, por causa dos exemplos que Ele dá. Como
costuma acontecer, Jesus nunca responde diretamente às perguntas,
mas faz isso através de exemplos e de situações ilustrativas.
Neste caso, Ele usa o exemplo da porta estreita, afirmando
indiretamente que não existe um número determinado de pessoas aptas
à salvação, mas que quem quiser salvar-se deverá escolher a porta
estreita. Sabe-se que uma porta larga é um lugar mais cômodo de
passar, mas neste caso, ela deve ser evitada. No caso dos fariseus, a
“porta larga” significava a mentalidade que eles tinham de serem
os herdeiros da promessa de Javeh e, portanto, já estavam com a
salvação garantida. Então, Jesus quer mostrar que a salvação é
um dom divino dirigido a todos e que, embora seja gratuito, exige
atitude de quem quer salvar-se, por isso, deve escolher a porta mais
difícil de entrar. Portanto, não alcança a salvação quem fica de
braços cruzados, pensando que já foi escolhido e isso basta, e não
cuida de fazer a sua parte. Por isso, Ele cita uma situação
hipotética: o patrão fechou a porta e quando o servo pede para
abrir, o patrão responde que não o conhece. O servo insiste: eu
comi e bebi junto contigo... mas o patrão continua dizendo: não sei
de onde sois.
Quais são, concretamente, essas
“tarefas árduas”, que Jesus simboliza com a imagem da porta
estreita? Falando num linguajar também simbólico, será cada um
carregar a sua cruz de cada dia, não se queixando nem reclamando,
mas na alegria e na esperança. A tolerância com os irmãos, a
prática da justiça, o exercício da caridade são alguns
comportamentos práticos associados à porta estreita. Quem se
acomoda na presunção de estar salvo pelo sangue de Cristo e se
descuida dos seus deveres de cristão, de testemunhar o amor de
Cristo através das suas ações ouvirá do Mestre, diante da porta
fechada: não sei de onde sois. Foi por isso que Jesus advertiu que
muitos tentarão entrar na porta estreita e não conseguirão, estes
são os que se contentam com uma religião de exterioridades, como
acontecia com os fariseus do seu tempo. Estes achavam que bastava o
cumprimento da lei, bastava jejuar, dar esmolas, ir ao templo nos
dias de preceito, fazer suas orações e pronto. Saindo do templo, lá
estavam eles com o coração cheio de orgulho, inchado pela prática
da injustiça, obeso pelo desprezo para com os irmãos… meus
amigos, precisamos vigiar para que isso não aconteça conosco. Esse
puxão de orelhas de Jesus hoje é dirigido a todos nós. A nossa
participação nesse projeto universal salvífico de Cristo se
encontra descrito na passagem de Lc 13, 29: Virão
homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar
à mesa no Reino de Deus.
Devemos,
a todo custo, evitar nos colocarmos na posição dos fariseus, porque
essa tentação da soberba sempre acometeu os cristãos em todos os
tempos. A porta estreita não é compatível com essa conduta.
A porta estreita, enfim, não significa
sofrimento, doença, tristeza, escassez, como outrora se interpretou,
como se fosse necessário o autoflagelo, a privação das coisas
materiais a fim de obter a salvação. Os bens materiais são dons
divinos e eles somente atrapalham a nossa vocação para o Reino de
Deus quando são direcionados para o nosso egoísmo e para a nossa
ganância, porém se forem colocados ao serviço da comunidade, se
forem objeto da partilha e instrumentos da prática do bem, eles não
causarão embaraço ao projeto de Deus.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário