COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – HUMILDADE X SOBERBA
– 01.09.2019
Caros Confrades,
Nesta liturgia, as leituras do 22º
domingo comum nos advertem a evitar a soberba, por ser esta uma
atitude incompatível com a conduta do cristão. No evangelho de
Lucas, temos um exemplo prático dado por Jesus, num evento público
ao qual compareceu. Ele destaca uma das condutas mais corriqueiras da
pessoa soberba: querer aparecer, receber elogios, ser reconhecida em
público, fazer amizade com os poderosos da sociedade. Com isso, o
soberbo já recebe a sua recompensa passageira. Por outro lado, diz
ele: fazer o bem a quem não pode nos recompensar com favores gera um
crédito na eternidade.
O oposto da soberba é a humildade.
Etimologicamente, a palava humilde é a tradução do latim
“humilis”, termo relacionado com o húmus, com a nossa origem do
limo da terra. A imagem bíblica do homem criado por Deus a partir da
lama pretende ressaltar a consciência da nossa finitude, da
efemeridade da existência. Muitas pessoas vivem como se fossem
permanecer no mundo para sempre e se utilizam dos bens materiais para
obter prestígio e poder a todo custo, até mesmo pisoteando as
outras pessoas. É importante esclarecer que, quando se fala em
humildade, isso não significa ser subserviente ou viver como
mendigo, como indigente, usar roupa esfarrapada, porque ser humilde
é, antes de tudo, uma atitude do espírito. Assim como há pessoas
abastadas e humildes, também há pessoas miseráveis gananciosas e
soberbas. Ser humilde, pois, é antes de tudo ser pobre de espírito
e isso significa desapego e generosidade, significa possuir bens sem
ser escravo deles, significa acumular tesouros que a traça não
consome e o ladrão não rouba (Mt 6, 19).
Na primeira leitura, extraída do Livro
do Eclesiástico (3, 20), o escritor sagrado nos adverte: “Na
medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim
encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e
ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios.
” O livro do Eclesiástico faz parte dos escritos
deuterocanônicos, isto é, foi escrito em época mais recente, após
o retorno do exílio da Babilônia, não compondo os livros sagrados
do antigo judaísmo, portanto, não era lido nas sinagogas judaicas.
Seu autor é um sábio de nome Jesus, filho de Sirac, daí porque o
livro também é conhecido como
Ben
Sirac ou Sirácida. Os cristãos primitivos sempre consideraram este
livro como sagrado, mas é
um dos livros que Lutero
recusou e
por isso não está na bíblia protestante.
Mas
se
compararmos o seu texto com os ensinamentos de Cristo, especialmente
nas ocasiões em que Ele censura o comportamento dos fariseus,
percebe-se que ambos se põem na mesma linha de raciocínio. No livro
do Eclesiastes, o autor expõe a tradição judaica mais autêntica e
Jesus, tendo sido educado na tradição judaica, o conhecia muito
bem, aproveitando-se disso para mostrar a hipocrisia dos fariseus
que, como mestres da lei, não a praticavam. Semelhanças com o texto
desta leitura podemos encontrar também no cântico de Maria, após
ouvir a saudação do anjo (Lc 1, 52): derrubou os poderosos dos seus
tronos e exaltou os humildes... pôs os olhos na humildade de sua
serva. Não é, portanto, de se admirar que desde os primeiros tempos
do cristianismo este livro tenha sido sempre prestigiado e lido nos
templos.
No evangelho deste domingo, podemos
identificar um verdadeiro sermão sobre a humildade, através das
parábolas ditas por Jesus na casa de um dos chefes dos fariseus. Diz
o evangelista Lucas (14, 1), que Jesus fora convidado para ir almoçar
na casa de um importante fariseu, num dia de sábado. Observa-se que
Jesus tinha um bom relacionamento com os fariseus, apesar de
criticá-los muito também. É de supor-se que Ele, como bom judeu,
tenha comparecido à sinagoga naquele dia e até provavelmente tenha
sido convidado para fazer a leitura da Torah. Após o culto, um dos
lideres dos fariseus o teria convidado para ir almoçar na casa dele.
Ali chegando, Jesus observou como os convidados ficavam disputando a
preferência do dono da casa, escolhendo os melhores lugares à mesa.
Cada qual queria demonstrar ter mais prestígio com o anfitrião. E
ao mesmo tempo, todos observavam qual seria a atitude de Jesus, como
um convidado de honra. Percebendo isso e mesmo antevendo alguma
provável armadilha, Jesus tomou a iniciativa das ações e passou a
contar-lhes uma parábola.
Os fariseus gostavam daquele tipo de
religiosidade das aparências, do cumprimento da lei pela sua
literalidade, sem uma atitude de interiorização. Por isso, Jesus
aproveitou o contexto e contou mais uma das suas historinhas: houve
um banquete em que um convidado que estava sentado no lugar de honra
foi solicitado pelo anfitrião para ceder seu lugar para outro
conviva mais importante do que ele, tendo que ir sentar-se lá atrás.
Era exatamente o que eles estavam fazendo, escolhendo os melhores
lugares. Então, Jesus arrematou: quando tu fores convidado, senta-te
nos últimos lugares, porque será honroso para ti ser chamado para
chegar mais para a frente e, ao contrário, será decepcionante para
ti ser mandado lá para trás. Essa parábola de Jesus foi
tradicionalmente interpretada pelos biblistas no seu sentido mais
literal de uma posição ou local físico. Contudo, podemos
compreendê-la também noutro sentido mais simbólico, da busca por
elogios, da necessidade de ser aplaudido, bajulado, da vaidade de ser
notado, ser reconhecido. Essa procura psicológica pelos “primeiros
lugares” na opinião pública tem o mesmo sentido da disputa pelo
melhor lugar na mesa do banquete. A frustração que daí resulta,
quando a expectativa não se materializa, é semelhante à humilhação
daquele que foi “convidado” a sentar na última fileira, pode até
provocar doenças físicas. Sim, porque, mais importante do que a
pobreza de bens materiais é a pobreza do espírito, o reconhecimento
sincero da nossa fragilidade, da nossa incompletude. O espírito
orgulhoso não percebe isso e necessita de estar sempre sendo
incensado e colocado em alto pedestal. Ao contrário, o espírito
humilde raciocina como Cristo disse no evangelho: somos servos
inúteis, fizemos o que tínhamos de fazer. (Lc 17, 7)
Daí a complementação que Jesus faz
desta primeira parábola com uma segunda: “Quando
tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus
irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. pois
estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa.
” (Lc 14, 12) Ele não está dizendo que não se deve oferecer
recepções aos amigos
e parentes.
Está
advertindo que quem
pratica o bem somente para os semelhantes, os da sua mesma classe
social, recusando-se a fazer o mesmo com as pessoas mais humildes, na
verdade, não age como cristão. Recentemente, o Papa Francisco fez
uma comparação interessante, quando disse: de que adianta ir à
missa e comungar se, quando chega de volta ao seu apartamento, nem
cumprimenta o porteiro do prédio? O profissional que escolhe a sua
clientela olhando apenas o poder aquisitivo e a consequente
possibilidade da retribuição material não está agindo como
cristão. Atender com alegria o cliente bem-vestido e perfumado,
enquanto o cliente de aparência modesta é recepcionado com frieza e
má vontade, não é atitude digna de quem se considera discípulo de
Cristo. Novamente, devemos entender que não se trata de um local
físico, de um almoço ou jantar convencionais, mas é preciso
alcançar o nível do simbolismo da mensagem.
No final desta parábola, Jesus diz:
“quando
deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos.
” (Lc 14, 13) Ora, isso não deve ser entendido na sua
literalidade, mas no sentido metafórico: quando tu tratas bem os
iguais a ti, aqueles que podem também te fazer o mesmo, a tua
recompensa já foi dada, através dos elogios que recebes e das
promessas que ouves. Mas se ages desse mesmo modo também com aqueles
que não podem te retribuir, a recompensa será dada pelo Senhor,
justo juiz. E de nada nos adiantaria cumprir a literalidade desse
texto, promovendo banquetes para os indigentes, os excluídos, os
moradores de rua, se o nosso espírito, a nossa atitude interior
demonstrar superioridade, distanciamento, ojeriza ou indiferença. A
humildade não está nas práticas exteriores, mas no sentimento de
solidariedade que deve acompanhá-las. Esta é a diferença entre
praticar a humildade e ser humilde. Alguém pode praticar atos
exteriores de humildade e manter o espírito soberbo, isso de nada
adianta. A humildade não é medida pela quantidade de bens materiais
que alguém possui, mas pelo grau de desapego que tal pessoa
demonstrará em relação a esses bens. Vale lembrar, nesse contexto,
o inspirado comentário de Paulo sobre Jesus, na carta aos Filipenses
(2, 5-7): sendo de condição divina, Jesus não se prevaleceu disso,
mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo e tornando-se
semelhante a nós. Ele, sendo Deus, não precisava passar por todos
aqueles tormentos. No entanto, Ele optou pela humildade até as
últimas consequências, para nos dar o maior exemplo de capacidade
de renúncia, quando Ele se desapegou até de sua condição divina,
para sacrificar-se por nós homens, que nada temos para dar-Lhe em
recompensa. Esse é o desafio que Jesus deixou para aqueles que
aderem ao seu projeto e aceitam ser seus discípulos.
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