sábado, 21 de setembro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - 08.09.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – O DESAPEGO – 08.09.2019

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, a leitura do evangelho proclama a necessidade do desapego dos bens materiais, ou seja, ser pobre em espírito, esta que deve ser a atitude padrão de quem quer ser discípulo de Jesus. Desapegar não significa desprezar os bens materiais, mas colocá-los no segundo plano, deixando em primeiro plano os bens espirituais. No caso, o desapego não abrange apenas os bens de consumo e os objetos de valor, mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa vida cristã, inclusive as relações familiares. Este tema está presente também nas outras leituras: do livro da Sabedoria e da carta de Paulo a Filêmon.

Na primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (9, 13-18), o autor destaca uma doutrina que muito se assemelha com a teoria do filósofo grego Platão, quando ele contrapõe o mundo da matéria e o mundo das ideias. No versículo 15 do cap 9, lemos: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a mente que pensa.” A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz eco com a narração da criação do homem, de acordo com o Gênesis, quando Deus fez o homem do limo da terra. O peso da matéria corporal impede a alma de alcançar os desígnios profundos de Deus. É o que diz no vers. 16: “Mal podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus?” É curioso como essa doutrina filosófica, conhecida como dualismo, era comum entre os povos daquela época. O dualismo teve uma importância muito grande nos princípios do cristianismo, sendo defendida por vários teólogos cristãos, estudiosos de Platão. Santo Agostinho foi o principal deles e, de início, ele tinha simpatia até pela doutrina da reencarnação, também ensinada por Platão, vindo depois a abandoná-la, pois observou que era incompatível com o cristianismo. Grande parte da catequese católica tradicional foi elaborada com base nessa doutrina, que ainda está presente também no catecismo oficial atual. Contudo, na época contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita mais em separação entre corpo e espírito. A doutrina filosófica contemporânea compreende o homem como um ser integrado de corpo e espírito, de tal maneira que este deve ser entendido como um corpo espiritualizado ou um espírito corporificado, não fazendo sentido referir-se a um sem incluir também o outro, assim como também não faz sentido falar-se em “separação” entre corpo e espírito, como se fossem duas realidades opostas e incompatíveis. A ressurreição de Cristo e também a assunção de Maria são fatos que demonstram, a título de antecipação, o que ocorrerá com todos os crentes, por ocasião de sua passagem para o plano da eternidade. Não é o espírito que “se salva”, mas a salvação abrande o ser humano inteiro, incluindo corpo e alma. Não o corpo-matéria, mas o corpo glorioso e desmaterializado, tal como sugere a estampa da efígie de Cristo no Santo Sudário.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação como uma atitude decorrente do desapego cristão. Nesta carta, encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava como fugitivo em Roma, onde o encontrou. Com muita discrição, Paulo não entra em detalhes sobre o provável motivo da fuga, no entanto, apenas a fuga por si mesma já era uma afronta ao patrão. O fato transparecido nas entrelinhas da carta é que Paulo encontrou Onésimo em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do vínculo anterior de Onésimo com Filêmon, de quem Paulo era amigo, este fez questão que Onésimo fosse reconciliar-se com seu antigo senhor, não para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse a má conduta do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. ” E mais adiante, no vers. 17: “se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. ” A carta desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e fez conforme a recomendação deste.

A leitura do evangelho (Lc 14, 25-33), como antecipado, enfoca a atitude de desapego que deve ter o cristão em relação às coisas materiais. Na tradução latina desse texto, a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução oficial. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, o sentido original desta palavra no hebraico (sanê) tem relação com “sentir ciúme”, “não ter a preferência”, ou falando numa expressão positiva, de “amar mais”, ou seja, sentir ciúme se alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a Mim... Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...” Neste caso, a tradução oficial está bem mais conforme o texto hebraico do que com a tradução latina. E é este o sentido mais autêntico da exigência que Jesus faz aos seus seguidores, ou seja, ele não quer dizer que o cristão deve literalmente “odiar” o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas sim que não deve dedicar maior amor aos familiares do que ao próprio Jesus. Não quer dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. E, em último caso, se as relações familiares ou as relações de amizade forem motivo de afastar o cristão do seu verdadeiro ideal, então o fiel deve fazer a sua escolha radical pela adesão ao ensinamento de Cristo. Esta é a grande dificuldade de se ler a Bíblia nas traduções, sem ter conhecimento do significado dos termos na língua original, ou seja, pode conduzir a conclusões bem divergentes daquele que é o melhor significado da mensagem. Este é o grande problema que ocorre quando o fiel apenas “lê” a Bíblia. Ler não é bastante, é necessário “estudar” a Bíblia, a fim de obter da leitura o melhor aprendizado. Desse modo, num entendimento mais humanizado, a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de pensamento da pobreza em espírito.

Os outros dois exemplos citados pelo evangelista vão também nessa mesma linha de raciocínio. Sobre o homem que queria construir a torre, mas não tinha economias suficientes para levar adiante a pretensão, Cristo quer dizer que devemos nos desapegar também de projetos mirabolantes, que estão mais a serviço da nossa vaidade do que da nossa fé. Qual o objetivo de alguém construir uma torre? Devia ser para tornar-se famoso, para ser visto e conhecido pelas outras pessoas. Mas, até que ponto isso irá contribuir para o bem do próximo, para o serviço da comunidade? Então, os nossos projetos devem estar coerentes com as exigências da nossa fé, não com a nossa vaidade pessoal. Sobre o outro exemplo do rei que vai guerrear com o rival, qual seria o seu objetivo, senão enaltecer o seu egoísmo e o seu orgulho, pensando na vitória sobre o outro? Ora, reconhecer a superioridade do outro é também uma atitude de desapego, de renúncia da própria vaidade. Embora a narrativa sugira que o rei evitou o confronto com receio de ser derrotado, visto que o rival tinha um exército mais numeroso, devemos nos lembrar que Cristo fazia essas preleções para pessoas do povo e usava exemplos simples de casos mais compreensíveis, porém depois ele explicava o verdadeiro significado para os discípulos.

O sentido cristão do desapego, portanto, não é simplesmente largar tudo e ir morar debaixo da ponte. Desapegar-se significa ser pobre em espírito, porque há pessoas extremamente pobres de bens materiais, mas demonstram espírito rico e de exagerada avareza, invejando o que os outros possuem.

****

Nenhum comentário:

Postar um comentário