COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – O DESAPEGO –
08.09.2019
Caros Confrades,
Neste 23º domingo comum, a leitura do
evangelho proclama a necessidade do desapego dos bens materiais, ou
seja, ser pobre em espírito, esta que deve ser a atitude padrão de
quem quer ser discípulo de Jesus. Desapegar não significa desprezar
os bens materiais, mas colocá-los no segundo plano, deixando em
primeiro plano os bens espirituais. No caso, o desapego não abrange
apenas os bens de consumo e os objetos de valor, mas tudo aquilo que,
de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa vida cristã,
inclusive as relações familiares. Este tema está presente também
nas outras leituras: do livro da Sabedoria e da carta de Paulo a
Filêmon.
Na primeira leitura, retirada do livro
da Sabedoria (9, 13-18), o autor destaca uma doutrina que muito se
assemelha com a teoria do filósofo grego Platão, quando ele
contrapõe o mundo da matéria e o mundo das ideias. No
versículo 15 do cap 9, lemos:
“porque
o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a
mente que pensa.”
A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz
eco com a narração da criação do homem, de acordo com o Gênesis,
quando Deus fez o homem do limo da terra. O peso da matéria corporal
impede a alma de alcançar os desígnios profundos de Deus. É o que
diz no vers. 16: “Mal
podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos
o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará
o que há nos céus?”
É curioso como essa doutrina filosófica, conhecida como dualismo,
era comum entre os povos daquela época. O dualismo teve uma
importância muito grande nos princípios do cristianismo, sendo
defendida por vários teólogos cristãos, estudiosos de Platão.
Santo Agostinho foi o principal deles e, de início, ele tinha
simpatia até pela doutrina da reencarnação, também ensinada por
Platão, vindo depois a abandoná-la, pois observou que era
incompatível com o cristianismo. Grande parte da catequese católica
tradicional foi elaborada com base nessa doutrina, que ainda está
presente também no catecismo oficial atual. Contudo, na época
contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto
a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o
conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e
espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita
mais em separação entre corpo e espírito. A doutrina filosófica
contemporânea compreende o homem como um ser integrado de corpo e
espírito, de tal maneira que este deve ser entendido como um corpo
espiritualizado ou um espírito corporificado, não fazendo sentido
referir-se a um sem incluir também o outro, assim como também não
faz sentido falar-se em “separação” entre corpo e espírito,
como se fossem duas realidades opostas e incompatíveis. A
ressurreição de Cristo e também a assunção de Maria são fatos
que demonstram, a título de antecipação, o que ocorrerá com todos
os crentes, por ocasião de sua passagem para o plano da eternidade.
Não é o espírito que “se salva”, mas a salvação abrande o
ser humano inteiro, incluindo corpo e alma. Não o corpo-matéria,
mas o corpo glorioso e desmaterializado, tal como sugere a estampa da
efígie de Cristo no Santo Sudário.
Na segunda leitura, da carta de Paulo a
Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação
como uma atitude decorrente do desapego cristão. Nesta carta,
encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o
apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o
amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso
e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo
Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas
entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava
como fugitivo em Roma, onde o encontrou. Com muita discrição, Paulo
não entra em detalhes sobre o provável motivo da fuga, no entanto,
apenas a fuga por si mesma já era uma afronta ao patrão. O fato
transparecido nas entrelinhas da carta é que Paulo encontrou Onésimo
em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou
o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do vínculo
anterior de Onésimo com Filêmon, de quem Paulo era amigo, este fez
questão que Onésimo fosse reconciliar-se com seu antigo senhor, não
para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval
ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição
de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa
como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela
comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que
aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava
solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse a má
conduta do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como
irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na
comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação,
para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a
grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido
muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu
não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não
seja forçada, mas espontânea.
” E mais adiante, no vers. 17: “se
estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim
mesmo. ” A carta
desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de
nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para
conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e
fez conforme a recomendação deste.
A leitura do evangelho (Lc 14, 25-33),
como antecipado, enfoca a atitude de desapego que deve ter o cristão
em relação às coisas materiais. Na tradução latina desse texto,
a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução
oficial. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et
matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia
seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do
verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, o
sentido original desta palavra no hebraico (sanê) tem relação com
“sentir ciúme”, “não ter a preferência”, ou falando numa
expressão positiva, de “amar mais”, ou seja, sentir ciúme se
alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a Mim...
Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém
vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua
esposa...” Neste caso, a tradução oficial está bem mais conforme
o texto hebraico do que com a tradução latina. E é este o sentido
mais autêntico da exigência que Jesus faz aos seus seguidores, ou
seja, ele não quer dizer que o cristão deve literalmente “odiar”
o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas sim que não deve
dedicar maior amor aos familiares do que ao próprio Jesus. Não quer
dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o
amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a
Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo.
E, em último caso, se as relações familiares ou as relações de
amizade forem motivo de afastar o cristão do seu verdadeiro ideal,
então o fiel deve fazer a sua escolha radical pela adesão ao
ensinamento de Cristo. Esta é a grande dificuldade de se ler a
Bíblia nas traduções, sem ter conhecimento do significado dos
termos na língua original, ou seja, pode conduzir a conclusões bem
divergentes daquele que é o melhor significado da mensagem. Este é
o grande problema que ocorre quando o fiel apenas “lê” a Bíblia.
Ler não é bastante, é necessário “estudar” a Bíblia, a fim
de obter da leitura o melhor aprendizado. Desse modo, num
entendimento mais humanizado, a interpretação dessa exigência de
Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego
interior, na linha de pensamento da pobreza em espírito.
Os outros dois exemplos citados pelo
evangelista vão também nessa mesma linha de raciocínio. Sobre o
homem que queria construir a torre, mas não tinha economias
suficientes para levar adiante a pretensão, Cristo quer dizer que
devemos nos desapegar também de projetos mirabolantes, que estão
mais a serviço da nossa vaidade do que da nossa fé. Qual o objetivo
de alguém construir uma torre? Devia ser para tornar-se famoso, para
ser visto e conhecido pelas outras pessoas. Mas, até que ponto isso
irá contribuir para o bem do próximo, para o serviço da
comunidade? Então, os nossos projetos devem estar coerentes com as
exigências da nossa fé, não com a nossa vaidade pessoal. Sobre o
outro exemplo do rei que vai guerrear com o rival, qual seria o seu
objetivo, senão enaltecer o seu egoísmo e o seu orgulho, pensando
na vitória sobre o outro? Ora, reconhecer a superioridade do outro é
também uma atitude de desapego, de renúncia da própria vaidade.
Embora a narrativa sugira que o rei evitou o confronto com receio de
ser derrotado, visto que o rival tinha um exército mais numeroso,
devemos nos lembrar que Cristo fazia essas preleções para pessoas
do povo e usava exemplos simples de casos mais compreensíveis, porém
depois ele explicava o verdadeiro significado para os discípulos.
O sentido cristão do desapego,
portanto, não é simplesmente largar tudo e ir morar debaixo da
ponte. Desapegar-se significa ser pobre em espírito, porque há
pessoas extremamente pobres de bens materiais, mas demonstram
espírito rico e de exagerada avareza, invejando o que os outros
possuem.
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