domingo, 14 de abril de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - O TESTEMUNHO DE JOÃO - 14.04.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – O TESTEMUNHO DE JOÃO – 14.04.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa traz importantes testemunhos, na leitura do evangelho de João e também na segunda leitura, retirada do Apocalipse. Vemos ainda, na primeira leitura, o relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, sobre a pregação destes nos dias que sucederam a morte de Jesus, sendo perseguidos pelos chefes dos sacerdotes.

Conforme a narrativa de Atos (5, 27), os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se apresentarem ao Sumo Sacerdote, que os interrogou sobre o porquê de estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido proibidos de fazer isso. E estavam os sacerdotes ainda mais irritados porque os Apóstolos punham neles a culpa pela morte de Jesus. Mas não podendo manter os Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular, limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, exatamente como Ele havia previsto. Apenas para deixar referenciado, a pena de açoites era utilizada naquela época para delitos pequenos, aquilo que atualmente o Direito chama de delitos de menor potencial ofensivo. Lembremo-nos que Pilatos também tentou fazer isso como forma de aplacar os judeus, pois tinha a intenção de libertar Jesus depois da surra. Só que os chefes dos sacerdotes queriam mais e assim os açoites não foram suficientes. Mas no caso dos Apóstolos, foi isso o que aconteceu.

A segunda leitura é um trecho do Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois foi a visão que João teve quando estava desterrado na ilha de Patmos. Esta era uma ilha deserta para onde eram enviados presos inconvenientes, para serem esquecidos e morrerem por lá. João foi desterrado por causa de sua pregação, pois ele desobedecera sucessivas vezes os sacerdotes judeus. Enquanto estava lá, na solidão do exílio, João teria tido umas visões estranhas, que ele escreveu neste livro. Há suposições dos estudiosos que o texto original era bem mais longo e dele foram retiradas algumas passagens. Talvez algumas ainda mais incompreensíveis do que as que estão nele contidas. Isso, porém, não é assunto pacífico, há divergências. O fato é que ele usa uma linguagem excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas interpretações. Outro fato importante a ser lembrado é que, embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito por João antes das cartas e do evangelho. Quando foi libertado, João foi viver em Éfeso, onde foi bispo daquela igreja até a sua morte.

O pequeno trecho do Apocalipse (5, 11-14) lido na missa de hoje mostra que grande parte da arte sacra produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos é uma descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas, cada um interpretando à sua maneira. E mais os anciãos que se prostram... e os quatro seres vivos que diziam amém... talvez por causa de certas descrições de difícil entendimento há autores que sustentam que o livro do Apocalipse é composto por fragmentos do texto original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura demasiado indigesta.

O texto do evangelho é também de João, relatando a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da Galiléia. Antes de prosseguir, quero apenas lembrar que o evangelho de João foi o último escrito dele, quando ele já tinha mais de 90 anos de idade. Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100 d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Então, o texto de João traz muitos aperfeiçoamentos teológicos, em relação aos outros evangelhos. Primeiro, pelo fato de João ter sido testemunha ocular dos fatos, enquanto os outros evangelistas sabiam apenas por ouvir dizer. Segundo, porque no final do século I, as primeiras comunidades cristãs já tinham amadurecido muito no conhecimento e no entendimento da doutrina cristã, de modo que o evangelho de João reflete isso.

Pois bem. João relata que alguns dos discípulos estavam na sua faina comum da pescaria, quando Jesus apareceu. Vejamos bem isso. Depois da ressurreição de Cristo, os Apóstolos não deixaram seus afazeres cotidianos e saíram só pregando pelas ruas. Eles faziam isso sim, mas precisavam trabalhar para ter o que comer. Somente após Pentecostes e com o crescente número de comunidades foi que eles tiveram de se dedicar apenas à missão dada a eles por Cristo. Continuando. João narra mais um milagre feito por Jesus após a ressurreição, período em que ele continuou a preparar os Apóstolos, até a sua ascensão, confirmando o que ele havia ensinado antes. Depois de passarem a noite em tentativas, sem nada conseguir pescar, Jesus mandou que eles jogassem a rede à direita do barco... e lá estavam os peixes em grande quantidade. João percebeu logo e disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já havia fogo aceso e pão. Jesus mandou que trouxessem peixes dos que tinham pescado ali, assou-os e repartiu com eles. João não diz que Jesus comeu. Um outro fato curioso a considerar nessa narração é que João relatou uma 'missa' celebrada por Cristo ali na beira do lago, sem fazer uso do vinho, mas apenas com pão e peixe.

Depois dessa narrativa miraculosa, João passa a relatar um episódio que tem desdobramentos históricos importantes. Jesus pergunta a Pedro, por três vezes seguida, se este O ama. Pedro, na terceira vez, já estava sem jeito com a insistência de Jesus, parecia que Ele não acreditava. Mas o objetivo de João, ao narrar este fato, vai muito além das perguntas e respostas. Através da tríplice pergunta, João mostra que Jesus queria resgatar a confiança de Pedro, após ter ele negado por três vezes, na noite que antecedera a Paixão. Foi como que um reforço pedagógico: Pedro havia de confirmar o amor a Cristo pelo mesmo número de vezes que havia fracassado na negativa. A outra finalidade buscada por João era a de reforçar o mandato de Cristo a Pedro, no que diz respeito à primazia sobre os demais Apóstolos. João foi o grande baluarte de Pedro durante as pregações, sempre o acompanhava e o assistia, porque havia entendido que o Mestre tinha expressado a escolha de Pedro para ser o líder do grupo. Não se sabe até que ponto os outros entenderam isso, mas João fez questão de deixar registrado que, além do episódio das chaves simbólicas entregues a Pedro por Jesus, ele ainda havia triplamente recomendado que ele 'apascentasse o rebanho.'

Na época de João, o centro do cristianismo ainda estava em Jerusalém, embora os Apóstolos tivessem se espalhado por várias localidades, conforme Jesus havia ordenado, e Pedro era o que tinha se dirigido até Roma, na época a metrópole capital do grande império, onde Paulo havia feito muitos seguidores de Cristo. Mas, então, ainda não havia se colocado a questão da 'chefia' do ponto de vista prático, fato que somente veio a surgir séculos mais tarde, quando todos os apóstolos já haviam falecido e o tema passou a ser questionado pelos 'sucessores' deles, ocasião em que cada um era chefe da própria comunidade. De todo modo, João já deixou claro, desde então, que embora fosse ele (João) o discípulo amado, no entanto, a 'chefia' do grupo fora delegada a Pedro. João já havia demonstrado isso antes, naquela ocasião em que ele, Pedro e as mulheres foram visitar o túmulo de Cristo, no dia seguinte. Todos lembram, o próprio João relatou: ele correu mais do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo, mas não entrou. Esperou que Pedro chegasse, para que entrasse primeiro. Foi juntando esses detalhes que, a partir do século IV, delineou-se a tese da primazia petrina, permeada por muitas divergências. Ao ponto de, após muitos anos de polêmica, chegar a uma solução drástica com a ruptura das comunidades gregas, que não aceitaram a feitura tomada pelo cristianismo em Roma, influenciada pelos costumes romanos, e recusaram-se a aceitar a chefia do Bispo de Roma.

Pois bem, meus amigos. Esses testemunhos de João são muito importantes e nos ajudam a compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas para a reunião das igrejas oriental e ocidental, levadas a efeito pelos últimos Papas. Fazem-nos acreditar que, em breve, possamos ter novamente a unidade do rebano de Cristo, pra que todos sejam um, como Ele muitas vezes pediu.


domingo, 7 de abril de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - MARAVILHAS OPERADAS - 07.04.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – MARAVILHAS OPERADAS – 07.04.2013

Caros Confrades,

Neste segundo domingo da Páscoa (lembrar que não se diz domingo 'depois' da Páscoa), a liturgia traz para nossa consideração as maravilhas operadas pelos Apóstolos, após a ressurreição de Cristo, levando grande quantidade de judeus à conversão, em decorrência da pregação que haviam ouvido de Jesus e que agora era confirmada com a sua ressurreição e com os milagres intermediados por seus discípulos.

Na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (At 5, 12-16), lemos sobre os testemunhos narrados por Lucas (autor do texto) da grande adesão de novos cristãos, mediante a pregação dos Apóstolos e os milagres realizados por eles. As pessoas se admiravam da eloquência deles, pois os conheciam de muito tempo e sabia que eles eram de pouca instrução. No entanto, após a ressurreição de Cristo, houve uma transformação no seu comportamento e no seu modo de agir. Diz o texto que acorriam multidões das cidades próximas de Jerusalém, para ouvir a pregação dos Apóstolos e traziam seus doentes para serem curados. Colocavam os doentes nos locais por onde eles deviam passar e esperavam que ao menos a sua sombra os atingisse, porque isso era garantia de cura. Lembremo-nos do que Jesus havia prometido aos seus discípulos: (João 14, 12) Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará. Com efeito, pelos relatos de Atos, os Apóstolos fizeram maior quantidade de milagres do que o próprio Jesus havia feito, o que é compreensível. Jesus esperava que as pessoas acreditassem n'Ele não pelos milagres, mas pela sua pregação, pela sua doutrina. Já em relação aos Apóstolos, estes pregavam Jesus e a autenticidade do seu discurso era confirmada pelos milagres realizados por eles. Além do mais, eles eram em número de 12 e, portanto, o número de pessoas beneficiadas era muito maior. Os milagres feitos por intermédio dos Apóstolos tinham uma força probante muito maior, porque demonstravam nas pessoas destes a divindade de Jesus. O poder de convencimento que os Apóstolos exerciam eram fortíssimo.

Na segunda leitura, lemos um trecho da 2a. Carta de João, na qual ele relata o que passou quando esteve exilado na ilha de Patmos (onde ele escrevera o Apocalipse), e declara que alguém, semelhante ao filho do Homem, afirmou para ele que havia morrido, mas agora está vivo para sempre (2 Jo 1, 18), mandando ainda que ele escrevesse a visão que estava presenciando. O testemunho de João é valiosíssimo, porque ele convivera com Cristo em vida terrestre e O viu depois de ressuscitado, por diversas vezes. Associando-se isso ao fato de que João foi o Apóstolo que viveu mais tempo e, portanto, acompanhou todo o desenvolvimento do cristianismo nascente, tinha um conhecimento privilegiado de todos esses fatos e por isso a sua reflexão tinha aquela grande autoridade de cofundador do cristianismo. A carta de João, dirigida às comunidades da Ásia Menor, reforçava a fé nascente no Cristo ressuscitado e esses testemunhos são a maior prova da própria ressurreição de Cristo.

O trecho do evangelho da liturgia de hoje (Jo 20, 19-31) é o mesmo do ano passado, onde está relatado o episódio da incredulidade de Tomé, um dos episódios mais conhecidos do cristianismo antigo. E também, por duas vezes, o Apóstolo menciona que Jesus apareceu ao grupo, após a ressurreição, no primeiro dia da semana. No evangelho do domingo passado (Páscoa da ressurreição), vimos o encontro de Maria Madalena com Jesus ainda na madrugada do primeiro dia da semana, quando ela e outros tinham ido fazer a visita ao túmulo de Jesus e dali Ele havia mandado um recado aos doze de que logo mais estaria com eles em Jerusalém. Isso significa que a primeira aparição de Cristo ressuscitado aos Apóstolos se deu no próprio dia da ressurreição, ao anoitecer. E seguindo a narração de João (Jo 20, 26), o dia em que Tomé viu Jesus foi no domingo seguinte, ou seja, numa composição cronológica, este dia seria o domingo de hoje. Podemos observar que Jesus fez propositalmente suas visitas aos Apóstolos no primeiro dia da semana, sinalizando que este deveria ser o “dia do Senhor” do novo testamento, em substituição ao tradicional costume de observância do sábado. Não demorou para que os primeiros cristãos percebessem isso e transferissem o dia do descanso para o dia do Senhor.

É interessante observar que esse episódio da incredulidade de Tomé foi narrado apenas pelo evangelista João, não se encontrando nos demais evangelhos. Isso se explica, em primeiro lugar, porque João tinha conhecimento ocular do fato, por ter sido um dos que estavam presentes no momento, enquanto os outros autores dos evangelhos escreveram apenas pelo que ouviram ou leram a respeito. Mas há também um objetivo pedagógico nisso: João, em sua longevidade, encontrou diversas pessoas que não tinham conhecido Jesus como pessoa, mas O conheceram apenas através de sua doutrina e então a história de Tomé tinha o objetivo de ensinar aos novéis cristãos que o próprio Cristo havia chamado de bem aventurados os que acreditassem nele sem vê-Lo. E João ainda diz mais que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.

Quero fazer uma referência, neste contexto, a outro trecho dos Atos dos Apóstolos que foi lido na liturgia de ontem, sábado, acerca da pregação dos Apóstolos e da adesão em massa dos judeus ao cristianismo, preocupando os chefes dos Sacerdotes judeus e os anciãos do povo. Estes sabiam que aqueles Apóstolos eram os mesmos que haviam seguido Jesus e sabiam que eles eram homens de pouca instrução, daí não conseguirem entender o motivo de eles terem ficado tão sábios e poderosos da noite para o dia, fazendo milagres que eles não podiam negar, eles mesmos presenciaram o fato. (At 4, 14). Mandaram prendê-los, mas logo depois os soltaram, com receio de uma reação por parte da multidão, que os estimava e defendia. E ficaram a discutir sobre o que fazer para frear o avanço do cristianismo nascente, para que “a coisa não se espalhe ainda mais entre o povo” (At 4. 17). Então, chamaram Pedro e João e os proibiram de ensinar e pregar o nome de Jesus, ameaçando-os. Eles simplesmente disseram que não obedeceriam aquela ordem e os fariseus não puderam fazer nada, por causa do grande apoio popular que os Apóstolos tinham.

Observa-se, meus amigos, como foi impactante o resultado da pedagogia de Cristo durante a sua missão de pregador nos fatos após a sua morte. Os fariseus e os sumos sacerdotes fizeram uma manobra política para conseguir a condenação de Jesus à morte, na expectativa de que, com isso, seus discípulos se dispersassem e a coisa se acabasse por ali. Assim já havia acontecido com outros “revolucionários” e havia dado certo, pensavam eles que seria a mesma coisa. Só que com Jesus foi diferente, porque Ele ressuscitou, isso fez toda a diferença. Desse modo, a grande massa ao ver os milagres operados pelos Apóstolos, em nome de Jesus, tiveram uma certeza do seu poder e da sua origem divina, contrariando os prognósticos dos sacerdotes. O resultado disso é que a adesão à nova fé entre os judeus se apresentou de tal monta que os sacerdotes ficaram sem saber o que fazer. Aquela estratégia imaginada com a sua condenação estava surtindo o efeito contrário do pretendido, ou seja, Jesus morto, mas ressuscitado, se tornara ainda mais poderoso do que antes de morrer. Essa é a grande mágica da loucura da cruz, de que fala o apóstolo Paulo (1 Cor 1, 18): “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.” Os chefes dos sacerdotes, ao transformarem Jesus num louco perante a multidão e o submeterem ao máximo suplício, pensavam que haviam exterminado a sua pregação e a sua influência. Não demorou nada e aquela suposta loucura estava se transformando em extraordinário poder, contra o qual os seus algozes não tinham mais nenhum controle.

Meus amigos, que nós saibamos, através dos nossos atos no dia a dia, mostrar para a sociedade incrédula que a loucura da cruz é o grande diferencial que transforma o cristão de tolo em sábio, de fraco em poderoso, de condenado em vencedor.


domingo, 31 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 31.03.2013 - PÁSCOA E HISTÓRIA


COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 31.03.2013 – PÁSCOA E HISTÓRIA

Caros Confrades,

Eis-nos aqui celebrando outra vez a festa da Páscoa. Neste domingo, completam-se dois anos que escrevo esses comentários, contando sempre com a benevolência de vocês e animado por referências que recebo dos leitores assíduos. Por ocasião do Ensese III, em Guaramiranga, tive a grata satisfação de ouvir diversas opiniões dos Confrades, o que me inspira a continuar refletindo com todos sobre os temas da liturgia. Esta é a primeira Páscoa celebrada pelo nosso Seráfico Papa, que veio acender nossas esperanças de renovação e reconstrução da Igreja de Cristo, atribulada por árduas provações em todos os continentes, necessitando de autêntica redefinição de estratégias e sérias correções de trajetória, dando respostas convincentes às acerbas críticas recebidas pelo mundo afora. Quem sabe, o nosso Papa venha a convocar um Concílio, que poderá ser uma continuação do conclave que o elegeu, para discutir os aspectos centrais da problemática que aflige a Sagrada Instituição eclesiástica e todos juntos buscarem as soluções efetivas, pelas quais todos ardorosamente esperamos. Que Deus o ilumine nessa difícil missão.

Neste domingo, como acontece em todas as festividades da Páscoa ao longo da história, a palavra mestra, que mais uma vez repetimos, é uma só: Ressurrexit sicut dixit. - Ressuscitou como havia dito. O próprio apóstolo João, no evangelho de hoje, atesta que somente após a ressurreição, eles começaram a compreender tudo o que Jesus ensinara. Quando ele (João) e Pedro, juntamente com Maria Madalena, chegaram ao túmulo e encontraram a pedra afastada e dentro apenas os lençóis, ficaram confusos e preocupados: aonde Ele foi? E João confessa (Jo 20, 9): “De fato, ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual Ele devia ressuscitar dos mortos”. Esta narração do fato, por João, nos deixa perceber como Jesus preparou o cenário para que os apóstolos vissem e acreditassem. Por que a pedra da entrada do sepulcro estava afastada, se Jesus ao ressuscitar não precisou passar por ela? Imagino que Jesus queria que eles vissem aquilo como um sinal de algo extraordinário. A pedra da entrada do túmulo era pesadíssima e seria necessário o esforço de várias pessoas para afastá-la. Mas isso não foi preciso. De longe, Maria Madalena, aquela que foi mais cedo ao túmulo, viu que a pedra havia sido removida. Mais adiante nessa mesma leitura (Jo 20, 15), diz o evangelista que Maria Madalena viu a Jesus, porém não o reconheceu e pensava tratar-se do jardineiro. Quando Jesus falou com ela, foi que ela o reconheceu. Isto é, até aquele momento, Maria Madalena sequer imaginava o que tinha acontecido, apesar de ser ela uma das pessoas mais próximas de Jesus e que ouviu diversas vezes quando ele disse que iria ressuscitar. Ali, diante do túmulo aberto sem ninguém dentro, ela só pensava que O haviam levado, mas quem? Para que? Então, ao reconhecê-Lo, a sua preocupação e a sua tristeza se converteram numa alegria indizível: Mestre, é você? E foi tentar abraçá-lo, ao que Jesus não permitiu.

Aqui está o ponto central da nossa fé cristã: a ressurreição de Cristo. Ele escolheu a data para que isso acontecesse, não foi um mero acaso que esses fatos tenham acontecido por ocasião da celebração da páscoa histórica. Cristo não inventou a páscoa, todos nós sabemos que essa festa já era comemorada há milênios antes dele. Ele próprio, por diversas vezes (relatam os evangelistas), se dirigira a Jerusalém para celebrar a Páscoa. Era assim que todos os israelitas faziam. Até então, a Páscoa simbolizava, para eles, a libertação da escravidão do Egito, fato que já era considerado o ponto central da fé israelita: a conquista da liberdade perante um adversário muito mais poderoso e bem equipado, tudo conduzido por Javeh, numa demonstração de predileção por aquele povo e provando Sua fidelidade com a aliança tratada com os antigos patriarcas.

Com efeito, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estáveis em determinados locais, onde passaram a plantar e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério norte, corresponde à primavera e coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após o frio do inverno, começando a produzir os primeiros frutos da terra, passou a ser festejado como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.

A páscoa, portanto, já tinha um significado especial para a espécie humana, mesmo antes de alguns acontecimentos importantes terem ocorrido nessa época do ano, vindo a trazer um significado renovado para essa festa, dentro da tradição judaico-cristã. Assim é que a fuga dos hebreus do Egito, onde eles viviam como escravos, se deu por ocasião da páscoa. Diferente daquela narração épica do Êxodo, alguns historiadores acreditam que ocorreu, de fato, uma fuga em massa dos hebreus, liderados por Moisés. Tudo fora combinado para que aproveitassem os festejos da páscoa e assim tivessem mais chance de que aquela fuga fosse confundida com alguma forma celebrativa e isso os faria ganhar tempo, antes que o exército do Faraó se pusesse a caminho para recapturá-los. Assim foi que o grupo de fugitivos somente foi alcançado quando já haviam atravessado o Mar Vermelho, portanto, já fora dos limites territoriais do Egito. Só que os hebreus conseguiram atravessar o mar com a maré baixa, porém quando os soldados do Faraó chegaram, a maré já estava enchendo e assim eles tentaram alcançar os fugitivos, mas o mar os impediu. No livro do Êxodo (14, 21) há uma referência a isso, quando diz que Moisés estendeu a mão sobre o mar e durante toda a noite soprou vento forte, dividindo as águas. Segundo essa versão não bíblica da história, não houve uma “divisão” das águas em colunas (como aparecem nas versões filmadas por Hollywood), mas o vento fez a maré recuar, a ponto de que os israelitas conseguiram atravessar até a outra margem, com água rasa. Quando os egípcios chegaram, aquele vento forte havia cessado e eles tentaram seguir pelo mesmo caminho, mas então a profundidade da água não permitiu que eles atravessassem, e com isso os israelitas puderam seguir seu caminho. Aquela narração do Êxodo, em uma linguagem carregada de símbolos, fazia parte da catequese rabínica, para comprovar diante dos jovens, que não haviam passado por aquele momento, a proteção de Javeh para com o seu povo.

Para os hebreus, portanto, a Páscoa lembrava essa trajetória heróica dos seus antepassados e desse modo a Páscoa era a festa da liberdade reconquistada, era a principal festa do povo hebreu. Tanto assim que os chefes dos sacerdotes queriam “resolver” a situação de Jesus antes da Páscoa, porque se entrasse o período festivo, as pessoas iriam se dedicar à festa e não seria possível manipular a multidão para “aprovar” a condenação de Jesus, conforme eles estavam maquinando. Ocorre que tudo isso já estava no plano salvífico divino. Assim que Jesus, ao chamar os apóstolos para irem com ele a Jerusalém, para aquela páscoa especial, fez tudo diferente: uma entrada triunfal, montado num jumento, aclamado pela população. Quantas vezes Jesus já havia ido a Jerusalém para a Páscoa e não tinha feito assim. Mas aquela Páscoa iria ganhar um significado novo, aquela iria ser a Sua páscoa e, com isso, a nossa Páscoa verdadeira e definitiva. Propositalmente, Jesus fez coincidir a Sua ressurreição com as festividades da Páscoa, para dar a esta comemoração um novo significado. As primeiras comunidades cristãs, de início, não perceberam isso e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição hebraica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, essa devia ser a nova referência para as festividades pascais.

Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.

segunda-feira, 25 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR - 24.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – 24.03.2013

Caros Confrades,

Conforme é do conhecimento de alguns, ontem foi o meu aniversário e a comemoração demorou um pouco mais, de modo que somente agora estou aqui repartindo com vocês algumas reflexões sobre a parasceve ou da preparação da Páscoa. A propósito deste termo, trata-se de uma transliteração do termo grego 'paraskeve', que por sua vez era a tradução da palavra hebraica 'prosabbaton' (preparação para o sábado). De fato, os judeus utilizavam esta palavra para denominar a sexta feira antes do sábado em que era celebrada a páscoa deles. Eu estou utilizando aqui o termo numa extensão proposital para a semana de preparação para a Páscoa do Senhor, que se inicia no domingo dos ramos.

Conforme os Colegas devem também recordar, a festa da páscoa, até o tempo de Cristo, era celebrada no sábado, porque este era o dia santificado para os judeus. A tradição mudou esta celebração para o dia de domingo, em homenagem à ressurreição de Cristo e ainda para indicar uma nova regra celebrativa, diferente dos costumes antigos dos patriarcas, pois Cristo afirmou, por diversas vezes, que viera trazer um novo mandamento, uma nova proposta religiosa, um novo estilo de adorar o Pai, deixando de lado a figura tradicional do Javeh veterotestamentário. Mas é de se recordar que Cristo celebrava a páscoa do seu tempo no mesmo dia da tradição judaica. E quando ele convocou os apóstolos para a 'última ceia', ali Ele estava antecipando a celebração da Páscoa definitiva, como assim se configurou o seu sacrifício supremo, de uma vez por todas. Ele não podia esperar até o dia comemorativo, porque já sabia do que lhe aconteceria nos dias seguintes.

A primeira leitura, do profeta Isaías (50, 4-7), na verdade, do deuteroIsaías, traz a conhecida imagem do servo sofredor, aquele que não foge diante dos castigos, que oferece a outra face a quem lhe bateu e não se afasta diante de bofetões e cusparadas. E complementa: “ o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. ” O texto de São Jerônimo, traduzido literalmente, diz assim: por isso, expus o meu rosto como pedra duríssima, pois sei porque não ficarei desconcertado. Eu acho simplesmente impressionante como o Profeta conseguiu antever, com tamanha precisão de detalhes, aquilo que iria acontecer com o Ungido (Messias).

Na leitura do evangelho deste domingo, que descreve a condenação e crucifixão de Jesus, há um trecho que reproduz o momento em que o 'mau ladrão' com Ele crucificado, escarnece dizendo: “salvou os outros, salva agora a ti mesmo”. A resposta para esta provocação está na passagem de Isaías acima, porque Jesus realmente salvou várias pessoas, livrando-as do pecado e de sofrimentos corporais, mas a Ele próprio quem vai salvar é o Pai. Daí as duas outras expressões de grande significado contidas na descrição da paixão: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”; e outra: “tudo está consumado”. Jesus veio para o mundo humano a fim de cumprir a missão que o Pai lhe destinou, então não seria Ele próprio o gestor desta empreitada, e sim o Pai que O enviou. As diversas manifestações miraculosas realizadas em outras pessoas tinham como finalidade levar aquelas pessoas a acreditarem n'Ele, na Sua missão, na Sua divindade, na Sua entrega total ao cumprimento da promessa. Vejamos o grande testemunho contido nos versículos 47 e 48 do cap. 23 de Lucas: “O oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus dizendo: 'De fato! Este homem era justo!' E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para casa, batendo no peito.” O sacrifício de Cristo começou a produzir seus efeitos logo logo, de modo imediato, após o “consumatum est”. Nem foi preciso esperar a Sua miraculosa ressurreição para que os resultados pudessem ser notados.

Eu sempre ficava perguntando pra mim mesmo e tentando encontrar uma explicação razoável para a transcrição dos diálogos acontecidos por ocasião da crucifixão de Jesus, pois os seus seguidores estavam todos olhando de longe. O próprio evangelista Lucas afirma isso: “Todos os conhecidos de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde a Galiléia, ficaram à distância, olhando essas coisas. (Lc 23, 48) ” Então, naquela balbúrdia que devia acontecer no entorno dos crucificados (Jesus e os dois malfeitores), com aqueles ruídos de marteladas, soldados bêbados proferindo imprecações, oficiais militares dando ordens e coordenando os trabalhos, quem estaria prestando atenção no que um “condenado” estaria falando? Até porque os crucificados se contorciam em espasmos de dor e já estavam fracos fisicamente, não tinham condições de gritar ou falar alto o suficiente para serem ouvidos à distância.

Nesse contexto, quem teria escutado quando o 'bom ladrão' repreendeu o imprecador que insultava Jesus e quem escutou o que Jesus teria lhe falado: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”? Na hora em que Jesus, fazendo grande esforço, gritou em aramaico: Eli, Eli, lama satabactani (cf. Mc, 15, 34), algum dos soldados ouviu e não entendeu e interpretou que Ele estava chamando por Elias. Lucas nem menciona esse episódio. Consta nas narrações que a crucifixão de Jesus teria sido por volta da hora sexta (meio dia) e que se fizeram trevas no local até a hora nona (3 da tarde), cf. Lucas, 23, 44, quando Jesus entregou o espírito ao Pai. Certamente, as cruzes com os condenados ficaram guarnecidas por soldados, para evitar que fossem libertados, ou pelo menos Jesus fosse libertado por aqueles que n'Ele acreditavam. É possível que algum desses guardas tenha escutado e tenha retransmitido isso a alguém, de modo que o episódio fosse se espalhando de boca em boca, até chegarem a ser escritos nos primeiros documentos, donde se originaram os evangelhos. Mas é possível também que esses diálogos tenham sido criados pela própria comunidade, com o objetivo de edificação dos fiéis e como corolário dos ensinamentos que Cristo havia repassado no seu tempo de pregação pública.

Do ponto de vista fático, permanece a incógnita. Mas do ponto de vista catequético e doutrinário, os diálogos guardam total coerência com o que Jesus ensinou e praticou, de modo que o seu conteúdo é totalmente verossímil. Esses comentários que faço não tem a finalidade de colocar em descrédito os textos sagrados, mas de mostrar que devemos entendê-los não como “atas” ou “reportagens” dos fatos ocorridos durante a vida histórica de Cristo, e sim como relatos de testemunhas e expressões de fé das primeiras comunidades, as quais são críveis porque estão situadas temporamente bem próximas dos fatos. Devemos ler e compreender o texto bíblico pelo seu contexto, não como quem lê uma matéria jornalística publicada nos periódicos atuais. Isso nos ajuda a ultrapassar dúvidas infundadas e, principalmente, a afastar discussões inúteis sobre determinadas passagens tidas como contraditórias da Biblia. A nossa fé deve estar adiante e acima desses detalhes.

Devemos sempre nos lembrar ainda que os sofrimentos de Cristo são a transição para a Sua glória, pois não há como falar em ressurreição sem falar em morte, no entanto, o que deve ser ressaltado nas comemorações da semana santa há de ser muito mais a ressurreição do que a paixão. As encenações teatrais da Paixão de Cristo formam uma tradição mundial, até filmes já exploraram exaustivamente o tema, no entanto, não é esse sentimentalismo e essa consciência de culpa que deve nos servir de estímulo, e sim o resultado final disso tudo, ou seja, o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. O sacrifício de Cristo não se esgota na paixão, mas se corrobora na ressurreição. Os sofrimentos são constantes na nossa vida, mas Jesus nos ensina a não nos concentrarmos neles nem nos deixarmos sucumbir por eles, porque Ele nos deu o maior exemplo de que todo sofrimento será superado e toda morte será vencida, e o que nos coloca nesta perspectiva é a nossa fé sempre viva e produtiva. Fé sem obras não existe.

Portanto, meus amigos, vivamos e comemoremos as festividades desta semana santa dentro do espírito da verdadeira 'parasceve', isto é, a preparação para a Páscoa do Senhor, que nos conduz à verdadeira vida. E, para não perder a tradição que aprendemos no Seminário, rezemos: Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum.



domingo, 17 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - A CILADA DO PRECONCEITO - 17.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – A CILADA DO PRECONCEITO – 17.03.2013

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para leitura um trecho bastante conhecido pelo grande público, que é o caso da mulher flagrada em adultério e que deveria ser apedrejada, destacando a sabedoria de Jesus para fugir à cilada do preconceito e da hipocrisia. Nas outras leituras, destaca-se o tema da renovação, bem relacionado com a recente eleição do Seráfico Papa, que deverá renovar e revitalizar a Santa Madre Igreja.

Na primeira leitura, o projeta Isaias (43, 18) nos dirige um recado direto: “'Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis? ” Pois é, será que não somos capazes de reconhecer as coisas novas que Deus nos faz constantemente? Dois fatos recentes mobilizaram as atenções do mundo inteiro, tanto entre cristãos, católicos, quanto entre pessoas das mais diversas tendências religiosas: a renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco. Por certo, esta leitura do profeta Isaías já estava prevista para ser tema deste domingo desde muito tempo atrás, mas o Espírito de Deus conduziu os fatos de modo que ela se tornou ainda mais significativa neste tempo de mudanças. Impossível não reconhecer as coisas novas que já estão acontecendo e, de certo modo, tentar adivinhar as outras novidades que ainda deverão surgir na sequência desses fatos. Esse tema de Isaías foi utilizado por Paulo naquela polêmica levantada pelos cristãos judaizantes, que queriam restabelecer a obrigação da circuncisão como complemento do batismo, ao que Paulo argumentou: deixem de olhar o passado e mirem os fatos futuros, em Cristo, Deus fez novas todas as coisas.

Na segunda leitura, a Filipenses (3, 8-14), Paulo prossegue nessa mesma linha de raciocínio, acerca das novidades, quando ele diz que perdeu tudo por causa de Cristo. O que Paulo sacrificou para aderir plenamente à missão que Cristo lhe confiou não consistiu apenas em bens e benefícios, mas no abandono de si mesmo pela causa do evangelho. Ele não tinha mais família, nem casa, nem emprego, nem salário, sua vida era viajando de um lugar para outro, a pregar o evangelho, converter pessoas e constituir novas comunidades. Paulo foi o verdadeiro herói da difusão do cristianismo na Europa, desde a Grécia até Roma. A própria comunidade de Roma foi fundada por Paulo, aquela onde Pedro foi exercer sua missão episcopal posteriormente, transformando-a na Diocese base do cristianismo mundial. Pedro era antes titular da comunidade de Jerusalém, tendo-se transferido para Roma após o sucesso da pregação de Paulo e a grande adesão ali conseguida da população romana ao evangelho de Cristo. Paulo diz que considera lixo tudo aquilo que ele sacrificou, comparado à glória de estar unido a Cristo, em comunhão com seus sofrimentos, tornando-se semelhante a Ele na sua morte. No mesmo sentido da mensagem de Isaías, na primeira leitura, Paulo também afirma que “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus. ”(Fl 3, 13) Veremos como, de forma indireta, essa temática do esquecer o passado e olhar para a frente está também presente na leitura do evangelho.

No evangelho (Jo 8, 1-11), o apóstolo João mostra a sabedoria de Jesus ao resolver magistralmente uma autêntica “sinuca” em que lhe colocaram os fariseus e os mestres da lei, na tentativa de encontrarem algo para usar como acusação. Antes de abordar o conhecido episódio da mulher adúltera, detenhamo-nos em alguns detalhes da leitura, que são também significativos. Diz João no início deste capítulo 8 que Jesus havia ido ao monte das Oliveiras para orar e, voltando de lá, foi direto para o templo. É interessante observarmos essa informação, porque Jesus não foi àquele monte apenas na noite em que Judas chegou lá com os soldados, ao contrário, Judas já levou os soldados para lá porque sabia que Jesus tinha o costume de orar durante a noite no referido monte. Essa oração noturna de Jesus, por diversas vezes referenciada nos evangelhos, inspirou os monges medievais para os ofícios divinos durante as madrugadas, costume que chegou até nós, nos anos 60, o que causava grande desconforto naquelas noites frias de Guaramiranga, sem energia elétrica naquela época, quem passou por essa experiência lembra muito bem do seu significado. Aliás, na missa jubilar do Monsenhor Verçosa, no Seminário da Prainha, o Dom Frei Adalberto justificou na homilia que essa pedagogia rígida e até dolorosa foi necessária para moldar as têmperas daqueles que a vivenciaram, contribuindo para torná-los pessoas bem formadas e cidadãos dignos de dar exemplo à sociedade.

Outro ponto acessório a destacar no contexto do episódio da mulher adúltera é o da discriminação que pesava sobre a mulher, associada à hipocrisia masculina. A mulher, se fosse apanhada em adultério, deveria ser apedrejada até a morte, conforme a lei de Moisés, todavia, todos sabemos que a mulher não adulterava sozinha, para isso ela devia ter uma companhia masculina. Ora, se a mulher foi flagrada em adultério, o seu parceiro também o foi e, portanto, era possível que aqueles ali presentes o conhecessem, talvez até mesmo ele estivesse ali no meio do grupo com uma pedra na mão. Quanta desfaçatez e quanta mentira juntas. Fico pensando quantas mulheres aquele grupo já teria apedrejado e fico pensando também na sorte grande daquela mulher ao ter encontrado Jesus no seu caminho. O evangelista não registrou o seu nome e, ao que eu saiba, a tradição também não traz essa informação, mas certamente, ela era uma daquelas mulheres piedosas, que acompanharam o trajeto de Cristo a caminho do calvário e choraram por Ele.

A estratégia dos fariseus e mestres da lei era poderosa e eles pensavam que haviam colocado Jesus contra a parede, deixando-o numa situação sem saída, qualquer que fosse a sua resposta. “Moisés, na lei, mandou apedrejar essas mulheres, que dizes tu?” Ora, se Jesus dissesse “sim”, sua pregação sobre o amor e o perdão estaria desmoralizada e a sua palavra se tornaria sem qualquer valor, levando a sua legião de seguidores ao descrédito e inviabilizando o seu projeto do novo reino de amor. Se respondesse “não”, pior ainda, estaria infringindo a lei de Moisés e na presença de dezenas de testemunhas, isso seria suficiente para ele ser acusado de infração legal e ser condenado no pretório. Uma cilada tão bem arquitetada só podia ser resolvida de modo favorável por alguém que possuía uma mente especial, mesmo prescindindo da natureza divina de Cristo. Ele não se abalou com a indisfarçável má-fé dos fariseus e serenamente passou a escrever no chão com o dedo. O evangelho silencia a respeito das palavras que Ele estaria escrevendo. Embora a tradição afirme que seriam os pecados dos que estavam ali presentes, na minha opinião, Jesus não escrevia nada propriamente, ele fez aquilo como uma contra estratégia para provocar os fariseus. Obviamente, eles não foram lá perto tentar ler o que ele escrevia, mas ficaram intrigados com aquilo. O que Ele estaria escrevendo? Intimamente, eles tiveram medo de terem a sua intimidade exposta, pois embora não acreditando na divindade de Jesus, eles sabiam da sua fama de realizar milagres e ter um poder sobrenatural. Então, apenas insistiram na mesma pergunta: o que dizes sobre isso?

Meus amigos, Jesus percebeu nessa insistência deles um quê de indecisão e temor, a arrogância deles havia se transformado em fraqueza e aquela pergunta repetida era sinal claro da confusão que se passava nas suas mentes. A resposta de Jesus não poderia ter sido mais magistral: quem dentre vós nunca cometeu nenhuma infração, pode começar a apedrejar, porque só tem moral para reclamar dos pecados dos outros aquele que não os tem. Então, diz o evangelista, Jesus se inclinou novamente e voltou a rabiscar no chão, enquanto eles foram se retirando um a um, a começar pelos mais velhos. A pobre mulher, tremendo e temendo pelo que poderia ocorrer, foi a única que não correu, bem que poderia ter fugido quando os seus acusadores se afastaram. Mas não, ela esperou pelo perdão de Cristo, ali naquele momento, ela passou por uma profunda conversão, e foi o que Jesus percebeu quando lhe disse: vai e não tornes a pecar. Isto é, esquece o passado, olha pra frente, daqui em diante farei novas todas as coisas na tua vida.

Meus amigos, que a nossa preparação para a Páscoa seja animada pelo tema das leituras de hoje: façamos novas todas as coisas, esqueçamos o passado e não olhemos para trás.


domingo, 10 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - DOMINGO DA RECONCILIAÇÃO - 10.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – DOMINGO DA RECONCILIAÇÃO – 10.03.2013

Caros Confrades,

Nas leituras deste 4º domingo da quaresma, destaco o tema da reconciliação presente nos vários textos lidos, dentre eles aquele conhecido episódio do “filho pródigo”, que a liturgia agora prefere chamar de “o pai misericordioso”.

Na primeira leitura, do livro de Josué (5, 9-12), temos a narração da primeira Páscoa que os israelitas comemoraram após adentrar na terra prometida. Javeh diz a Josué: 'Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito', isto é, agora vocês estão livres novamente, habitando a terra dos vossos pais, não precisam mais se preocupar com a escravidão dos egípcios. A reconciliação de Javeh com o seu povo se deu, finalmente, pelas mãos de Josué, sucessor de Moisés no comando dos israelitas pelo deserto. A primeira Páscoa celebrada em Canaã significa o cumprimento da promessa de Javeh e a renovação da aliança. O povo hebreu iria ainda passar por inúmeras agruras, fruto de sua infidelidade. Mas, naquele momento, a situação era de paz e prosperidade.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 5, 17-21), o apóstolo lembra que, por Cristo, Deus reconciliou o mundo com ele próprio e nos deu o ministério da reconciliação. Esta carta foi escrita num momento difícil para a comunidade de Corinto, envolta com a polêmica dos judaizantes e atormentada por adversários de Paulo, que teimavam em manter os antigos costumes judeus, mesmo depois de convertidos. Por isso, Paulo adverte: “Se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo. ” (2Cor 5,7) Os velhos costumes dos judeus não deviam mais ser invocados dentro da nova comunidade cristã, porque em Cristo tudo foi reconfigurado. E de uma forma bastante contundente, ele conclama toda a comunidade a deixar-se reconciliar com Deus. “Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20) para que não recebais em vão a Sua graça. A exortação de Paulo acerca da reconciliação se fazia necessária porque a comunidade de Corinto havia excluído os dissidentes e não aceitava mais a participação destes nas atividades eclesiais. Os críticos de Paulo, atendendo aos apelos dele na carta anterior, queriam retornar ao convívio fraterno, mas havia resistências. Por isso, Paulo até evitou de fazer uma viagem a Corinto, a fim de não exaltar ainda mais os ânimos, preferindo mandar a carta. Daí ele enfatizar que Deus nos deu, através de Cristo, o ministério da reconciliação.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32), temos a narração de uma das parábolas de Cristo mais conhecidas, ao lado da parábola do Bom Samaritano, que é a história do filho pródigo. Durante muito tempo, a liturgia identificava assim esse texto, reportando-se à figura do filho que esbanjou frivolamente todos os seus bens de herança e depois foi novamente acolhido pelo pai bondoso. Reformulando o tema, a liturgia agora mudou o foco do episódio para a figura do pai misericordioso, que acolhe o filho irresponsável e busca reconciliar o irmão mais velho, que não aceitava a situação.

Essa historinha contada por Jesus foi mais um cascudo na cabeça dura dos fariseus, que se consideravam os únicos merecedores da amizade com Javeh, porque eram os herdeiros legítimos da tradição veterotestamentária. Como sempre, os fariseus não entenderam a mensagem, porque estavam seguros demais dos seus méritos e, na sua estreiteza de pensamento, não podiam admitir que povos estranhos à aliança antiga passassem a ter assento junto com eles na mesa da refeição divina.

O contexto da narração se dá num momento em que Jesus conversava com publicanos e pecadores. Para começar, é importante lembrar que os fariseus se consideravam sem pecado. Eles cumpriam rigorosamente a lei, jejuavam, davam esmolas, iam à sinagoga nos sábados, isto é, faziam tudo como mandava a lei de Moisés. Embora essas práticas fossem, muitas vezes, apenas da boca pra fora, ou seja, eram mais para os outros verem do que atitudes feitas com convicção e fé, eles se consideravam pessoas exemplares e quem não fazia isso era considerado pecador. Além desses pecadores, porque não cumpriam a lei à risca, havia aqueles e aquelas que eram tido(a)s como pecadores públicos, como era o caso dos publicanos e das prostitutas. Dentro da mentalidade judaica, esses grupos viviam permanentemente no pecado e não tinham jeito, ou seja, não havia como deixarem essa vida marginal e passarem à condição de pessoas justas. Por outro lado, o simples contato com essas pessoas, ainda que fosse para um mero cumprimento, era suficiente para deixar impuro quem se aproximasse, havendo a necessidade de fazer depois um ritual de purificação, como alguém que toca uma pessoa com doença contagiosa, que precisa fazer assepsia.

O fato de Jesus ter comunicação com essas pessoas pecadoras públicas era fortemente censurado pelos fariseus e um dos motivos para que estes duvidassem da divindade de Jesus, porque um enviado de Javeh saberia da proibição legal de ter contato com essa gente 'imunda'. Daí que, conforme diz Lucas (15, 1), os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-los e Jesus os recebia, fato que gerava revolta nos fariseus. Por isso, Jesus os comparou ao filho mais velho, que ficou se roendo de ciúmes porque o irmão irresponsável retornou depois de uma temporada de aventuras e o pai, além de não repreendê-lo, ainda fez uma grande festa. Neste mesmo trecho (15, 7), que foi omitido na leitura litúrgica, Jesus justificou isso, quando disse que haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento. Por não compreenderem e nem aceitarem essa verdade, os fariseus terminaram perdendo a oportunidade de participar da festa pascal promovida pelo Pai.

Vê-se, meus amigos, nessa narração uma atitude acima de tudo preconceituosa por parte dos fariseus. Naquela época, tanto quanto hoje, existia a praxe de rotular as pessoas por critérios nem sempre justificáveis, mas que tinham aprovação social inconsciente. Naquela época, eram os publicanos e pecadores. Nos dias de hoje, são as pessoas humildes, as de pouca instrução, alguns grupos minoritários que sofrem segregação por causa da cor ou pela opção sexual, sem falar também na discriminação que, muitas vezes, sofrem as pessoas de outras crenças religiosas, que são logo tachadas de herejes ou infiéis. Esses preconceitos que nos são repassados pelo processo de aculturação se alojam no nosso inconsciente e, de repente, nos surpreendemos fazendo atitudes que nós mesmos reprovamos quando vemos outros fazerem. O comportamento de Cristo, acolhendo a todos indistintamente, aliás, acolhendo com mais atenção aqueles que eram os mais excluídos na sociedade farisaica, deve nos servir de exemplo para a nossa vida cotidiana, a fim de nos vigiarmos para não cairmos no mesmo falso moralismo e na mesma falsa fé dos fariseus.

Vemos também, na pedagogia paulina, uma atitude de respeito que serve de modelo para nós, educadores de nossos filhos ou de alunos, que é a prática da humildade. Paulo tinha conhecimento da rebeldia de seus críticos que viviam na comunidade de Corinto, todavia, não se prevaleceu da sua autoridade de apóstolo e enviado por Cristo para impor o seu pensamento. Ao contrário, ele muito humildemente “suplicou” aos coríntios para que se deixassem reconciliar com Deus, não ameaçou nem impôs condições para isso. Ao apelar para o ministério da reconciliação, ele ensinou que, mesmo quando o irmão está numa posição errônea, não se deve expor os seus defeitos nem apelar para ameaças e castigos, como estratégia de convencimento porque, diz ele, “em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas”, mas ao contrário, “aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.” (2Cor 5, 21).

Que o Divino Mestre nos ensine sempre a humildade no trato com os irmãos, exercitando cada vez mais e melhor o ministério da reconciliação como modelo da nossa vida de comunidade.


domingo, 3 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - CUIDADO PARA NÃO CAIR - 03.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – CUIDADO PARA NÃO CAIR – 03.03.2012

Caros Confrades,

Tomarei como referência para este comentário as leituras deste domingo (3º da quaresma) da carta de Paulo a Coríntios, com a advertência final: tome cuidado para não cair, e ainda do evangelho de Lucas (13, 1-9), que contem a parábola da figueira que não dava frutos.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (3, 1-8), vemos a vocação de Moisés, quando Javeh o escolheu para falar diante do Faraó, ele que não sabia falar nem tinha o dom da oratória. Desta primeira leitura, destacarei apenas a autodefinição que Javeh faz de si mesmo: “eu sou”, sem quaisquer complementos. De fato, Deus não tem complementos, ele é todo e integralmente um, tornando-se desnecessária qualquer outra explicação. De acordo com o Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão deste domingo, o verbo hebraico que é traduzido em português por “eu sou” tem um significado muito mais amplo do que a expressão em português, pois inclui também o sentido de 'fazer ser', ou seja, além de ser absolutamente, Ele também faz as coisas serem. Seria uma autodefinição de Javeh como o criador do universo. Tem assim um significado ativo e dinâmico de ser, não o aspecto estático que a expressão em português sugere.

Passando ao tema selecionado, vemos na carta de Paulo a Coríntios (1Cor 10, 1-6) a menção aos patriarcas e aos hebreus que atravessaram o deserto, favorecidos por Javeh comendo o maná e bebendo a água do rochedo, porém desagradaram a Deus e morreram antes de chegar na terra prometida. O próprio Moisés também teria recebido o mesmo castigo por haver duvidado do poder de Javeh. Paulo reproduz uma figura que era muito conhecido dos judeus daquele tempo, que era a imagem do Deus furioso e vingativo, que amava o povo mas não os poupava, quando cometiam infidelidades. Então, diz Paulo, estes fatos devem ser vir de advertência para nós, para que não repitamos as mesmas atitudes reprováveis cometidas pelos nossos antepassados, que foram alvo do anjo exterminador. Vejam bem “anjo exterminador”, uma figura cultural do povo hebreu que parecia indicar algo que, nos dias de hoje, chamamos de “castigos de Deus”.

Por que Paulo estaria usando essas imagens do tempo antigo numa época em que Jesus Cristo já havia dito que tinha vindo abolir aqueles costumes com o seu novo mandamento? Na verdade, Paulo faz referência ao rochedo donde brotava a água no deserto, vendo neste rochedo uma prefigura de Cristo, a fonte da água viva. Verifica-se, na verdade, um esforço de Paulo para integrar a antiga aliança com a nova aliança, através de uma catequese que aproveitasse os conhecimentos da tradição hebraica, pois o cristão de Corinto eram, em grande parte, judeus convertidos. Ficava, portanto, mais fácil para Paulo lançar mão dos conceitos da tradição conhecida por eles para fazer a relação com a mensagem de Cristo. Havia, entre estes judeus, um conceito que nós ainda encontramos na mentalidade religiosa do nosso povo de que, quando acontece algo de ruim com alguém, aquilo foi um castigo de Deus. Isso era entendido, pelo raciocínio inverso, que quando alguém havia sido beneficiado com algo de bom, isso seria um prêmio de Deus, uma espécie de reconhecimento de Deus pelos méritos desta pessoa. Daí a advertência de Paulo: quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair. (1Cor 10, 12).

O “estar de pé”, neste contexto, significa a autoconfiança na salvação, porque se a pessoa não foi castigada, é porque Deus se agrada dela; o “cair” significa sofrer algum revés, passar por alguma dificuldade, enfrentar uma adversidade. Então, diz Paulo, quem pensa que está de bem com Deus porque não foi castigado e, ao contrário, pensa que o irmão que sofre é porque não está de bem com Deus, deve mudar essa mentalidade. Se não houver “conversão”, isto é, se não houver mudança de mentalidade, pode acontecer o mesmo que aconteceu no deserto: virá o “anjo exterminador” já não para tirar a vida do corpo, mas representado na presunção de salvação. Com isso, ele quer significar que a conversão não é uma atitude que acontece uma vez na vida e pronto, mas ela deve ser renovada a cada dia, na nossa consciência e nas nossas atitudes. O batismo não é garantia de salvação por si só, se não for complementado com um trabalho contínuo de renovação interior, pela leitura e meditação da escritura, pela inserção dos ensinamentos de Cristo no nosso dia a dia. Por isso ele adverte: quem pensa que está em pé (de bem com Deus, com a salvação assegurada), tenha cuidado para não cair (não deixar a presunção e o orgulho embotarem a sua visão de fé).

Este é também o ensinamento que retiramos da passagem do evangelho de Lucas (13, 1-9), quando os judeus falaram a Jesus sobre alguns do povo que haviam sido mortos por ordem de Pilatos, que confundiu o ritual de sacrifícios de animais deles com alguma ação de rebeldia, de modo que eles foram assassinados sendo inocentes. Por isso, Jesus pergunta aos próprios portadores da notícia: por acaso, vocês pensam que estes que morreram eram mais pecadores do que os outros? Dentro daquela mentalidade judaica, essa desgraça acontecida com cidadãos inocentes era entendida como um 'castigo divino' por alguma coisa imprópria feita por eles. Então, Jesus aproveita a ocasião para ensinar que não é nada disso, que não se deve associar o sofrimento de alguém com uma espécie de 'vingança' de Javeh, porque isso pode acontecer a qualquer um.

Para ilustrar este mesmo ensinamento, Jesus cita também um episódio ocorrido por aqueles dias, em que uma torre de pedra, na localidade de Solié, havia desmoronado, matando 18 hebreus. Segundo os estudiosos da arqueologia, essa torre teria existido nos arredores de Jerusalém e era próxima de uma piscina natural famosa na região, a piscina de Siloé, que estava constantemente cheia por ter sido construída num local que nós aqui chamamos de “olho d'água”. Era uma espécie de balneário público e havia sempre gente por lá. Provavelmente, a própria consistência insegura do solo próximo da nascente de água teria afetado os alicerces e levado a torre de pedra a cair. Então, Jesus usa este conhecido episódio para reforçar a sua catequese: vocês pensam que aqueles que morreram soterrados eram mais pecadores do que os outros habitantes de Jerusalém? E repete a mesma conclusão: não se trata de vingança de Javeh, mas trata-se de algo que pode acontecer com qualquer um. É um fato da vida, que não está relacionado com o poder divino, mas com a negligência ou ignorância dos seres humanos. Trazendo para os dias de hoje, Jesus diria que os tsunamis, o desequilíbrio ecológico do planeta, as epidemias disseminadas por toda a parte, a violência generalizada não são castigos divinos, mas são resultado da ação egoísta e desastrosa comandada pelo próprio homem.

Então, Lucas conclui com a parábola da videira que não dava frutos. Era uma árvore bonita, frondosa, de boa aparência, mas infrutífera. O “dono” ficou irritado: já faz três anos que eu venho aqui e não vejo frutos nesta árvore, pode cortá-la. O “capataz” intercedeu pela árvore: vamos dar mais uma chance a ela, vamos colocar adubo, podar, aguar, vamos ver se os frutos chegarão na próxima safra. Ora, meus amigos, quem esse “dono”? É Javeh, claro. E quem é o “capataz” que intercedeu pela árvore? É o próprio Cristo. Ele veio cumprir este plano de Javeh (adubar, podar, aguar) a árvore do povo, pra ver se ainda tinha jeito. O povo havia se negado a ouvir os profetas e se recusado a cumprir a promessa, ou seja, praticava só aquela religião de fachada, que desagradava Javeh por não ter raízes firmadas no coração. Quantos profetas, desde Moisés, Javeh havia mandado pra ensinar o povo, mas este sempre voltaram aos seus ídolos. Então, com a catequese de Jesus, Javeh estava dando mais uma chance à árvore do povo de Deus: vai lá, conversa com esse povo, mostra a eles quem Tu és, vejamos se eles se convertem e produzem frutos... não deu certo. O povo não entendeu nada e continuou a adorar a Javeh apenas com atitudes exteriores, sem raízes no coração, e essa religião enganosa pode até enganar os outros, mas a Javeh não engana.

Meus amigos, era como se Jesus estivesse dizendo: eu sou a última chance de vocês, acreditem em mim e façam o que eu estou dizendo. Os ouvidos dos judeus estavam totalmente surdos e o adubo e a aguação não surtiram nenhum efeito. Então, ouçamos São Paulo e não deixemos que o mesmo venha a acontecer conosco. Cuidemos para não cair na tentação de achar que, por cumprir suas obrigações religiosas, mas sem ter o coração contrito, alguém está sendo agradável a Deus.