segunda-feira, 27 de julho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - O PÃO DA FARTURA - 26.07.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – O PÃO DA FARTURA – 26.07.2015

Caros Leitores,

As leituras litúrgicas deste 17º domingo comum preconizam o milagre eucarístico, que seria depois realizado por Jesus, perpetuando-se na história e chegando até nós. Nas primeiras manifestações, a figura de destaque é o pão de trigo, cuja fartura saciou a fome de milhares de fiéis, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Por fim, ao despedir-se, Jesus instituiu-se a si próprio em pão da fartura, não somente para saciar a fome da natureza, mas sobretudo para locupletar o espírito com o pão vivo e imortal.

Na primeira leitura, retirada do Livro dos Reis (2Rs 4,42), narra-se um fato miraculoso operado pelo profeta Eliseu vários séculos antes de Cristo, como que antecipando o futuro milagre da multiplicação dos pães, que seria realizado pelo Messias. Num tempo de grande seca e, portanto, de fome para o povo, Eliseu ganhou de presente 20 pães, mas não os recebeu, porque seria egoísmo de sua parte saciar a própria fome, enquanto o povo padecia com ela. Então, ele mandou que os pães fossem distribuídos para o povo. O seu assistente ficou preocupado: como vou distribuir tão poucos pães para tantas pessoas famintas? Ele, prudentemente, deve ter logo imaginado o tumulto que isso iria ocasionar e as brigas entre as pessoas disputando os pedaços, podendo até ocorrer agressões e ferimentos e ele mesmo poderia ser vítima do episódio. Mas o Profeta o tranquilizou: O Senhor disse – comerão e ainda sobrará. E assim foi a primeira vez do pão da fartura.

A imagem do pão está sempre presente em diversas passagens bíblicas, seja do antigo seja do novo testamento, porque o pão sempre foi e continua sendo o alimento básico do ser humano. Em todas as culturas, o pão se apresentou como um alimento de primeira ordem. Feito de trigo, de milho, de mandioca, de batata, daquela massa que for mais abundante na região, o pão é um símbolo da própria vida que ele alimenta. Por causa da sua importância cultural, o pão é ultrapassa a pura matéria física para significar os diversos dons que acompanham a vida humana, além da simples satisfação da fome corporal. O saciamento da fome induz ao bem estar, à alegria, à boa convivência, faz elevar o espírito para as realidades sobrenaturais, então o pão é muito mais do que um alimento material, é um verdadeiro mantenedor do ser humano. Foi por esse motivo que Cristo, quando quis deixar um sinal perpétuo da sua presença no meio da humanidade, adotou o símbolo do pão, transformando a Si mesmo em pão da vida.

No relato do evangelista João (6, 1-15), Cristo revive a cena histórica do profeta Eliseu, diante da multidão que o acompanhara de longe, na sua travessia do Lago de Tiberíades, encontrando-o na margem oposta. Ele próprio fez uma provocação aos apóstolos, indagando-lhes pedagogicamente, mesmo já sabendo da solução que iria adotar: onde iremos arranjar pão pra esse povo todo comer? Foi quando André trouxe a informação: tem ali um rapaz com cinco pães e dois peixes, mas de que adianta isso para tanta gente? Jesus só não repetiu o refrão de Eliseu (“comerão e ainda sobrará”), mas fez que o povo sentasse e mandou distribuir os pães e os peixes, depois de abençoá-los. E o milagre da fartura se repetiu, todos comeram até ficarem saciados e ainda sobraram doze cestos com os pedaços deixados. Juntem tudo, para que nada se perca. Aquelas sobras, provavelmente, poderiam saciar novamente outros famintos, pois como vimos no evangelho do domingo passado, as pessoas estavam sempre onde Jesus e os apóstolos estavam, de modo que eles não tinham uma folga nem para comer.

Pois bem, nesse relato do evangelista João, podemos destacar alguns detalhes interessantes. Primeiro, a preocupação de Jesus com a fome daquelas pessoas. As pessoas não foram se queixar para Ele, ao contrário, estavam ali para ouvi-Lo. Mas Jesus sabia que, sem a alimentação devida, a mente não funciona, a concentração não ocorre, o aprendizado é nulo. Então, antes de alimentar o espírito, é necessário alimentar o corpo. Isso significa que a Igreja não pode se descuidar dos aspectos materiais da vida social, da melhoria das condições de vida e de trabalho dos fiéis, ou seja, não compete às autoridades religiosas apenas celebrar missas e oficiar os sacramentos, mas junto com isso, deve ter a preocupação com a vida material. Junto com o pão da palavra, os pastores devem também preocupar-se com a assistência material das pessoas mais carentes da comunidade, enquanto os fiéis melhormente aquinhoados devem colaborar para a efetivação desse serviço. Viver a religião não deve se resumir a frequentar o templo nos dias celebrativos, fazer as novenas e rezar o terço. Isso é importante, sem dúvida. Mas ficam faltando as “obras” de caridade, que devem ser inseparáveis da fé.

Outro detalhe que importa destacar é que o milagre de Jesus foi possibilitado pela presença de um rapaz trazendo cinco pães e dois peixes. Ele poderia ter feito o milagre independentemente disso, podia ter transformado até pedras em pão ou ter feito cair pão das nuvens, mas Ele não quis assim. Isso significa que Deus prefere agir por nosso intermédio, com a nossa colaboração, mesmo para fazer as coisas mais extraordinárias. Santo Tomás de Aquino ensinava, utilizando a terminologia filosófica de Aristóteles, que Deus age por causas segundas. Essas “causas segundas” são as ações indiretas. Ele pode atuar de forma direta e imediata, mas muitas vezes, Deus se serve de nós, de um coirmão ou coirmã nosso(a) para operar prodígios e, nesse caso, Deus nos honra grandemente agindo por nosso intermédio. Quando Ele nos dá fartura de bens materiais, Ele também espera que nós contribuamos com maior generosidade para o serviço dos irmãos. É bem verdade que, nas sociedades modernas, tais obras assistenciais devem ser acionadas pelas autoridades públicas, porém, mesmo que isso aconteça (o que nem sempre ocorre), não ficamos dispensados de colaborar com a nossa parte. Portanto, nós precisamos estar sempre disponíveis para Deus agir por nosso intermédio, através da nossa fé operante, através do nosso exemplo e do nosso testemunho. Muitas vezes, nós nem atentamos para isso, mas as nossas atitudes estão sendo percebidas por outras pessoas e o nosso bom exemplo pode estar sendo decisivo para que um irmão, momentaneamente fraco na fé, ganhe força e supere um obstáculo na sua vida. Se deixarmos Deus agir por meio de nós, nós também poderemos ser esses agentes transformadores, sem que isso necessariamente cause em nós canseira ou preocupação. Na nossa vida cristã cotidiana, as nossas atitudes normais de cada dia podem se transformar em importantes instrumentos divinos para a realização de obras valiosas na sociedade.

Quando Jesus, na última ceia, serviu-se da espécie do pão para tornar-se presente permanentemente no nosso meio, ele quis associar a Si próprio a este alimento, que desde os primórdios da raça humana tem-se manifestado como algo indispensável. Assim como o pão da massa material é um artigo universalmente inerente às sociedades humanas, Jesus quis que o seu corpo-pão tivesse a mesma presença e mesma participação na nossa vida. Eu, particularmente, sinto um certo desconforto quando vejo a celebração eucarística sendo realizada com aquela composição do trigo, que chamamos de hóstia, porque me dá a impressão que assim nos afastamos da verdadeira intenção de Cristo, quando fez-se pão, visto que a aparência física da hóstia, embora sendo produzida com a mesma massa do pão, não tem nenhuma semelhança visual com este. E eu fico pensando que Cristo quis que o Seu corpo fosse associado ao visual do pão comum, aquele alimento básico e essencial. Nós não tomamos café com hóstia, leite com hóstia, e eu acho que Cristo queria que fizéssemos uma associação visual entre o pão e Ele, que se elevasse à dimensão da fé. O pão que alimenta o corpo também, e ao mesmo tempo, alimenta o espírito. A mim, não parece que a vontade de Jesus esteja sendo cumprida integralmente.

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domingo, 19 de julho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - MISSÃO DO PASTOR - 19.07.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – MISSÃO DO PASTOR – 19.07.2015

Caros Leitores,

A temática das leituras litúrgicas deste 16º domingo comum aborda a figura do pastor. No contexto do povo hebreu, os dois estereótipos mais marcantes, em função das profissões mais comuns da época, eram o pescador e o pastor. Jesus Cristo faz uso, com frequência, desses dois modelos profissionais para reforçar a sua pedagogia catequética direcionada para o povo simples, de modo a facilitar para eles a compreensão da sua mensagem. Naquela época, assim como hoje, há os bons e os maus pastores e, dependendo disso, o cuidado do rebanho será bem ou mal exercido.

Na primeira leitura, o profeta Jeremias (23, 1-6), que viveu num tempo de muita infidelidade a Javeh, praticada pelo rei Josias, levando assim o povo de Deus à idolatria, lamenta pelos maus pastores: “ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho, diz o Senhor”. Por falta de compromisso do rei, o povo relegou a segundo plano a aliança com Javeh e dedicou-se ao culto dos ídolos, culminando com o cativeiro da Babilônia. Então Jeremias complementa: “virão dias em que farei nascer um descendente de Davi, que reinará com sabedoria e fará valer a justiça e a retidão na terra”. As palavras do Profeta fazem o prenúncio de Jesus Cristo, descendente de Davi, que viria a ser “o pastor” exemplar, que não deixará as ovelhas se perderem. Infelizmente, as palavras do Profeta, proferidas mais de 600 anos antes de Cristo, fazem eco nos dias de hoje, quando vemos maus exemplos de pastores, que levam à desagregação, em vez de promoverem a união do rebanho. O Papa Francisco vem fazendo gigantesco esforço de união das religiões, dando exemplos concretos de solidariedade e de ecumenismo, mas nem todos os prelados, infelizmente, seguem-lhe o exemplo. E no âmbito das comunidades, continuamos a ver lamentáveis atitudes de discórdias entre grupos, cada qual se autoproclamando verdadeiros discípulos de Cristo e desagregando o rebanho, em vez de agregar.

No evangelho de Marcos (6, 30-34), temos a narração de uma das poucas cenas em que transparece o lado humanitário de Cristo preocupado com o bem estar dos discípulos e, ao mesmo tempo, vendo a multidão que estava sempre ao seu redor. “Havia tanta gente chegando e saindo, que não tinham tempo nem para comer”, diz o evangelista referindo-se a Cristo e seus discípulos. Eles então se retiram de barco para um lugar deserto, a fim de descansarem um pouco. Ocorre que a multidão os acompanha ao longe, pelas margens do lago de Tiberíades, e observava para onde eles se dirigiam, de modo que chegou ao local rapidamente e assim, ao desembarcar, Jesus e os apóstolos já os encontram aguardando. Ou seja, nada de descanso para Jesus e os discípulos.

Diz o evangelista que o Mestre, vendo-os assim, longe de censurá-los ou de mandá-los embora, ao contrário, teve compaixão deles porque eram como ovelhas sem pastor. Cumprindo-se a profecia de Jeremias, acerca do descendente de Davi, que viria reinar com sabedoria e com justiça, Jesus percebe que o povo está mal pastoreado, isto é, os sacerdotes e mestres da lei não cumprem com a sua missão, por isso, mesmo estando fisicamente cansado, se compadece daquele povo e passa a ensiná-los muitas coisas. Na sequência desta leitura do evangelho de Marcos, temos o episódio da multiplicação dos pães, que não é lido neste domingo, para que o tema litúrgico se concentre na figura do Bom Pastor.

Conforme Jesus demonstrou com seu comportamento, a missão de evangelizar tem prioridade total e não deve ser adiada nem mesmo quando algumas condições não são muito favoráveis. Analisando certas atitudes dos nossos pastores atuais, vemos quantas vezes o comodismo e a intolerância levam a um desserviço do pastoreio. Esse pensamento me fez lembrar agora as histórias que nos eram contadas, em Messejana, pelo Frei Higino, pelo Frei Abel, pelo Frei Sabino, Frei Anastácio, que realizaram aquele serviço religioso que na época era chamado de “desobriga”, acho que todos se recordam disso. O missionário passava cerca de três meses fazendo um roteiro de viagem do interior do Nordeste, montado em um cavalo, passando de cidade em cidade para celebrar missas, fazer batizados e assistir a casamentos, naquelas comunidades aonde o padre só chegava uma vez ao ano. Eles contavam as precárias condições em que se hospedavam, se alimentavam, cuidavam da própria saúde, tudo em nome da fé e na fidelidade ao ideal franciscano, uma atitude de heroísmo exemplar, que muito nos entusiasmava. Sem deixar de mencionar os fatos pitorescos e as histórias engraçadas que, muitas vezes, estavam associadas às suas narrações.

Esses missionários capuchinhos seguiam liberalmente o exemplo de Cristo. Mesmo cansado e com fome, ele teve compaixão do povo e passou a ensinar muitas coisas. Façamos uma breve reflexão sobre essa expressão “teve compaixão do povo”, porque a linguagem comum não alcança o seu verdadeiro sentido. Ter compaixão não significa ter pena ou ter dó de alguém. O texto latino original diz que Jesus “misertus est super eos”, isto é, foi misericordioso com eles. A diferença entre ter pena e ter misericórdia é que ter pena indica um comportamento passivo, de lamentação, enquanto ter misericórdia leva a uma ação concreta no sentido de aliviar aquela situação. Uma coisa é ficar lamentando a situação de alguém e nada fazer (ter pena), outra coisa é verificar a carência de alguém e partir para uma efetiva ação em benefício daquela pessoa (ter misericórdia). Compaixão vem do verbo compadecer, isto é, com+padecer, padecer junto, colocar-se na situação do irmão que sofre não para fazer-lhe companhia no sofrimento, mas para retirá-lo daquele estado. Foi isso o que Cristo fez: vendo a multidão igual a um rebanho sem pastor, não ficou apenas lamentando a situação, mas acolheu a todos e passou a ensiná-los. E na sequência do texto, parte não lida neste domingo, multiplicou os pães para alimentá-los. Jesus não apenas distribuia o pão da palavra, que alimenta o espírito, mas também distribuia os pães e os peixes, que alimentam o corpo. Essa é a atitude exemplar de Cristo, no sentido de ter misericórdia do povo.

Analisando essa atitude de Cristo, meus amigos, podemos observar o quanto as lideranças religiosas, ao longo da história, se afastaram desse exemplo de cuidado não apenas com a dimensão espiritual do povo, mas também com as condições concretas da existência na sociedade. A religião verdadeira não é apenas participar da missa e rezar o terço, mas é também contribuir materialmente para a promoção social das pessoas mais carentes da comunidade. Após o Concílio Vaticano II, a doutrina social da Igreja reforçou a necessidade de conscientizar os fiéis de que a dimensão vertical da religião (homem-Deus) tem um componente necessário e complementar, que é a dimensão horizontal (homem-homem), sendo que as duas dimensões devem ser igualmente realizadas. Foi por isso que o magistério da Igreja, na conferência de Puebla (1978), assumiu oficialmente o compromisso da opção preferencial pelos pobres, tendência que foi reforçada em outros documentos oficiais, como o documento de Aparecida (2007), que assim sintetizou essa mesma preocupação: “Como um olhar teologal e pastoral, considera, com acuidade, as grandes mudanças que estão sucedendo em nosso continente e no mundo, e que interpelam a evangelização. Analisam-se vários processos históricos complexos e em curso nos níveis sócio-cultural, econômico, sócio-político, étnico e ecológico, e se discernem grandes desafios como a globalização, a injustiça estrutural, a crise na transmissão da fé e outros”. O exemplo de Cristo, narrado no evangelho deste domingo, nos mostra claramente que a religião não pode se dissociar das condições concretas da vida social, sob pena de nos afastarmos do que Cristo ensinou.

No evangelho deste domingo, portanto, Cristo vem nos chamar a atenção de que não basta cantar halleluyas e bater palmas durante as celebrações, pois isso alimenta só o espírito, mas é preciso também, com o mesmo zelo, promover ações efetivas no sentido de distribuir os pães e peixes, que alimentam também o corpo. Alguns dos nossos Pastores precisam urgentemente acordar dessa letargia ilusória do espiritualismo e do devocionismo, que tantos malefícios históricos já ocasionaram, abrindo os ouvidos para o clamor sempre atual do profeta Jeremias.


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domingo, 5 de julho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - GRAÇA QUE BASTA - 05.07.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – GRAÇA QUE BASTA – 05.07.2015

Caros Leitores:

A liturgia deste 14º domingo do tempo comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá a todos a sua graça, mas ele não nos puxa pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. E isso acontece por causa da liberdade humana, que Deus respeita. A cada um é dada a graça suficiente, porém, se cada pessoa não fizer também a sua parte, a graça recebida restará ineficaz. A maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por Cristo. Pela fé nele, nós abrimos o nosso ser para a graça, mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos merecedores dessa distinção.

Na leitura da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego a palavra é 'skóloph tês sarxi'', que significa estaca na carne (faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a palavra usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções mais antigas era vertido como aguilhão na carne. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta por Paulo. A a palavra grega 'skóloph' tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando algo mais forte e poderoso.

Pois bem, Paulo diz que esse 'skóloph' foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu: basta-te a minha graça (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. Acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: Porque quando me sinto fraco, então é que sou forte. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.

Essa doutrina desenvolvida pela teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte para que ela frutifique, contrasta com outro enfoque, aceito por outras religiões, e que se denomina de predestinação. Segundo esta, algumas pessoas estão fadadas à condenação, independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não opera de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de misericórdia. Agir em desacordo com a graça é o que se constitui em pecado e isso termina sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza. Quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skóloph”, ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a graça pode superar o pecado, só depende de você. Eis o nosso cotidiano desafio.

Esse tema da “graça que basta” está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os fariseus e os doutores da lei se 'escandalizaram' e ficaram se questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém, que não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a palavra de Deus para o povo. Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos, aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar que o verbo 'escandalizar', nesse contexto, nada tem a ver com o sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como Messias, não reconheceram n'Ele o prometido por Deus. Portanto, aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles com algum milagre, tivessem acreditado. Mas tudo indica que não, porque eles tinham conhecimento dos milagres de Jesus e nem assim acreditaram. Chegaram até a insinuar que Ele realizava obras miraculosas porque tinha, como se diz na nossa cultura popular, pacto com o demônio, estava possuído por Belzebu. E porque Deus respeita a liberdade humana, por causa da sua falta de fé, a salvação trazida por Jesus não surtiu efeito no meio deles.

Essa atitude de incredulidade os fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá, apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3):  nação de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram contra mim  até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou te enviar …” E depois acrescenta o profeta: “Quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta.” Foi por isso que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo estariam sabendo que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta, pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o próprio Deus.

Meus amigos, a pedagogia catequética tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia assim: prometo nunca mais pecar... ora, sabemos que isso é impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio para sanar as suas consequências.

Que o Senhor nos ajude sempre a descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir de acordo com ela.

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domingo, 28 de junho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SS PEDRO E PAULO - PRIMAZIA PETRINA - 28.06.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SS PEDRO E PAULO – PRIMAZIA PETRINA – 28.06.2015

Caros Leitores:

Neste décimo terceiro domingo comum, a memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, fundadores do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém, onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela região oriental, que se estendia até Constantinopla. Todos os apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por primeiro o cristianismo foi difundido era o das comunidades locais, tanto aquelas que Jesus havia visitado quanto as demais, por onde os apóstolos saíram na sua pregação missionária. A difusão do cristianismo pelo mundo grego-romano se deu por obra de Pedro e de Paulo, mais propriamente de Paulo, pois foi este quem atraiu Pedro para Roma, então a capital do ocidente. A comunidade cristã romana foi criada por Paulo e este levou Pedro para ser o chefe daquele grupo cristão, enquanto os demais apóstolos permaneceram nas terras orientais, próximos das suas origens.

Olhando para o passado, chega-se à conclusão que, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na cultura grego-romana, nada conheciam disso, não falavam a língua grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior perseguidor e torná-lo o seu maior arauto. Meus amigos, para mim, a maior prova da divindade de Cristo e ao mesmo tempo prova da origem divina da igreja cristã está neste fato. Ele precisava de um seguidor com formação intelectual destacada e com grande fervor missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo. Ocorre que Paulo era ardoroso combatedor da doutrina cristã, tal era a sua fidelidade às tradições judaicas. Então, como para Deus nada é impossível, o aparentemente impossível aconteceu, quando Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas (1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ” E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina cristã por meio de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme falei antes, para mim, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da divindade de Jesus. Sem Paulo, nós hoje não seríamos cristãos.

Pois bem. Foi ideia de Paulo levar Pedro para Roma, a maior metrópole do mundo na época. Cabe aqui a pergunta: por que ele convidou Pedro? Por que não outro apóstolo? Podemos especular a respeito. Uma explicação para isso podemos encontrar na carta aos Gálatas (1, 18-19), onde Paulo diz: “Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Pedro pessoalmente e estive com ele quinze dias Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor.” Deixando de lado a polêmica sobre “o irmão do Senhor”, concluimos que, dos onze, Paulo só conheceu Pedro e Tiago. Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a liderança do grupo. O encontro com Tiago podemos dizer que foi meramente acidental. Nessas circunstâncias, quem Paulo iria convidar para comandar a comunidade cristã de Roma? Não havia outra alternativa, a não ser Pedro. Os outros apóstolos continuaram “chefiando” as suas comunidades nas localidades orientais de cultura judaica. A outra explicação que vejo, atribuo à própria inspiração de Jesus para que Paulo conduzisse Pedro para aquela que seria, no futuro, a cidade símbolo da igreja ocidental. Não nos esqueçamos, porém, que a igreja de Roma foi a mais tardia de todas, Paulo já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades do mundo grego-romano e, por último, chegou à cidade-sede do império. Com isso, quero dizer que todas as outras comunidades são mais antigas do que a de Roma. Essa observação é importante para acompanhar o raciocínio que desenvolverei a seguir.

Uma das grandes questões, talvez a maior de todas, que o Papa Francisco está presentemente enfrentando, com muita paciência e caridade, e buscando uma solução satisfatória é a reaproximação da Igreja Romana com as Igrejas Orientais. Divergências históricas milenares separam essas irmãs, que são as comunidades cristãs primitivas e originais. Podemos observar que essa querela teve início quando Paulo levou Pedro para liderar a igreja romana e depois se agravou com os eventos históricos que se sucederam. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja romana e as igrejas orientais era pacífica, não havia ainda sido formulada a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma sobre os líderes das demais igrejas. Essa doutrina, que o Concilio Vaticano I transformou em dogma, conhecida como o “primado de Pedro” só começou por influência dos imperadores romanos nos negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais tarde, Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo político, o bispo de Roma foi transformado no “Papa” com autoridade sobre todas as demais igrejas. Obviamente, os orientais nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver, com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco precisa ter habilidade de superar, para poder levar adiante o seu projeto de reunificação. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço. Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.

Bem, de uma forma ou de outra, o fundamento bíblico desta 'primazia de Pedro' está no evangelho de Mateus, lido na missa de hoje (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado, em época muito antiga, a fim de justificar essa doutrina. E digo isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que significa Petrus”. E parava aqui. Possivelmente alguém fez os acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão “sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os apóstolos ensinassem a todos os povos a sua doutrina e os batizassem. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com as comunidades (ekklesias) organizadas pelos apóstolos. Esse linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados oficiais no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição política. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser descartada.

Bem, meus amigos, essas reflexões que faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica que, enquanto membros da Igreja Católica, nós podemos lançar na intenção de uma melhor compreensão do papel das nossas autoridades hierárquicas. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil empreitada.

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domingo, 21 de junho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - O MAR DA VIDA - 21.06.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MAR DA VIDA – 21.06.2015

Caros Confrades,

Neste 12º domingo do tempo comum, a liturgia nos leva a contemplar a simbologia do mar. Dada a sua imensidão, a figura do mar gera uma ideia de grande poder; mas ao mesmo tempo, dadas a sua impetuosidade e sua imprevisibilidade, traz também a ideia de grande mistério, de grande temor, todas essas associadas ao seu imensurável potencial de produção de vida e de alimentos, desde os tempos mais remotos. De acordo com a história bíblica da criação, o mar vem no segundo lugar de importância entre as coisas do universo, logo após a luz. A narrativa bíblica da criação demonstra que, desde tempos muito remotos, a figura do mar sempre impressionou os seres humanos, seja pelos benefícios que proporciona, seja também pelos malefícios que muitas vezes causa. O mar é fonte de vida e de morte, de energia que pode levar à produção ou à destruição. Considerando que a luz é produzida fora do nosso planeta, temos que o mar é a força terrestre mais poderosa, impávida e ao simultaneamente amedrontadora. Vivemos a nossa vida dentro dele e/ou dependendo dele, seja qual for o sentido que o consideremos.

Na primeira leitura, retirada do livro de Jó (38, 8-11), Javeh fala ao Profeta, de dentro da tempestade, com a sua voz tonitruante: quem fechou o mar com portas, colocando-o em seus limites e dizendo 'até aqui chegarás, e não além'? Quem, senão Ele próprio? Essa fala de Javeh se deu no contexto em que Jó se queixava que Ele o havia abandonado e com isso Javeh vai demonstrar o tamanho do Seu poder, usando a figura do mar. Ora, se o mar é tão poderoso e indomável, aquele que tem poder de dominá-lo é muito mais forte e potente. A grandiosa força que é reconhecida no mar serve de contraponto para comparação com a potência de Javeh, que é muito maior. Por mais que Jó não entenda o que se passa com a sua vida, Javeh lembra o Profeta, com a sua voz de trovão, que a sua fé deve estar acima e além dos imprevistos dos acontecimentos, pois o poder divino é quem estabelece o controle sobre tudo isso. O texto da leitura litúrgica não vai até o fim desse diálogo entre Javeh e Jó, que é bastante logo, mas para contextualizar, fui em busca da resposta do Profeta. Depois que Javeh expõe a Jó muitas demonstrações do seu incalculável poder, o Profeta finalmente dá-se por convencido e no cap. 40, 4-5, ele ousou balbuciar: “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca. Falei uma vez, mas não tenho resposta; sim, duas vezes, mas não direi mais nada.” Jó “engole seco as palavras” que disse e não mais se queixa ao Senhor, aceitando a sua condição de vida. A pegagogia do mar levou Jó à consciência de si próprio e lhe rememorou a grandeza do Criador, para que se mantivesse firme na sua fé.

Na leitura do evangelho de Marcos (4, 35-41), a imagem do mar aparece novamente associada a uma grande demonstração de poder por parte de Jesus, com o objetivo de fortalecer-lhes a fé na sua pessoa enquanto Filho de Deus. No final da tarde, Jesus cansado de mais um dia de pregações e peregrinações, vendo que a multidão não se dispersava, pediu aos apóstolos que o levassem para a outra margem do Mar da Galiléia. Na verdade, não se trata do oceano, o mar comum, trata-se de um grande lago alimentado pelas águas do rio Jordão, daí o seu nome ser também Lago de Tiberíades ou Lago de Genesaré. Era ali que os apóstolos exerciam o seu mister de pescadores, quando foram chamados por Cristo para a missão. A distância maior de uma margem a outra é de apenas 13 km, o que não é grande coisa, se compararmos, por exemplo, com a largura do rio Amazonas, cuja distância entre as margens chega a 50 km em algumas paragens, a ponto de não ser possível ver a margem oposta. Nessa escala geográfica, o Mar da Galiléia não possui uma tal dimensão de poder quanto o oceano, de modo que se pode até atribuir um certo exagero na descrição do evangelista Marcos, quando ele diz que “Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher, ” (4, 37) dando a impressão de que a embarcação corria risco de afundamento, deixando os passageiros com muito medo. Enquanto isso, Jesus dormia tranquilamente indiferente àquele perigo.

A narrativa do evangelista tem o claro objetivo de demonstrar, de um lado, as vacilações na fé dos apóstolos e, de outro, o poder divino de Jesus. Mesmo que a magnitude das ondas não fosse do porte de provocar uma real possibilidade de sossobro, o que está sendo posto em evidência é o fato de que Jesus tem poder de acalmar o vento e dominar o mar. E Jesus pergunta: por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? Propositalmente, o evangelista adiciona um sutil detalhe: após as ondas acalmarem, os apóstolos perguntam-se entre si: “'Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?' (4, 41) Seguindo a mesma linha de raciocínio da leitura do livro de Jó, comentada acima, este trecho do evangelho quer chamar a atenção para a origem divina de Jesus e para o seu poder, que é semelhante ao poder do Pai, aquele mesmo que falou a Jó no meio da tempestade. Quem tem poder de estabelecer limites para o mar indomável, senão o seu Criador? Quem tem poder para acalmar as ondas, senão o Filho do Criador? Revela-se nessa narrativa, de forma bastante nítida, o objetivo de provar aos seus leitores que Jesus é o Filho de Deus.

Pois bem. A imagem do barco minúsculo perdido na imensidão do mar é o retrato da nossa vida em meio ao turbilhão dos acontecimentos diários, sobre os quais não podemos interferir e cujo controle escapa às potências do nosso corpo. O nosso ser humano, ridículo e limitado conforme descrito pelo artista popular, está totalmente à mercê dessas ondas turbulentas que sacodem o nosso barco. As dúvidas e incertezas do dia a dia, o risco e o temor que cotidianamente nos afligem, os percalços e desafios do viver diário nos lembram constantemente a nossa pequenez e insignificância. É nesse contexto vital que se constata a importância da nossa fé. Não aquela fé declarada da boca para fora, mas a fé que nos fortifica e nos mantém no caminho, apesar de todas as vicissitudes. Nos dias de hoje, de um modo especial, a violência urbana é um tormento com o qual temos de conviver, mas apesar disso e mesmo sabendo disso, não podemos nem devemos nos esconder ou nos segregar. A conduta oposta seria ainda uma maior insensatez, ou seja, fazer de conta que nada vai nos afetar, pois a fé nos defende, e deixar de adotar as necessárias precauções. Essa temeridade é um daqueles pecados imperdoáveis, sobre os quais comentamos num domingo recente. A fé responsável exige de nós uma postura de esclarecido compromisso, de conhecimento da realidade, de consciência dos riscos e também de seriedade no cumprimento daquilo que nos compete, cada um fazendo a sua parte pensando não apenas em si próprio, mas também dando sua contribuição para transformar a nossa sociedade num mundo mais justo e solidário, mostrando que é possível viver de forma digna e dignificante.

Esse modelo de vida na fé é o tema da carta de Paulo aos cristãos de Corinto (2Cor 5, 14-17), onde ele diz que “se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.” Esse “mundo novo” ainda não está totalmente implantado, ainda se encontra num processo de instalação e será o nosso exemplo de cristãos, em meio a inúmeras ondas de comportamentos adversos, que irá contribuir para o seu efetivo fazer acontecer. O grande desafio que nos é trazido pelo mundo de hoje é esse de ser cristãos, apesar de todos os apelos contrários. E vejam que nós nem estamos (graças a Deus) naquela situação dos cristãos dos países de maioria islâmica, onde alguns radicais literalmente massacram os crentes, até pelo simples fato de carregarem uma Bíblia. Ainda não vivemos numa atmosfera de intolerância religiosa, onde ser cristão pode ser um motivo de condenação à morte. Digo “ainda não” porque o movimento cristofóbico tem se acentuado tanto nessa última década, dando sinais de sua presença também no Brasil, de modo que essas publicações nas redes sociais nos trazem um preocupante em relação aos nossos filhos e netos. No mundo cada vez mais secularizado e tendente à intolerância, a liberdade em todos os níveis, inclusive a liberdade religiosa, é um bem muito precioso que nós devemos cultivar com nossa palavra e com nosso exemplo, demonstrando que é possível viver numa sociedade pluralista com respeito à diversidade. Só assim poderemos navegar com um pouco mais de segurança no mar da vida.

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domingo, 14 de junho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM - PEDAGOGIA DE JESUS - 14.06.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DE JESUS – 14.06.2015

Caros Confrades,

Neste 11º domingo comum, a liturgia nos propõe para reflexão os ensinamentos de Cristo a respeito do reino de Deus explicado através de parábolas, para possibilitar a melhor compreensão dos seus ouvintes. As teorias pedagógicas mais modernas explicam que, para haver uma melhor aprendizagem por parte dos alunos, o professor deve buscar inserir os novos conceitos aproveitando os conhecimentos prévios dos estudantes. Grande novidade! Há mais de dois mil anos, Jesus Cristo já inaugurara essa pegagogia, quando utilizava parábolas para explicar sua doutrina, e os pedagogos de hoje pensam que estão descobrindo o mapa da mina. Para nós, cristãos, essa metodologia foi, desde o início, a preferida tanto por Cristo quanto pelos seus apóstolos.

Na primeira leitura litúrgica, temos um trecho do livro de Ezequiel. Ele profetizou na época do cativeiro da Babilônia, tendo falecido nessa cidade. Ele teve curiosas “visões” sobre as ações de Javeh em forma de castigo para o seu povo infiel, falando sempre em linguagem muito dura, para despertar no povo o reconhecimento da própria culpa e o arrependimento. Na leitura de hoje, ele faz uma imagem simbólica muito interessante sobre o “novo reino” que haveria de vir, depois que aquele período do cativeiro terminasse, o novo reino que Javeh estava preparando para o seu povo. Diz isso usando também uma espécie de parábola: “Assim diz o Senhor Deus: 'Eu mesmo tirarei um galho da copa do cedro, do mais alto de seus ramos arrancarei um broto e o plantarei sobre um monte alto e elevado. Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel. ” Podemos ver nessa imagem descritiva do “broto arrancado do mais alto dos seus ramos” e plantado sobre o monte de Israel como a prefiguração de Cristo, numa simbologia análoga à que Jesus usaria depois, com a imagem da videira. Logo adiante, diz o Profeta: “Ele produzirá folhagem, dará frutos e se tornará um cedro majestoso. Debaixo dele pousarão todos os pássaros, à sombra de sua ramagem as aves farão ninhos. ” Tempos depois, Jesus repetirá essa mesma parábola, ao dizer que “eu sou a videira e vós sois os ramos” (Jo 15, 5), quem permanece em mim e eu nele, esse dará muito fruto. Os profetas, de um modo geral, utilizaram de recursos simbólicos aproveitando os conhecimentos e vivências do povo para lhes repassarem a mensagem de Javeh.

No evangelho de Marcos, lido neste domingo (Mc 4, 26-34), Jesus lança mão de duas parábolas semelhantes, ambas relacionadas com árvores e sementes, materiais que eram comuns e amplamente conhecidos daquelas pessoas a quem ele se dirigia. A imagem da semente tem uma forte simbologia relacionada com o fenômeno da multiplicação que está a ela associada e que encerra no seu conteúdo o próprio milagre da vida. A semente é pequena, inerte, simples, mas quando plantada, cresce, se torna dinâmica, fecunda e se multiplica em incontáveis partes, que configurarão um novo ser. É interessante como ele explica que a semente possui uma capacidade autopoiética extraordinária, ou seja, ela se reproduz com suas próprias forças, não é necessário que o plantador faça nada especial, além do simples plantio. “A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga. ” (Mc 4, 28) A energia presente na semente é tão intensa que basta ser lançada no local adequado para desencadear o seu processo produtivo. Além disso, tem ainda o aspecto da multiplicação da forma. A semente tem uma pequenina dimensão, mas se transforma em uma árvore grandiosa e com enormes potencialidades de sustentação da vida de outros seres, que dela dependem.

Assim também acontece com a Palavra de Deus, semente da vida no espírito, que ao ser semeada, começa o seu processo de produção de energias espirituais no coração de quem a acolhe, de modo que transforma não apenas a vida daquela pessoa diretamente, mas tem repercussão também sobre as demais pessoas que com esta convivem. O nosso comportamento de cristãos, a colocação em prática dos mandamentos de Cristo nos atos da nossa vida cotidiana, o nosso testemunho diante da pessoas do nosso convívio na família, no trabalho, na sociedade, são os atos e atitudes pelos quais nos tornamos lançadores da semente da Palavra. E Jesus ainda nos anima querendo dizer que não precisa fazer grandes pregações, nem grandes sacrifícios nem enfrentar grandes desafios, mas mesmo nas pequenas coisas isso acontece. É o que Ele pedagogicamente ensina quando fala da semente de mostarda, ao dizer que é a menor semente das hortaliças, no entanto, é aquela que produz a leguminosa mais corpulenta, que serve até de pouso e arcabouço de ninho para os pássaros. Pequenas sementes que produzem grandes árvores, assim acontece também conosco, mesmo que a semente lançada seja de tamanho apoucado.

Em diversas outras ocasiões, Jesus utilizou a parábola da semente, para tornar compreensíveis os fatos relacionados com a sua missão. Por exemplo, no evangelho de João (Jo 12, 24), Jesus faz outra alusão à semente, em outro contexto, referindo-se à sua ressurreição, quando diz: se o grão de trigo não morrer, fica só; mas se morre, produz muito fruto. A imagem da semente associa-se tanto à paixão e morte de Jesus, como também à morte do homem pecador e à sua ressurreição através da graça, tanto no sentido da nova vida trazida pelo batismo, quanto no sentido da outra vida, que virá depois que deixarmos esta morada. E aqui o tema do evangelho se interliga com o texto da segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Coríntios 2: “ enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor; pois caminhamos na fé e não na visão clara ” (2Cor 5,6) Ao deixar a morada do corpo, iremos morar junto do Senhor. Portanto, neste primeiro momento, a imagem da semente se refere a nós, cristãos, que temos a oportunidade de, pelo batismo, fazer morrer em nós o ser pecador, para fazer viver o ser humano da graça. E através dos demais sacramentos, vamos passando por um processo de contínuo aperfeiçoamento do nosso ser para, depois, com a morte corporal, termos a ressurreição prometida por Cristo, da qual Ele já deu o exemplo.

A propósito dessa passagem da 2ª Carta a Coríntios, quando Paulo diz: “enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor”... e depois diz “preferimos deixar a moradia do nosso corpo para ir morar junto do Senhor”, eu gostaria de destacar aqui uma demonstração da cultura grega que Paulo possuía. Está muito evidente, nesses trechos, a visão dualista dos filósofos gregos Platão e Aristóteles, esse confronto entre o mundo material e o mundo espiritual, que encontramos em Sócrates e em seus discípulos na Grécia antiga, e que Paulo absorveu, e depois essas mesmas idéias foram retomadas pela Patrística (século IV), sobretudo por São Justino e Santo Agostinho, e mais adiante, nas lições magistrais de Santo Tomás de Aquino. Aliás, era impossível que o cristianismo se disseminasse no território grego sem ser influenciado pela cultura deste povo, que era predominante e bem mais elaborada do que as demais culturas contemporâneas. Esse fato teve um aspecto positivo e historicamente inevitável, mas também gerou consequências teológicas de longo prazo, como as que nós observamos hoje na religião tradicional, individualista e devocionista. As primeiras comunidades, onde ainda havia grande influência da cultura judaica, tinham mais a idéia da coletividade, da comunhão, da solidariedade, que foram aos poucos sendo substituídas pelos conceitos gregos, os quais se tornaram hegemônicos. Hoje, a CNBB inclui na liturgia a comemoração do “dia do dizimista”, rememorando as práticas das primeiras comunidades cristãs, onde todos tinham tudo em comum (Atos 4, 32). O “tudo” em comum não deve ser entendido apenas como os bens materiais, mas sobretudo a partilha dos bens espirituais da amizade, do amor mútuo, da solidariedade em todos os sentidos. Em outras palavras, trata-se de resgatar o verdadeiro sentido da palavra comunidade (comum+unidade), que não pode ficar restrita à reunião de uma multidão no templo durante a celebração, onde as pessoas nem se conhecem entre si e muitas vezes nem se cumprimentam. Não há dúvida de que o individualismo ainda predomina na nossa religião. 

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domingo, 7 de junho de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 10º DOMINGO COMUM - O PECADO ETERNO - 07.06.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO COMUM – O PECADO ETERNO – 07.06.2015

Caros Leitores,

Terminado o ciclo litúrgico de comemoração da Páscoa, retornamos neste domingo ao tempo comum, que se prolongará até o Advento. As leituras da liturgia de hoje trazem diversos temas interessantes, dos quais destacarei dois para comentar, tomando como referência o evangelho de Marcos (Mc 3, 20): o pecado eterno e os irmãos de Jesus.

A narrativa tem início com o evangelista dizendo que Jesus voltou para casa com seus discípulos (3, 20). É o caso de perguntarmos: que casa? Desde que Jesus iniciou sua vida de pregador, ele saíra da casa de José e Maria e não tinha um local onde morar. Provavelmente, seria a casa de algum dos discípulos ou de algum admirador dele, o narrador não se preocupa com esse detalhe. E continua dizendo que lá juntou tanta gente que eles (Jesus e os discípulos) nem sequer podiam comer. A fama de Jesus atraía a atenção de todos, em qualquer lugar onde ele chegasse, de modo que causava grande importunação, mas ele não podia simplesmente mandar o povo embora, pois isso fazia parte da sua missão. É também interessante que se trata de uma das raras vezes em que o evangelho se refere a uma refeição feita por Jesus, o que era bastante natural, porque ele como pessoa humana precisava se alimentar. No entanto, quase sempre essa particularidade é omitida nas narrativas evangélicas.

Pois bem, os fariseus Mestres da Lei, que estavam constantemente vigiando Jesus, o viram expulsando demônios e, por não acreditarem no seu poder divino, não encontraram outra forma de justificar, a não ser dizendo que ele estava possuído por Belzebu e era por isso que Ele conseguia expulsar os demônios. Esse boato preocupou os parentes de Jesus, que o procuraram para oferecer-lhe ajuda. Encontraram-no, pois, rodeado pela multidão, enquanto ele argumentava contra os fariseus: como é que satanás vai expulsar satanás? Como é que o demônio estaria agindo contra si próprio? A acusação dos Mestres da Lei era totalmente incoerente, porque se um grupo passa a se digladiar internamente, será o seu fim. Se numa família, levantar-se irmão contra irmão, será a desagregação daquela família. Sob o aspecto humano, social, o boato espalhado pelos fariseus não tinha qualquer sustentação. Porém, sob o aspecto da fé, a situação era muito mais grave. Atribuir os milagres de Jesus ao poder do mal significava ver em Jesus o próprio demônio e isso ele fez questão de esclarecer, além de reprovar.

Foi nesse contexto que Jesus fez uma ameaça terrível àqueles incrédulos: (Mc 3, 28) “tudo será perdoado aos homens, todo pecado e toda blasfêmia, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, será culpado de um pecado eterno”. Meus amigos, o que significa blasfemar contra o Espírito Santo? Por que isso é tão grave e nunca será perdoado? Ora, Jesus sempre afirmou que não agia sozinho, ele agia sempre como Trindade, em união com o Pai e o Espírito Santo. Então, dizer que ele estava possuído por um espírito do mal equivalia a não acreditar no Espírito Santo e, portanto, não acreditar na Trindade divina. Não acreditar que Jesus é filho de Deus e age em união com o Espírito Santo, portanto, negar a Trindade é excluir-se da obra redentora que Jesus veio realizar. Mais grave do que afirmar que Jesus expulsa os demônios por obra de Belzebu é a motivação interior de quem faz essa afirmação, é a recusa de receber a graça divina, é voltar as costas para o amor de Deus, por isso, é uma atitude imperdoável. E se a pessoa que assim age não reconsidera seu ponto de vista e mantém-se na rejeição do perdão, então o seu delito se tornará eterno, ou seja, eternamente imperdoável. Ora, sendo o mistério da Trindade o centro da fé cristã, a recusa de aceitar qualquer uma das pessoas divinas será um daqueles pecados retidos, a que fez referência o evangelho do domingo anterior.

Diz Marcos (3, 21) que os parentes de Jesus saíram em sua defesa para agarrá-lo, porque ele parecia estar fora de si. Certamente, o discurso de Jesus nessa ocasião não foi tranquilo e sereno, como era de costume, mas ele deve ter-se exaltado com o maldoso boato espalhado pelos fariseus. Isso faz lembrar aquele outro memorável acontecimento em que Ele tomou um chicote e saiu dando surra nos vendedores que estavam ocupando os espaços do templo, dizendo que a casa do Pai é casa de oração, não um covil de ladrões. São as duas vezes em que o evangelho fala de atitudes ríspidas e violentas de Jesus, exatamente quando a descrença dos judeus se voltava contra a Trindade. No caso do templo, em relação ao Pai; no caso da expulsão dos demônios, em relação ao Espírito Santo. Nesses casos, Ele foi tomado por uma 'santa ira', a ponto de ficar fora de si.

Quando os parentes de Jesus chegaram onde ele estava, havia tanta gente reunida que eles não conseguiram se aproximar. Então, mandaram recado pra Ele informando que estavam ali. É quando o evangelho cita aquela famosa frase que é motivo de divergência entre católicos e não-católicos há séculos: (Mc 3, 32) Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura. O texto latino de S. Jerônimo assim diz: “mater tua e fratres tui foris quaerunt te”. Todos nós sabemos que 'mater' é mãe e 'fratres' é irmãos, a tradução literal é inevitável. Comparemos com o texto grego original, transliterado para o nosso idioma: ê mater auton kai oi adelphoi auton = a tua mãe e os teus irmãos. Vemos que a tradução latina é literal do grego. A discussão aqui está no significado do vocábulo 'adelphoi', plural de 'adelphos' que na língua grega significa “irmão”, tanto no sentido de filho dos mesmos pais, quanto no sentido de um familiar com parentesco próximo. Esta palavra vem do radical grego 'adelph', que é comum às palavras relacionadas com irmandade, fraternidade. Naquela época, era comum que as famílias congregassem sob o mesmo teto pessoas até o sétimo grau de parentesco. Comparando com os dias de hoje, seria como se juntassem as diversas gerações desde o tataravô até o tataraneto, com respectivos cônjuges e agregados, todos eram tidos como uma família no sentido mais extenso. Genericamente falando, eram irmãos entre si. Este é o argumento teológico do catolicismo para justificar que Jesus é filho unigênito de Deus. Porém, não resolve a questão de que Maria pode ter tido outros filhos, que não foram concebidos pelo Espírito Santo, e neste caso, seriam irmãos de Jesus somente pela 'carne', não pelo Espírito. No entanto, a Igreja Católica, desde os primeiros tempos, sempre afirmou que Jesus é único filho de Maria e com base nesta tradição, a doutrina teológica mantém esta afirmação. Não há evidências, nem na história nem na tradição, de que Maria tenha tido outros filhos, além de Jesus.

A resposta que Jesus deu aos seus interlocutores, nesse momento, não poderia ser mais desconcertante: minha mãe? meus irmãos? Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E diz Marcos (3, 34): olhando para os que estavam sentados ao seu redor disse: aqui estão minha mãe e meus irmãos... quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. Esta afirmação de Jesus, colocada no contexto do seu ensinamento, não deve ser entendida no sentido negativo, como se Jesus estivesse rejeitando os seus familiares, ao contrário. A frase deve ser vista no sentido positivo, ou seja, Jesus estava afirmando que aquelas pessoas que o ouviam e aceitavam faziam parte da sua familia, tanto quanto os seus parentes pelo ramo familiar. Ele estava colocando no mesmo nível de importância os irmãos da família humana e os irmãos na fé em sua doutrina. Além de não estar desprezando seus familiares, Jesus estava elevando os seus seguidores ao mesmo nível de irmandade que eles. Fazendo um contraponto dialético com a afirmação anterior de que quem não crê no Espírito é réu de um pecado eterno, esta nova afirmação de que 'quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe', é como se Ele estivesse afirmando: quem crê na Trindade está comigo, transforma-se em meu irmão, minha irmã, minha mãe, meu familiar, meu parente, é a grande família humana que se reúne em torno dele.

Meus amigos, nós, os cristãos de hoje, desfrutamos desse inefável privilégio de sermos considerados irmãos, irmãs, pai e mãe de Jesus, se cumprirmos o seu mandamento. Essa é a sua promessa e o resultado só depende de nós.

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