domingo, 23 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - VER E CRER - 23.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – VER E CRER – 23.04.2017

Caros Leitores,

Este segundo domingo da Páscoa ou domingo da oitava da Páscoa foi consagrado pelo Papa João Paulo II como o Domingo da Misericórdia, criando assim a Festa da Divina Misericórdia. Este domingo possui ainda uma milenar tradição na liturgia com o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na antiga oitava da Páscoa, aqueles que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade, juntando-se aos outros irmãos da fé. É comum que, em todas as festas religiosas importantes, se celebre a oitava da festa, mas a oitava da Páscoa sempre foi a mais solene, era quase como uma repetição da festa do domingo anterior. A tradição de celebrar a “oitava” de uma festa religiosa está também ligada à festa judaica dos pães ázimos, que tem duração de sete dias, e que corresponde à celebração da Páscoa.

Nas leituras litúrgicas selecionadas para este domingo, temos na primeira um conhecido trecho dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), que narra o modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo foi-se infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi isso que o Seráfico Patriarca Francisco colocou na sua regra, no século XIII, como o voto de pobreza, porque então já não se praticava mais entre os cristãos. Até o Papa da época, Inocêncio III, duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... Quanta ironia, era como se esse comportamento não estivesse de acordo com o evangelho que ele, como Papa, devia observar. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como um desafio sempre atual para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.

A segunda leitura é retirada da primeira carta de Pedro. Poucas vezes, a liturgia seleciona trechos de escritos não paulinos, como é o caso deste domingo. Esta carta de Pedro foi dirigida aos cristãos de língua grega dispersos nas províncias romanas da Ásia Menor (Ponto, Galácia, Capadócia, Bitínia), numa época difícil de perseguição por motivos religiosos. Pedro incentiva os novos cristãos daquelas paragens evocando aspectos autobiográficos, exemplos de sua própria vida como apóstolo de Cristo, lembrando-lhes que é necessário suportar provações passageiros, para merecer a glória do céu. “Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira - mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo - e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo.” (1Pd 1,7) Mas também esse trecho da carta é escolhido porque sintoniza com a leitura do evangelho, retirada de João, e que narra o famoso episódio da falta de fé manifestada pelo apóstolo Tomé acerca da ressurreição de Cristo, quando Pedro afirma: “Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais.” (1Pd 1,8) Apenas uma informação de curiosidade: Pedro não era um homem de letras, todos sabem que ele era um pescador, ou seja, Pedro não sabia escrever, aliás, fato que era bastante comum naquele tempo, em que havia os escribas profissionais. Então a carta de Pedro foi manuscrita por seu discípulo Silvano.

Na leitura do evangelho de João (Jo 20, 19-31), o tema é a incredulidade de Tomé, um dos textos bíblicos mais conhecidos e que, naquela época, era muito utilizado na catequese dos primeiros cristãos, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, tomando como referência o (mau) exemplo de Tomé, que queria ver para crer, e associando isso com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos que creem sem ter visto. Prova do uso catequético desta história da dúvida de Tomé é que o episódio é narrado apenas no evangelho de João. O evangelista Lucas (24, 13-43) narra o diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús e, em seguida, a aparição dele aos apóstolos todos reunidos no Cenáculo, mas não se refere a Tomé. A narrativa de João é plenamente fidedigna, porque ele estava presente no momento do fato, diferentemente dos outros evangelistas, que escreveram baseados em outras fontes literárias. Não se pode afirmar, contudo, que o fato narrado por João não fosse do conhecimento dos outros evangelistas também, mas estes não o registraram. Por outro lado, João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecendo os textos dos outros autores, isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros haviam omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava aos cristãos do seu tempo. Daí é que se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos. Além disso, o evangelho de João tinha um propósito bem definido de servir como texto-base para uso na catequese das primeiras comunidades, quando o cristianismo se difundia velozmente entre as comunidades estrangeiras. Outro exemplo disso podemos observar no diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5), mostrando como Jesus acolhia bem os não judeus.

Um outro detalhe que se percebe nesse ponto da narrativa joanina é a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles...” (Jo 20,19). Um pouco adiante, repete de modo análogo: “Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa...” (Jo 20, 26), isto é, uma semana depois, portanto, no primeiro dia da semana novamente. É interessante analisarmos essa tradução portuguesa de “primeiro dia da semana”. Se consultarmos o texto latino de S. Jerônimo, ele escreveu assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como já fosse tarde naquele dia, um depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. A tradução portuguesa é que adapta a expressão para “primeiro dia da semana”, porque a semana dos judeus terminava no shabat e os apóstolos eram judeus. Deduz-se daí que, nessa época, o sábado era ainda o dia mais importante da semana, porque prevalecia a tradição judaica. Para a cultura judaica, ainda hoje, o dia termina com o por-do-sol e aí tem início o dia seguinte. Dizer, portanto, que já era tarde da noite de sábado equivale a dizer que já era a “feria prima”, o primeiro dia da semana (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, algum tempo depois, os cristãos começaram a notar essa preferência de Jesus para realizar coisas prodigiosas no “dia depois do sábado”, sendo este também o dia em que ele ressuscitou, razão pela qual o Concílio de Nicéia (325 d.C.) mandou transferir o dia do repouso (shabat) para o dia depois do sábado, ou seja, o primeiro dia da semana, que passou a chamar-se “dominica”, isto é, o dia do Senhor. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.

E sobre a festa da Divina Misericórdia, celebrada hoje, o Papa Francisco recordou a instituição desse dia em 2000, por João Paulo II, afirmando: “Eis o sentido da misericórdia que se apresenta no dia da ressurreição de Jesus como perdão dos pecados. Jesus ressuscitado transmitiu à sua Igreja, como primeira tarefa, a sua própria missão de levar a todos o anúncio concreto do perdão. Este sinal visível da sua misericórdia traz consigo a paz do coração e a alegria do encontro renovado com o Senhor”, ”

Meus amigos, neste domingo especial da oitava da Páscoa e festa da Divina Misericórdia, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.

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domingo, 16 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 16.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 16.04.2017 – DIA DO SENHOR

Caros Leitores,

Foi num domingo de páscoa, em 2011, que comecei a escrever esses comentários, atendendo a algumas solicitações, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, consigo hoje observar com mais amplitude os elementos doutrinários da teologia, procurando ultrapassar certos limites e preconceitos que nos foram ensinados na juventude, em especial aqueles relacionados com a festa da Páscoa. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, como se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, desviando o olhar do sentido histórico e cristão dessa festa, que tanto simbolismo contém.

Numa abordagem histórica, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da primavera, coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após degelo, começando a produzir os primeiros frutos da terra. Com as nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada mais facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.

Como podem verificar, nós celebramos a páscoa pelo ciclo geográfico europeu, a páscoa do povo do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no nosso hemisfério, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém, essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo.

Numa abordagem teológica, a festa cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que houve a liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador Constantino, em 321 d.C. O século IV da era cristã foi um período de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã. Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).

Nesses concílios, ficou decidido que a festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia entre a igreja romana e as igrejas orientais, pois estas consideram que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino. Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.

A Páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia europeia, pois naquela época as terras do lado sul terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo Testamento, há uma curiosidade interessante: a entrada de Jesus em Jerusalém deu-se no 10º. dia do mês de Nissan, data que corresponde à prescrição constante em Êxodo 12:3-6, dia em que, de acordo com a Lei de Moisés, um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando triunfalmente em Jerusalém, Jesus foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser sacrificado, uma coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos. Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.

As primeiras comunidades cristãs não perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana, após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue, continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a ser, então, a nova referência para as festividades pascais.

Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.

domingo, 9 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS - 09.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS – FOI POR AMOR - 09.04.2017

Caros Leitores,

O ciclo anual da liturgia nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. A celebração desta é antecedida pelo Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santos) e estes são antecedidos pelo Domingo de Ramos, festejado nesta data. Na condição de cristãos amadurecidos na fé, precisamos ultrapassar as velhas tradições que recebemos, não nos quedando apenas na memória da Paixão do Senhor, mas sempre recordando que se deve colocar acima desta a memória da Páscoa do Senhor. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. Foi pela cruz que Jesus redimiu nossos pecados, mas foi pela ressurreição que ele nos abriu a porta do céu, por isso, todas essas comemorações só fazem sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).

Conforme alguns Colegas já sabem, eu estou participando de um curso sobre hebraico bíblico e no decorrer do curso, tomamos conhecimento também dos costumes judaicos. O curioso é que os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Quando o evangelho de Mateus, lido hoje, diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (26, 17), lembrei que a professora de hebraico explicou como os judeus celebram esse período, que compreende aos dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Outra curiosidade que ela informou sobre a “pessach” é que, nesse período, ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo, apenas esse pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Trata-se da mesma tradição milenar, que já era observada no tempo de Cristo e faz-nos lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição, para não “quebrar o jejum”. Felizmente, já superamos essa “burocracia” ritual.

Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Vale a pena lembrar que uma santa italiana, Santa Gemma Galgani, relatou ter conversado com Jesus e, certa vez, perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano, conforme fora prometido a Abraão. Os operadores dessa promessa foram os sumos sacerdotes judeus e Judas, o Iscariotes. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, encarnou o traidor; os judeus se tornaram os pérfidos judeus, como dizia uma antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela vetusta tradição com que nos martelaram a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, dediquemo-nos a falar um pouco sobre esse personagem execrado na tradição, Judas Iscariotes, aquele que é enforcado e queimado em mastros públicos, não sem antes ser açoitado, maltratado, esfarrapado, tudo como uma espécie de vingança tardia dos seguidores de Cristo.

Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só a contradição que esse nome encerra: Judas significa o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que é ISH SICARI, em que sicari significa punhal, então ish sicari seria o assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação recorda um grupo de terroristas judeus, que existia dentro de um partido político chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam a Palestina, e incitavam o povo judeu a resistir contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes, que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação histórica, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser ele um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos e, enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que tinha apoio popular para realizar isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.

Não podemos esquecer, porém, que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria chamado e mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que mais conversava com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse apenas um ser humano comum, poderíamos dizer que ele fora enganado. Mas Jesus, sendo homem e Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse. Aquele conhecido filme de Hollywood – Jesus Cristo Superstar – aborda bem essa temática sobre a missão de Judas.

A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi atribuída a Judas pelos outros onze apóstolos, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus até inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria apenas justificar a história das 30 moedas. Os demais evangelistas não falam na quantidade de moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Com certeza, foi o evangelista Mateus o responsável pela tremenda má fama que recai ainda hoje sobre o personagem Judas, fato que leva as pessoas a evitarem colocar tal nome nos seus filhos. Contudo, nessa linha de raciocínio que estamos desenvolvendo, pode perceber-se que há uma grande injustiça embutida nessa tradição e, em nome da verdade e da caridade, devemos procurar observar Judas como um agente necessário para a economia da salvação. Num arroubo poético, Santo Agostinho chamou o pecado de Adão de “feliz culpa”, porque nos proporcionou tão insigne Redendor. Parafraseando Agostinho, podemos fizer que o ato de Judas foi também uma espécie de “feliz denúncia”, necessária para a arrematação dos fatos da história da salvação.

Na leitura dos relatos evangélicos, observamos que nenhum dos evangelistas comentou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Ao contrário, Jesus até confiava nele e fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para ajudar a compor esse personagem avaro e odiado, em que Judas se transformou. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos romanos onde Ele estava. Como se pode deduzir, há muitos aspectos desse episódio e da própria pessoa de Judas que necessitam de maiores estudos e esclarecimentos a fim de que, numa perspectiva de maior serenidade, possamos reescrever a antiga tradição que o difama e o abomina. Com efeito, quem matou Jesus foi o grande amor que ele tem por todos nós.

Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos.

domingo, 2 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - JESUS DIVINO E HUMANO - 02.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – JESUS DIVINO E HUMANO – 02.04.2017

Caros Leitores,

Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Nessa narrativa da ressurreição de Lázaro, o evangelista faz questão de salientar o lado humano e emocional de Jesus. Por duas vezes, o texto fala que Jesus emocionou-se profundamente diante da comoção das irmãs do falecido e uma vez diz mesmo que Jesus chorou. O apóstolo João mostra, nesse episódio, os dois lados da personalidade de Cristo: a humanidade da emoção e a divindade do poder de ressuscitar.

Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder sobre a vida, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), e o evento mais comentado: a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.

Na segunda leitura, da carta aos cristãos de Roma (Rm 8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas estão chamando a atenção dos cristãos para o mistério da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência a enxergar sobretudo o aspecto do sofrimento e da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo, que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.

No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos das leituras dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não se dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judéia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com medo da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E no meio de tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, que evidencia a humanidade de Jesus, quando diz que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, mas nessa leitura de hoje João afirma que ele chorou.

O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão contundente que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu. É de se destacar ainda a oração que Jesus fez ao Pai antes de operar o milagre: “por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste ” (Jo 11, 42)

Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Por que estou eu insistindo nesse detalhe? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, o arianismo, criada por um bispo chamado Ario. A doutrina dele era assim: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Ele seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, ele não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus, uma espécie de semi-deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um ser humano especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos a admitiam com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.

Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Nicéia, em 325, quando foi redigido o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os bispos arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.

Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. O caso mais recente é o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.

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domingo, 26 de março de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - LUZ NAS TREVAS - 26.03.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – LUZ NAS TREVAS – 26.03.2017

Caros Leitores,

Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia retorma com o tema da água, assim como foi no domingo passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado e passou a ver a luz. São Paulo aos efésios recorda: agora, sois luz e não mais deveis andar nas trevas. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.

Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Percebe-se que a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.

Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar. Trata-se de um texto destinado à catequese dos novos cristãos gregos. João descreve o episódio da cura do cego com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.

Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.

Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judaizantes e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.

Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim, buscaram de várias formas justificar sua incredulidade. E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34)

Na missa de encerramento do encontro do VII Ensese, em Paracuru, neste domingo, o nosso confrade Bosco fez uma observação, que achei muito interessante e pertinente, a ele peço licença para incluir aqui. Ele recordou as palavras finais do texto de João, quando os fariseus perguntaram a Jesus: Será que nós somos cegos? A resposta de Jesus foi uma martelada na cabeça deles: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa” (Jo 1, 41), mas como dizeis que enxergais, então são culpados pela cegueira moral. Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.

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domingo, 19 de março de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - A ÁGUA VIVA - 19.03.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – A ÁGUA VIVA– 19.03.2017

Caros Leitores,

Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas em Massa e Meriba, quando a água faltou, e Moisés precisou tirar água da pedra; e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa pela água viva, que não deixa mais sentir sede. Liturgicamente, a água é a figura simbólica do batismo, que lava e purifica o fiel, tornando-o apto a receber a divina graça. A festa de São José, comemorada neste dia, foi transferida para amanhã.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) Como de costume, o povo sabe mesmo é reclamar. E Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Passados alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu favor e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece de algo não correr do modo como queremos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.

Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque na dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fez incluir esse incidente no salmo, que também se recita neste domingo: Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Naquela época, sabíamos decorado. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.

Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, ele narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa unicamente joanina não consta nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado por muitas bocas.

Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos para Nínive, capital da Assíria. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande rivalidade entre eles, tornando-se quase inimigos. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura mostrar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.

Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação com os samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma mulher samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.

Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava:  “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana percebeu isso. Essa temática foi, com certeza, muito repetida na catequese das primeiras comunidades.

Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. Ao meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.

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domingo, 12 de março de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A LEI E OS PROFETAS - 12.03.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 12.03.2017

Caros Leitores,

Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. Após abordar a temática das “tentações” de Cristo, a liturgia faz uma antecipada demonstração da sua futura glória. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra está na origem de toda a tradição, que tem seu ponto culminante na pessoa de Cristo. E nesse tempo de penitência, recordamos a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho, tal como ele (Paulo) também está sofrendo como prisioneiro dos romanos.

Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os estudos de hebraico bíblico que venho fazendo, o nome do livro, que nós chamamos Gênesis, no idioma original se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a ideia de criação do mundo. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, a origem da aliança de Javeh com os patriarcas, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.

O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldeia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também serviam para explicar ao povo hebreu, descendente dos patriarcas, o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. A ligação desse texto com o evangelho do dia (narrativa da transfiguração de Jesus) está na referência de ser Cristo o ponto culminante daquela antiga aliança, o cumprimento perfeito da promessa feita por Javeh aos primeiros patriarcas.

Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado com Timóteo a árdua missão de ser o continuador do trabalho dele, pois Paulo sabia que não mais retornaria ali. Naquela ocasião, Timóteo enfrentava um sério problema com os judeus adversários de Paulo, que haviam sido responsáveis pela sua prisão. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta dirigida a Timóteo, exorta-o a perseverar na fé assim como ele, Paulo, também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.

Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como 'irmão” de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.

Importa explicar aqui nesse contexto o significado de “irmão”, pois isso é motivo de polêmicas entre algumas igrejas cristãs. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão polêmica, sem dúvida, mas não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, e sim buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo, involuntárias ou voluntárias.

Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas da região da Palestina, onde os apóstolos viviam, não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu em latim como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora europeia para traduzir o original grego. Para ser mais fiel ao texto grego, em lugar de roupas “brancas como a neve” deveria ser roupas “brancas como a luz”.

Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina, a sua verdadeira feição gloriosa; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas.

Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.

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