domingo, 21 de outubro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – SABER PEDIR – 21.10.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – SABER PEDIR – 21.10.2012

Caros Confrades,

Neste 29º domingo comum, dia dedicado aos Missionários que atuam no mundo tudo, levando a palavra de Cristo, a liturgia nos põe como tema de reflexão o diálogo de Tiago e João com Jesus, sobre o “lugar” que cada um teria no reino de Deus. Este diálogo nos conduz à reflexão sobre o conteúdo das nossas orações, sobre o que pedimos a Deus quando oramos.

O trecho do evangelho lido neste domingo é retirado de Marcos 10, 35-45. Antes porém de passar ao conteúdo da mensagem, gostaria de fazer uma breve análise textual, comparando com o texto análogo de Mateus 20, 20, onde consta o mesmo episódio. No evangelho de Marcos (10, 35) lemos: “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram:”. No evangelho de Mateus (20, 20), lemos: “Então, aproximou-se d'Ele a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos, adorando-o e pedindo algo a Ele.” A análise desses dois pequenos trechos nos mostra por que não podemos fazer uma leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, porque os textos às vezes se mostram incoerentes. Afinal, quem foi ter com Jesus: os filhos de Zebedeu sozinhos ou acompanhados da mãe deles? É verdade que esse detalhe não tem importância para o restante do diálogo, mas contém um fato discrepante, já que Marcos não menciona a presença da mãe deles. Outro detalhe: nenhum dos dois evangelistas diz o nome da mãe de Tiago e João, embora digam o nome do pai deles. Vê-se aí a questão da discriminação contra as mulheres, o nome da mulher não interessa na história.

Os exegetas explicam essa divergência alegando que o texto de Marcos é mais antigo do que o de Mateus, por ser mais simplificado. Se considerarmos que durante anos os ensinamentos de Jesus existiam na comunidade apenas em forma oral, passando a ser escritos somente por volta do ano 60, ou seja, aproximadamente 30 anos após a morte d'Ele, veremos que funciona aquela máxima que ainda hoje se diz: quem conta um conto aumenta um ponto. Ou seja, quanto mais detalhado é um texto, mais recente ele deve ser, porque passou pela boca de mais pessoas até que fosse escrito. Desse modo, embora o evangelho de Mateus venha em primeiro lugar no cânon bíblico, contudo o texto de Marcos é aceito como mais antigo. Aliás, há entre os estudiosos uma dúvida sobre a autoria do primeiro evangelho, pois alguns não concordam que tenha sido escrito por Mateus, embora não se saiba quem seria o autor. Lembro que, nas aulas de Bíblia, o Padre Luiz Uchoa, nosso professor, ensinou que a autoria de Mateus é creditada a uma informação do historiador antigo Papias de Hierápolis, o qual anotou em seus registros que Mateus havia escrito a 'palavra' do Senhor em aramaico e então foi atribuída a ele a autoria de um texto em aramaico, cujo autor era desconhecido. Este texto é o atual evangelho que conhecemos.

Pois bem, passemos então ao comentário sobre o tema da leitura, o que os filhos de Zebedeu foram pedir a Jesus: pediram que um deles tivesse assento à direita de Jesus e outro à esquerda, no reino da Sua glória. Jesus ficou intrigado com aquilo e falou: vocês não sabem o que estão pedindo... E por fim, arrematou: 'Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado'. (Mc 10, 39) E diz mais o evangelista que, quando os outros dez souberam desse pedido, ficaram indignados com os dois irmãos, porque sentiram-se traídos, afinal Jesus os tratava a todos igualmente, por que razão haveriam eles dois de ser privilegiados com um lugar de honra e os outros não? Foi quando Jesus os repreendeu dizendo que a autoridade cristã não é símbolo de honraria, mas de serviço. (Mc 10, 43)

Esse diálogo de Cristo com os discípulos nos deixa duas lições importantes. Primeira lição: será que nós sabemos pedir? Quando oramos, quando fazemos nossos pedidos a Deus, que tipo de oração fazemos? Pedido semelhante ao dos filhos de Zebedeu, reprovado por Jesus? Pois é, muitas vezes, a nossa oração contém uma dose significativa de egoísmo, quando pedimos preferencialmente algo bom para cada um de nós, esquecendo o que o próprio Cristo já ensinou que devemos buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e que o resto nos será dado por acréscimo. Em geral, as orações dirigidas a Deus são pedidos de saúde, de bens materiais, de afastamento de um sofrimento, de uma conquista profissional, etc. E há uma prática ainda mais acintosa que é a de fazer um pedido em troca de uma certa 'promessa': se eu conseguir tal coisa, vou fazer tal tarefa (dar uma esmola, acompanhar uma procissão andando descalço, vestir roupa de uma determinada cor por certo tempo, mandar imprimir santinhos para distribuir, etc,) são inumeráveis e variados os modelos de 'penitência' que as pessoas costumam oferecer a Deus em troca de algum favor solicitado. É quando Jesus diz: não sabeis o que pedis.

A oração modelar deve ser do tipo daquela que o próprio Jesus deu o exemplo: quando orardes, dizei algo assim: santificado seja o Teu nome, venha o Teu reino, faça-se a Tua vontade... é o tipo da oração altruísta, sobre a qual já tive ocasião de fazer uma referência em um comentário anterior. Quando Jesus interpelou os dois filhos de Zebedeu, perguntando se eles estavam dispostos a 'beber o mesmo cálice' que Ele e eles disseram que sim, Jesus disse: pois vocês terão isso, mas isso não garantirá o atendimento ao que estais pedindo, pois não cabe a mim determinar os resultados. E aqui verificamos a segunda lição contida nesse diálogo: o lugar é para aqueles a quem foi reservado. (Mc 10, 40)

Esta resposta de Jesus é, a um só tempo, enigmática e esperançosa. Quem são esses a quem está reservado o melhor lugar? E quem o reservou? Isso Jesus não respondeu, deixando para nós a missão de interpretar e compreender isso. A chave da resposta, ao meu ver, está na frase seguinte do evangelho (Mc 10, 45): o Filho do Homem não veio para ser servido, mas pra servir... ou seja, quem seguir o exemplo de Jesus na prestação do serviço aos irmãos, é para estes que o lugar melhor está reservado. Foi isso que Ele deu a entender quando ensinou: quem quiser ser grande, que seja o servo; quem quiser ser o maior, que seja o escravo. Então, o 'lugar reservado' se destina a quem realizar o 'serviço' tal como Ele realizou, isto é, com humildade e sem reserva, dando tudo de si até o fim das suas forças. Então, podemos deduzir daqui que o 'lugar reservado' não é um lugar individual, mas coletivo, não cabe apenas um, mas cabem muitos, cabem nele todos os que tomarem a cruz e O seguirem.

A partir daqui, nós fazemos a ligação com a temática geral do domingo, que é a Igreja missionária. O Missionário é aquele que anuncia a palavra de Jesus, mas não apenas a anuncia, sobretudo, a vivencia e é o primeiro a dar exemplo que que ensina. Quem de nós não se lembra das campanhas missionárias, as Santas Missões? Os Capuchinhos são conhecidos no nordeste pelo serviço que prestaram e ainda prestam nessas Missões. Quantas pessoas foram beneficiadas com esse serviço gratuito e eficaz, que muitas vezes levava o nome de 'desobriga'? Atualmente, com os meios técnicos de comunicação, muitas comunidades são alcançadas pela mídia nos seus diversos modelos, mas isso jamais dispensará a presença dos missionários, sobretudo nas comunidades mais carentes. E nós temos exemplos bem recentes dessas missões e missionários das diversas denominações religiosas, trabalhando a serviço do reino de Deus. Lembro-me agora da irmã Dorothy Stang, vítima de assassinato na amazônia, fato não bem esclarecido ainda para a sociedade. Isso apenas para citar um exemplo, pois nós temos no Ceará dois grandes centros missionários em Canindé e em Juazeiro do Norte, onde muitos missionários se dedicam a essa nobre causa.

E mesmo sem precisar ir tão longe, cada um de nós, nas nossas relações familiares, relações de amizade, relações de trabalho, podemos fazer esse trabalho missionário, testemunhando com nosso exemplo e com nossa palavra a mensagem cristã, pois ocasiões não faltam para isso e as pessoas percebem quando assim fazemos.

Que o divino Missionário nos inspire e nos ajude constantemente na realização da nossa missão de cristãos.

domingo, 14 de outubro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – CONSELHOS EVANGÉLICOS – 14.10.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – CONSELHOS EVANGÉLICOS – 14.10.2012

Caros Confrades,

Neste mês de outubro, o mês vocacional, a liturgia do 28º domingo comum coloca para nossa reflexão o tema da vocação religiosa, através do diálogo de Cristo com o jovem rico. Todos nós tivemos uma experiência (uns mais, outros menos) dentro dessa modalidade religiosa consagrada, que procura viver no mundo seguindo com maior radicalidade a mensagem cristã.

A primeira leitura, retirada do Livro da Sabedoria (7, 7-11), fala sobre a verdadeira riqueza, que não está no poder terreno nem na posse dos bens materiais, mas na prudência, na sabedoria, junto da qual todo o ouro do mundo é semelhante a um punhado de areia. E diz mais que, cultivando a sabedoria, todos os bens e riquezas materiais chegam como consequência, pois quem age com sabedoria tem em mãos a maior de todas as riquezas.

O tema dessa primeira leitura faz um contraste proposital com a narração evangélica retirada de Marcos (10, 17-27), que reproduz o diálogo de Cristo com um jovem rico de bens materiais, mas que ficou sem graça quando Ele lhe mostrou que a verdadeira riqueza está no desprendimento. O diálogo de Cristo com esse jovem é permeado por vários ensinamentos, que o breve conteúdo narrativo condensa. Primeiro, a ideia do Bem, quando o jovem chamou Jesus de 'bom mestre' e ele disse que somente Deus é bom. Ora, Cristo sendo Deus, por que razão iria questionar que alguém o chamasse de 'bom mestre'? O destaque é dado pelo evangelista para significar que o jovem, ao chamar Jesus de 'bom', já estava reconhecendo nele uma pessoa divina. Mas, para Jesus, aquele não era ainda o momento para que a sua divindade fosse revelada publicamente, por isso ele usou uma retórica invertida: por que você está dizendo isso de mim? Ora, somente o Pai sabe o momento em que isso deverá ser revelado.

O segundo ensinamento é o reforço à lei de Moisés. Jesus fez questão de recitar os mandamentos e dizer que a sua prática conduz à salvação. Por diversas vezes, Jesus afirmou publicamente que não veio contestar a lei mosaica, ao contrário, veio cumpri-la. Porém, o seu cumprimento não era igual ao que faziam os fariseus, que tomava tudo ao pé da letra e terminavam atraiçoando o seu verdadeiro sentido. Então Jesus declarou que os mandamentos da lei continuam em vigor, aliás, ele diz que os dez mandamento se resumem em dois: amar a Deus e amar os irmãos. E o jovem confirmou que já praticava tudo aquilo, portanto, ele já tinha conhecimento das exigências da sua salvação e era fiel a elas, deixando Jesus entender que ele queria algo mais. Foi quando Jesus deu o conselho extra: 'Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu.' (Mc 10, 21). Então, diz o evangelista, o jovem se afastou e não aceitou o conselho, porque era muito rico e por aquilo ele não esperava.

É interessante fazer aqui uma análise comparativa com a mesma narrativa apresentada pelo evangelista Mateus (19, 21): Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens... Nota-se não apenas a diferença estilística, mas também uma forma diferente de compreensão do diálogo de Jesus com o jovem rico. Pela descrição de Marcos, quando ele diz que 'só uma coisa te falta' é como se aquilo que o jovem já fazia (cumprir os mandamentos) não fosse suficiente para alcançar a vida eterna, era necessário também desfazer-se dos bens. Noutras palavras, pela narração de Marcos, fica parecendo que Jesus estaria afirmando que o jovem só teria a vida eterna se fizesse aquilo que faltava. No entanto, pela leitura do texto de Mateus, vê-se que o que Cristo fez a ele foi uma proposta de vida mais perfeita para aquele rapaz que já cumpria os mandamentos básicos. É como se ele dissesse: bem, então você já sabe como ganhar a vida eterna, mas se quiser transformar a sua vida em algo mais agradável a Deus (ser perfeito), então renuncie às suas riquezas.

Este é o terceiro ensinamento do evangelho de hoje, que fica mais evidente pelo texto de Mateus, onde podemos perceber mais claramente os chamados 'conselhos evangélicos', que são interpretados na teologia como a vida seguida rigorosamente conforme os passos de Jesus: em pobreza de bens, em obediência ao Pai, em celibato casto. Lembro que, por ocasião das profissões religiosas, após o candidato pronunciar os seus votos, o Superior que recebia a promessa, arrematava: e eu, da parte de Deus, te digo que, se fizeres isso, terás a vida eterna. Obviamente, não é só quem faz isso que terá a vida eterna, essa opção é uma adesão voluntária a um projeto especial de vida radicalmente semelhante à opção de Cristo, seguindo os passos d'Ele de forma plena. Mas isso não é, a rigor, necessário, ou seja, para conquistar a vida eterna, a exigência é cumprir os mandamentos.

O quarto ensinamento diz respeito ao comportamento que o cristão deve ter diante da riqueza de bens materiais. Quando o jovem deu meia volta e não aceitou o conselho de Cristo, Ele comentou com os discípulos: estão vendo como é difícil para um rico entrar no reino de Deus? (Mc 10, 23) Vejam bem, Jesus não disse que os ricos estão necessariamente excluídos da salvação, mas sim que a posse dos bens materiais torna mais difícil levar uma vida agradável a Deus. Evidentemente, a causa disso não seria a simples posse dos bens, mas o apego a eles. Muitas pessoas possuem grandes riquezas mas as utilizam a serviço dos irmãos, para o bem da humanidade; outras possuem bens mas os utilizam exclusivamente para o próprio prazer, egoisticamente, isolando-se dos irmãos necessitados. O que Cristo disse, então, foi que os bens materiais que alguém possui devem ser 'distribuídos aos pobres', ou seja, devem ser revertidos ao serviço dos irmãos. Nós sabemos que, assim como há pessoas ricas generosas, há pessoas pobres mesquinhas, por isso o ensinamento de Cristo é a pobreza de espírito, que é mais importante do que a simples falta de bens.

Nós sabemos que essa questão dos bens, na sociedade contemporânea, é algo intrínseco da vida comum, mesmo as comunidades religiosas não sobreviveriam sem possuirem bens materiais, ficariam sem condições de realizar o seu serviço. Aquela regra rigorosa de São Francisco (que os frades não recebam dinheiro ou pecúnia), em sua literalidade, há muito foi abandonada por absoluta inviabilidade da sua execução. Mas Cristo adverte, ainda falando sobre o jovem rico: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!'” (Mc 10, 25) Essa metáfora do camelo é deveras conhecida e nos explicavam que significa uma corda grossa. Porém, no dicionário de grego, há duas palavras parecidas: kamelos=camelo e kamilos=corda, e a palavra usada no texto grego é kamelos, portanto, penso que se deve entender um camelo mesmo, aquele primo do dromedário, o que torna a metáfora de Cristo ainda mais contundente. De uma forma ou de outra, a mensagem é a mesma: a riqueza ofusca tanto o seu possuidor, de modo que ele é capaz de rejeitar tudo mais para não perdê-la, e assim pode perder inclusive a própria salvação.

Podemos identificar ainda um quinto ensinamento de Jesus nessa história, quando Ele diz que 'para Deus, nada é impossível' (Mc 10, 27). Os discípulos ficaram tão abismados quando Jesus se referiu à imagem do camelo, que disseram entre si: pronto, todo mundo está perdido! Mas Jesus completou: não digam isso, pois para Deus nada é impossível. Com isso, podemos entender que só a verdadeira fé poderá fazer o camelo passar pelo buraco da agulha, ou seja, fazer o rico alcançar a salvação. Então, as riquezas materiais devem estar a serviço da fé do seu possuidor, maior do que o amor às riquezas deverá ser a fé do cristão. Aquele que valoriza a sua fé não deixará que o poder e os bens materiais prendam a sua alma e saberá utilizar desses controles sociais para transformá-los em um maior serviço aos irmãos. Quem exerce um cargo relevante em algum órgão ou entidade tem nas mãos uma oportunidade extraordinária de fazer mais o bem aos outros do que quem não está nessa situação. Quem obteve com seu trabalho um acúmulo considerável de bens não pode se considerar culpado porque outras pessoas não possuem tanto, mas deve transformar esses bens em maiores serviços às pessoas necessitadas.

Que o Bom Mestre nos mostre a melhor destinação que devemos dar aos bens que possuímos e nos ensine a utilizá-los com a fé verdadeira.

domingo, 7 de outubro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - O MATRIMÔNIO CRISTÃO - 07.10.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – O MATRIMÔNIO CRISTÃO – 07.10.2012

Caros Confrades,

Neste 27º domingo comum e primeiro domingo do mês de outubro, escolhido pela CNBB como mês missionário, o tema da liturgia enfoca o matrimônio cristão, fundamentando nas leituras do Gênesis e do evangelho de Marcos.

Na primeira leitura, retirada do livro do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração lendária da denominação dos animais, feita por Adão, seguida de outra narração também muito enraizada na nossa cultura, que é a da criação da mulher a partir da costela do homem. Naturalmente, são duas narrativas de sentido figurado pois, embora no passado se aceitasse que fossem descrições de fatos acontecidos, na hermenêutica bíblica contemporânea entende-se como histórias narradas com um conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo hebreu. Na verdade, são duas lendas.

A fim de evitar qualquer mal entendido, peço a atenção de vocês para o significado da palavra lenda. Na nossa língua e cultura, tem-se por lenda uma narrativa inventada por alguém, sem um fundamento de verdade. Mas não é nesse sentido que os estudiosos da Bíblia entendem esse gênero literário. Trata-se de leituras edificantes, leituras que devem ser lidas por todos porque contém uma mensagem valiosa. Etimologicamente, a palavra lenda vem do vocábulo latino 'legenda', que quer dizer literalmente coisas que devem ser lidas, temas cuja leitura é obrigatória. É nesse sentido que eu escrevi acima que o texto do Gênesis incluído na liturgia de hoje contém narrações lendárias.

O objetivo dessa legenda como leitura obrigatória não é propriamente atestar um fato verídico, uma ocorrência, mas servir-se de uma pequena história com a finalidade de transmitir uma mensagem. Nesse sentido, a legenda de que Deus chamou Adão e mandou que ele desse nome aos animais significa, na cultura hebraica, o poder ou o domínio que o homem devia ter sobre os outros seres vivos. Para a cultura hebraica, dar o nome significava poder de mando sobre o nominado, quem dá o nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre aquilo ou aquele. No caso, ao dar nomes aos animais, o personagem Adão simbolizava todos os homens em relação aos animais, ou seja, a superioridade do homem e o poder dado por Deus para que o homem utilizasse os animais para se alimentar e para auxiliar no trabalho de transporte de objetos e no aproveitamento de sua força física.

De acordo com a descrição bíblica, Adão não encontrou no meio desses animais “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20). Esse detalhe tem a finalidade pedagógica de ensinar ao povo que a mulher tem uma característica diferente no seu relacionamento com o homem, que faz dela um ser distinto dos animais. Sim, porque nas culturas daquele tempo, era comum a mulher ser considerada propriedade do homem, um objeto do qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico está ensinando que não é assim, mas que a mulher deve receber do homem um tratamento diferente dos animais, porque ela é uma outra espécie de 'auxiliar'. Neste aspecto, a pedagogia bíblica era mais avançada do que as culturas dos povos do seu tempo, as quais consideravam a mulher submissa e escrava do homem.

De que modo o autor bíblico explica essa diferença? Por que a mulher deve receber um tratamento diferente? Por que os animais não são semelhantes ao homem, mas a mulher é semelhante? Para explicar isso, criou-se a outra legenda do sono de Adão e da retirada de sua costela. Observem bem que não há verossimilhança nisso, porque se assim fosse, haveria um número diferente das costelas do homem no lado esquerdo em relação ao direito, e não há. O texto bíblico diz que o lugar de onde teria sido retirada a costela foi preenchido com carne (Gn 2, 21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao pé da letra, como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela a menos de um dos lados do esqueleto, o que não é verdadeiro.

Qual seria, então, o objetivo dessa narrativa simplória e incoerente? Ela visa demonstrar que a mulher é feita do mesmo 'material' que o homem, portanto, ela é semelhante a ele. Nesse momento, o texto bíblico inclui uma curiosa afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.” Na nossa língua, essa frase tem um conteúdo enigmático e dogmático, porque não faz sentido. Quem tem a ver 'mulher' porque foi tirada do homem? É, mas na língua hebraica, o autor bíblico faz uma espécie de trocadilho que esclarece bem a mensagem pretendida. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra mulher diz-se 'isha'. Então, aí fica explicado: ela foi chamada mulher (isha) porque foi tirada do homem (ish). Daí que Adão teria dito: agora sim, esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Em outras palavras, a legenda bíblica está ensinando a isonomia que deve existir entre homens e mulheres, não havendo hierarquia de gênero.

Seria então o caso de se perguntar: por que na cultura ocidental tradicional, a sociedade sempre reconhecia no homem uma superioridade sobre a mulher? Por que somente após o movimento feminista, as mulheres conquistaram o direito de igualdade social perante os homens, tanto na profissão como na família? Aí o motivo foi outro, no meu modo de entender. Vou explicar.

A cultura hebraica original, que reconhecia a semelhança entre homens e mulheres, recebeu a influência cultural do mundo romano, seja pelo fato de que os romanos dominaram o território palestino (na época de Cristo, os hebreus estavam sob a dominação dos romanos), seja porque o cristianismo se desenvolveu em Roma e nos territórios romanos, tornando-se inevitável as influências recíprocas entre as duas culturas. Então, a cultura romana, que considerava as mulheres inferiores aos homens, terminou subvertendo a cultura hebraica da semelhança, passando a prevalecer o domínio masculino. Essa tradição modificada é a que nos foi transmitida pela colonização européia, gerando a tendência machista que é marcante na nossa tradição cultural.

Nós podemos ver uma referência a isso no evangelho de Marcos (10, 5), quando Cristo censura os fariseus acerca do divórcio que, segundo eles, teria sido permitido por Moisés. Disseram eles que Moisés havia instituído uma espécie de 'carta de repúdio' que o homem podia fazer para despedir a mulher. Vejam bem, o homem podia fazer isso com a mulher, mas a mulher não podia fazer o mesmo com o homem. Foi quando Cristo discordou, dizendo: desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher (ou seja, semelhantes) e por isso os dois serão uma só carne, através do matrimônio. E arremata taxativamente: o que Deus uniu, o homem não separe. (Mc 10, 9)

Da leitura desse texto, podemos também concluir que não foi Moisés o autor do livro do Gênesis, como durante muito tempo se pensou. Vejam só. Os fariseus afirmaram que Moisés havia permitido o divórcio por iniciativa masculina, isto é, está embutida aí a ideia da superioridade do homem sobre a mulher. Contudo, no livro do Gênesis, a legenda da costela ensina o oposto disso, ou seja, a igualdade entre homens e mulheres. Como é que Moisés poderia ter escrito uma coisa e outra? Como ele poderia ter ensinado a isonomia entre homens e mulheres e, ao mesmo tempo, ter admitido uma carta de repúdio? Alguns irmãos separados interpretam isso como sendo somente em caso de adultério. Mas vemos na leitura do evangelho de Marcos que Cristo não faz nenhuma exceção ao rejeitar a carta de repúdio, dizendo simplesmente que quem se divorciar de sua mulher e casar com outra cometerá adultério, e reciprocamente a mulher também cometerá.

Nesse contexto, meus amigos, todos já devem estar se lembrando dos casos de 'segunda união matrimonial' entre católicos, que é um dos grandes dilemas da teologia católica nos dias de hoje. É um problema pastoral enorme que os padres enfrentam no dia a dia de suas comunidades e isso não ocorre apenas com pessoas que possam ser chamada de levianas. Ocorre também com pessoas responsáveis e bem intencionadas. Essa é uma questão que a doutrina oficial vem 'empurrando' faz tempo, sem saber como encarar esse problema, que em tese contraria o ensinamento de Cristo no evangelho de Marcos que lemos hoje, onde Cristo foi taxativo acerca do divórcio.

Eu, particularmente, tenho uma sugestão para isso, que exponho agora pra vocês, interpretando as próprias palavras de Cristo. Quando Ele disse: o que Deus uniu, o homem não separe, podemos entender que os próprios cônjuges não podem fazer isso, nem outra autoridade humana. Mas a Igreja exerce uma autoridade divina, delegada que foi pelo próprio Cristo, através do poder de ligar e desligar. Bem, a Igreja poderia utilizar o seu poder de 'desligar' para reconhecer o fracasso de certas uniões matrimoniais, após o minucioso estudo de cada caso, e assim solucionar os problemas existenciais de muitos católicos, que vivem nessa crise. Isso, ao meu ver, não entraria em conflito com o que Cristo ensinou, porque não é o homem quem faz, mas a Igreja agindo em nome de Deus. Quem sabe, um dia os teólogos católicos venham a aceitar essa interpretação das palavras de Cristo.


domingo, 30 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - RELIGIÃO E IGREJAS - 30.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO E IGREJAS – 30.09.2012

Caros Confrades,

A liturgia deste 26º domingo nos propõe para a reflexão um tema sempre atual e complexo, capaz de suscitar as mais acaloradas polêmicas: a dualidade entre os conceitos de religiosidade ou religião e de igrejas ou agremiações religiosas. Na semana que passou, este tema foi objeto de uma mensagem que circulou no grupo. Observemos de que modo a liturgia nos coloca este assunto.

A primeira leitura, retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio ocorrido logo que os hebreus, em fuga do Egito, chegaram ao monte Sinai. Depois de vários meses de caminhada, comendo perdizes, maná e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o livro dos Números, que Javeh “Retirou um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a profetizar, mas não continuaram.” (11, 25). Este trecho traz, ao mesmo tempo, um enigma e uma curiosidade. Diz que os anciãos começaram a profetizar mas não continuaram, sem explicar o motivo disso, deixando para nós a interrogação. Dá a entender que apenas dois deles (Eldad e Medad) continuaram profetizando, também sem esclarecer o motivo. De todo modo, o hagiógrafo não diz que o conselho foi desfeito. E nós sabemos, pela tradição, que o conselho dos anciãos continuou a funcionar junto ao povo, eram uma espécie de senadores que auxiliavam o dirigente. Há inclusive uma tradição muito antiga afirmando que a primeira tradução da Bíblia (antigo testamento) do hebraico para o grego foi feita por este conselho de setenta anciãos, sendo conhecida como o a 'tradução dos setenta' ou Septuaginta.

Mas o que mais nos interessa aqui nesta narrativa é a sua sequência, quando diz que Josué, ajudante de Moisés e pretenso futuro chefe do povo, ficou preocupado com os dois (Eldad e Medad) que continuaram a profetizar, provavelmente receando que isso poderia ameaçar o seu futuro posto. Então, Josué pediu a Moisés que ordenasse que eles dois parassem de profetizar, ao que Moisés respondeu: 'Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29).

Nesse mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43), quando os discípulos vieram dizer a Jesus: “'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Os discípulos certamente achavam que somente a eles, do grupo de seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios, mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode inibir a ação do Espírito em sua liberdade total.

Meus amigos, nós sabemos que Jesus tinha centenas de seguidores à distância, anônimos, que ouviam suas pregações e o acompanhavam pelos caminhos do seu ministério, embora não fizessem parte do seleto grupo dos doze. Isso demonstra por que motivo, após a morte de Jesus, quando os discípulos começaram a pregar a boa nova, houve logo muitas adesões. Obviamente, os fariseus e os adeptos ferrenhos do judaísmo tradicional não acreditavam em Jesus, mas o povo a quem Jesus se dirigia, aqueles mesmos para os quais Ele fez vários milagres, inclusive fatos de grande abrangência, como foi o caso da transformação de água em vinho, nas bodas de Caná, como também o conhecido episódio da multiplicação dos pães. Isso sem falar nos inúmeros milagres de alcance mais restrito, curando doentes de diversos males, restituindo a visão aos cegos, dando mobilidade aos paralíticos, até ressuscitando pessoas, tudo isso se transformava em boatos que iam correndo de boca em boca e produzindo uma legião de admiradores de Jesus entre o povo simples.

Quando Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aqueles que não eram do grupo, para que não expulsassem demônios, era como se Jesus estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos que iriam surgir, no futuro, os diversos 'missionários' que se apresentariam em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias, portanto, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em redor de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos, depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder, através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes, bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Nos primeiros séculos, o que havia era essas 'ekklesias' (comunidades) de irmãos unidos pelo evangelho. A organização burocrática mais genuína começou a surgir com a aproximação e até uma certa confusão com a administração romana, pois até as designações de paróquias e dioceses eram similares às divisões do império romano.

Isso lança o polêmico tema sobre a autenticidade e veracidade das diversas entidades que se apresentam como 'igrejas de Cristo'. A Igreja Católica reivindica o reconhecimento de ser a verdadeira organização que continua a tradição dos Apóstolos, de forma ininterrupta desde os primeiros séculos, e assim nós cremos. Os diversos líderes dissidentes dos primeiros séculos não lograram constituir novas 'igrejas' porque foram simplesmente exterminados antes que isso acontecesse. O primeiro que conseguiu escapar desse destino foi Lutero, porque foi protegido pelos príncipes alemãos descontentes com o Papa, e assim foi a partir de Lutero que começaram a surgir outras 'igrejas' diferentes da 'católica romana', as quais nunca pararam de proliferar até os dias de hoje.

A questão básica, portanto, é: qualquer 'igreja' reproduz o ideal religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja Católica Romana? Ou alguma outra 'igreja' também pode ser considerada autêntica igreja de Cristo? Tradicionalmente, a doutrina católica sempre afirmou que 'fora da Igreja Católica não há salvação'. Após o Concilio Vaticano II, essa doutrina foi bastante flexibilizada, a partir do conceito de ecumenismo. Assim, embora a Igreja Católica se considere a autêntica igreja de Cristo sucessora daquela iniciada pelos Apóstolos, admite que em outras agremiações que seguem os mandamentos evangélicos são também validamente reconhecidas. Nesse contexto, tivemos um fato curioso. Quando houve o grande 'cisma do ocidente', ou seja, a cisão entre as igrejas cristãs orientais e a igreja de Roma, ambas se excomungaram reciprocamente, cada uma reivindicando para si ser a autêntica igreja de Cristo. Essa excomunhão, que durou séculos, foi 'levantada' num encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras, no final dos anos 60.

Sob o aspecto jurídico, a Igreja Católica reconhece, no Direito Canônico, os batismos aplicados pelas seguintes igrejas: igreja ortodoxa, igreja vetero-católica, igreja anglicana, igreja luterana, igreja metodista, igreja presbiteriana, igreja batista, igreja congregacionista, igreja adventista, assembléia de Deus (fonte: CNBB, doc.21). Ora, se a Igreja Católica reconhece os batismos realizados nessas igrejas, então as reconhece como seguidoras autênticas da doutrina cristã. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma pessoa que tenha sido batizado em uma dessas igrejas, se se converter ao catolicismo, o batismo nelas recebido é válido, será apenas registrado nos livros próprios, não será necessário batizar-se novamente.

Numa perspectiva mais ampla, podemos admitir que alguém possa, individualmente, seguir os ensinamentos de Cristo, mesmo sem pertencer a nenhuma igreja. Nesse caso, teríamos na prática a mesma situação da repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos proibais, porque não está contra nós, está conosco. E assim, podemos concluir que a fé em Cristo é vivenciada, de modo mais apropriado, junto a uma comunidade eclesial, de acordo com a crença que cada um possui. O importante mesmo é a pureza do coração e a retidão da consciência, a fidelidade ao ensinamento de Cristo e a demonstração prática da sua vivência cristã. Já o inverso não será considerado válido, ou seja, pertencer a uma igreja e frequentá-la regularmente, porém sem que isso se transforme em ações e atitudes coerentes com a fé publicamente professada.

Que o Divino Mestre nos ajude a sermos fiéis ao nosso compromisso, para que a nossa religião não seja apenas da boca pra fora, mas brote verdadeiramente do nosso coração.


domingo, 23 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DO PODER - 23.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DO PODER – 23.09.2012

Caros Confrades:

A liturgia deste 25º domingo comum coloca para a nossa reflexão um tema bastante interessante, mostrando uma nova lógica do poder, através da imagem do Messias sofredor. Trata-se, como se vê, de uma continuidade do tema já comentado no domingo anterior.

A primeira leitura, retirada do Livro da Sabedoria, apresenta o conluio dos ímpios contra o justo, tramando contra ele, porque ele espera que o Senhor venha salvá-lo. No contexto trans-histórico, o texto aborda a situação do futuro Messias como um perseguido, diferente da figura do Messias poderoso e vencedor de batalhas. Já começamos a ver aí a inversão da lógica do poder, pois o poder do Messias não estará na espada nem na força física, mas na força do amor. De acordo com essa lógica invertida, tem mais poder não aquele que vence batalhas e subjuga os inimigos, mas aquele que ama mais e ama até os inimigos. Vimos, no domingo passado, como Jesus estava tentando ensinar isso aos discípulos, mas eles não estavam entendendo muito bem. Nas leituras de hoje, este ensinamento continua.

Na segunda leitura, retirada da carta de São Tiago, ele também demonstra que a origem dos males sociais, das guerras, da insegurança está nessa equivocada busca pelo poder material. Diz o apostolo: qual a origem das desavenças que há entre vós? É porque buscais primeiros os vossos interesses. Vós matais, invejais, maltratais e mesmo assim não conseguis o que quereis. O vosso problema é porque não pedis. Ou melhor, pedis mal, porque quereis somente aquilo que atende aos vossos interesses. Dito com outras palavras, o apóstolo Tiago está advertindo as primeiras comunidades cristãs sobre a falta de consciência da missão de Cristo, que não veio para cumprir a sua vontade, mas a vontade do Pai; que não trabalhava por interesse próprio, mas pelo interesse do Reino de Deus. Os primeiros cristãos, assim como muitas vezes, nós de hoje, estamos muito imbuídos da lógica perversa do paganismo, do capitalismo, do querer mais, do ter mais, do poder mais. Por isso, assim como os primeiros cristãos, também não sabemos pedir a Deus nas nossas necessidades, e por isso não recebemos o que pedimos. A resposta para este dilema está nas palavras do próprio Cristo, que disse: buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. Na maioria das vezes, nós buscamos em primeiro lugar aquilo que deveria vir por acréscimo e deixamos de buscar o essencial. E por isso, não recebemos nem o essencial nem os acréscimos.

No evangelho de Marcos, o evangelista continua a narração do episódio do domingo anterior, quando Jesus ia viajando a pé para Cafarnaum, já a caminho de Jerusalém, onde a sua missão iria se consumar, e ele estava testando se os discípulos estavam entendendo a lição. Na primeira pergunta, feita no domingo passado, todos eles erraram. Então, Jesus repete: é necessário ele eu vá a Jerusalém, onde serei torturado e morto, mas depois de três dias, ressuscitarei. Aí, diz o evangelista, eles não entendiam, mas ficavam com vergonha de perguntar. E conversavam sobre banalidades. Chegando em Cafarnaum, depois de acomodados em casa (o evangelista não diz de quem era a casa, certamente era de algum parente de um dos discípulos), Jesus começou a perguntar: sobre o que vocês conversavam enquanto estávamos caminhando? Eles ficaram calados e não quiseram responder, com medo do carão, que com certeza viria, pois Jesus sabia muito bem do que eles tinham conversado. Foi quando ele reuniu os doze e repassou a lição: aquele dentre vós que quiser ser o maior, seja o menor; o que quiser ser o primeiro, seja o último. Convenhamos, isso embaralhava ainda mais o entendimento deles. Como é que alguém poderia ser o primeiro, chegando por último? Como poderia ser maior se desvalorizando? Percebendo a confusão na mente deles, Jesus tomou uma criança e colocou no meio deles, para servir de exemplo. Sede como esta criança... Por que Jesus fez comparação com a criança? Ora, naquele tempo, as mulheres e as crianças não tinham vez na sociedade, acentuadamente machista e patriarcalista. Somente os homens adultos tinham direitos, tinham reconhecimento. Ao colocar a criança como exemplo, Jesus estava usando um recurso pedagógico para dizer: o pensamento de vocês está ao contrário. De acordo com a mentalidade dos judeus, uma criança não tinha direito a acolhimento, ela era subjugada ao pai (nem a mãe podia ter qualquer atitude). De acordo com a doutrina romana, que prevalecia na Galiléia naquele tempo, o pai tinha direito de vida e de morte sobre os filhos, sobre a esposa, sobre os servos, sobre os bois e cabritos, todos estavam no mesmo pé de igualdade.

Então, Jesus diz: quem não se tornar igual a uma criança, não terá lugar no Reino do Céu... aquele que acolhe uma criança, acolhe a mim, e quem acolhe a mim, acolhe o Pai que me enviou. Se algum de vós quer ser o primeiro, pois que seja o servo de todos. Ou seja, Jesus está invertendo a lógica comum do poder. Tem uma passagem interessando no evangelho, que narra o diálogo da mãe dos filhos de Zebedeu (vejam só, o evangelista nem diz o nome dela, como se mulher não tivesse nome, isso não tinha a menor importância), ela chegou junto ao Jesus e pediu que os dois filhos dela (Tiago e João) se sentassem no Reino d'Ele um à direita e outro à esquerda, ou seja, não queria 'nada', só o primeiro lugar para cada um. Qual foi a resposta de Jesus? Foi em forma de pergunta para os dois: vocês terão coragem de beber o cálice que eu vou beber? Eles não entenderam nada disso, mas responderam que 'sim'. Então, Jesus concluiu: pois vocês beberão, mas esse negócio de sentar um à direita e outro à esquerda, quem decide não sou eu, é o Pai. Esse diálogo tem o mesmo sentido do tema que abordamos hoje. A mãe de Tiago e João estava raciocinando de acordo com a lógica comum do poder, mas não era essa a lógica que Jesus veio ensinar. Ele, porém, não foi ensinar isso a ela, porque já quebrava cabeça ensinando aos discípulos, sem ver resultados muito animadores.

Como vocês veem, meus amigos, a lógica invertida do poder, proposta por Jesus, é uma outra forma de apresentarmos a sua doutrina do Messias sofredor. Os judeus de hoje ainda estão esperando o Messias poderoso e batalhador, porque eles não consideram que Cristo tenha sido o Messias prometido aos antigos patriarcas. Porque eles não entendem a inversão da lógica do poder, por isso não aceitam Jesus Cristo. Nós vimos, recentemente, a circulação do texto de um pesquisador que afirma que Jesus vivem na Cashemira e lá teve filhos e morreu de idade avançada. Ainda que fosse uma versão verossímil, entraria em choque com os testemunhos e as tradições pré-evangélicas acerca da ressurreição de Cristo. Detonaria o ensinamento do Messias sofredor como uma farsa, porque conforme diz São Paulo, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé. A vitória de Cristo está exatamente na superação da morte. Se não houvesse a vitória sobre a morte, então a sua missão não teria se encerrado com sucesso, mas teria sido um total fracasso.

Portanto, a figura do Messias sofredor vem nos ensinar que a forma de vencermos o mundo, com suas mazelas e inseguranças, é praticando o amor e vivendo a humildade. Ser o maior implica servir mais, amar mais, doar-se mais, viver a fé através da realização de boas obras. Buscando em primeiro lugar o Reino de Deus, estaremos contribuindo para neutralizar a ganância do ter em demasia, do poder a qualquer custo. Estamos em época de campanha eleitoral e vemos isso na prática diariamente, algumas pessoas tentando ludibriar a sociedade com o intuito de se apossar do poder, seja lá com que meios for. Fico pensando de que modo é possível conciliar esse ensinamento de Cristo com a candidatura daqueles que se dizem católicos e estão ali no mesmo jogo de busca do poder. Para mim, essa atitude tem um forte componente contraditório. Hoje mesmo, me entregaram, na saída da missa, um 'santinho' de um candidato católico a vereador. Parece-me que a lógica do Messias sofredor não é compatível com o exercício do poder político, apesar de estar consciente dos efeitos práticos que a ausência de lideres políticos religiosos pode acarretar.

Que o Mestre nos inspire sempre à prática do poder do amor, que é o poder mais forte que existe.

domingo, 16 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - O SERVO SOFREDOR - 16.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – O SERVO SOFREDOR – 16.09.2012

Caros Confrades,

Na liturgia deste 24º domingo comum, está em destaque a figura do servo sofredor, recordando os versos de Isaías (na verdade, o deutero Isaías), que preconizava o futuro sofrimento do Messias. Outro tema interessante nesta liturgia, relacionado com o anterior, é a carta de São Tiago, na qual ele fala acerca da fé operante, isto é, a fé que se transforma em obras de misericórdia com os que sofrem.

Na primeira leitura (Isaías, 50, 5-9), temos os versos clássicos do servo sofredor. Conforme já expusemos em comentários anteriores, a partir do capítulo 40 de Isaías, os biblistas denominam 'deutero Isaías', isto é, o segundo Isaías, pois esses textos foram escritos pelos discípulos de Isaías, complementando o trabalho do Mestre, igualmente inspirados. Sabe-se disso porque a crítica histórica demonstrou que são mencionados fatos que ocorreram após a morte de Isaías, portanto, não poderiam ter sido relatados pelo próprio. Ali estão esses antológicos cânticos do servo sofredor, que são selecionados para leitura na Semana Santa, mas estão também na liturgia de hoje, por causa da leitura do evangelho de Marcos, onde Cristo narra a sua futura paixão.

Conforme também já foi explicado aqui, a segunda parte do livro de Isaías foi composta durante o cativeiro da Babilônia, então são frequentes as referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá libertar o Seu povo. Assim, a figura do servo sofredor, num primeiro momento, refere-se aos judeus em situação de sofrimento durante o exílio, incentivando-os a não se deixarem sucumbir pelo sofrimento, pois “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado.” Por isso, “não desviei o rosto de bofetões e cusparadas.” Dentro da interpretação trans-histórica, o servo sofredor do exílio babilônico é a premonição do futuro Messias, que irá personificar de forma plena esta figura, através da sua paixão e morte, para nossa redenção. O cativeiro da Babilônia aconteceu seis séculos antes de Cristo, sendo impressionante a riqueza de detalhes com que seu autor descreve o futuro sofrimento do Messias.

Neste contexto de sentido, se enquadra a leitura do evangelho de Marcos (8, 27-35), onde o evangelista narra os episódios da vida de Cristo que antecedem sua ida a Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após três anos de catequese diária com os discípulos, Jesus vendo aproximarem-se os seus dias finais, faz uma espécie de teste para saber como está o entendimento do Seu grupo acerca da Sua pessoa. Ele começa por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos pensavam, mas pedagogicamente começou com uma pergunta bem genérica. Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros que é Elias ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai direto ao ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém respondesse, Pedro saiu na frente: Tu és o Messias. O evangelista Marcos encerra aqui o diálogo de Cristo com Pedro. Mas no evangelho de Mateus, quando o mesmo episódio é narrado (Mt 16, 17), a conversa entre ambos continua, sendo aquele momento em que Cristo diz a Pedro que ele é a pedra sobre a qual será edificada a Igreja. Porém, o evangelista Marcos é mais econômico nas palavras, e encerra o diálogo nesta ocasião, proibindo os discípulos de saírem por aí espalhando que Ele é o Messias.

A propósito desse diálogo, algumas considerações merecem ser feitas. 1. Primeiro, em relação à tradução portuguesa. No texto oficial da CNBB, lido na missa, está escrito: tu és o Messias, porém no texto latino da Vulgata de São Jerônimo, está escrito: tu es Christus, igual como está no texto original do grego (Krystos). Embora nós saibamos que se trata apenas de uma distinção vocabular, pois em essência a mensagem não se modifica, na minha opinião, por uma questão de respeito ao original e à tradução, deveria constar como São Jerônimo escreveu: Tu és o Cristo. 2. Segundo, a atitude de Jesus em mandar Pedro se calar e exortar os discípulos que não saíssem espalhando isso por aí afora, deixa a impressão de que Ele não gostou do que ouviu, quando era de se esperar o oposto, ou seja, que os discípulos haviam aprendido a lição. Mas acontece que eles não aprenderam a lição corretamente. Andar espalhando que Ele era o Messias poderia ter um efeito devastador no meio do povo, por causa da expectativa que a cultura judaica tinha em torno da figura do messias, o libertador do povo, e Jesus não queria que as pessoas o procurassem com esta intenção, porque isso teria uma conotação política muito forte e a missão de Jesus era bem outra. 3. Por que razão o evangelista Marcos e também Lucas (9, 20) são tão abreviados nesta passagem, enquanto Mateus (16,17) descreve um diálogo bem mais longo? A explicação está nas fontes que cada evangelista pesquisou. Visto que os três evangelhos sinóticos foram escritos em locais diferentes e em épocas diferentes, nem todos os evangelistas tiveram acesso aos mesmos documentos. Na verdade, os evangelhos sinóticos têm esse nome porque foram escritos fazendo uma espécie de sinopse de diversos outros documentos esparsos que circulavam pelas comunidades cristãs primitivas. Nem todos esses textos existiam em todas as comunidades e assim nota-se nas narrativas dos três evangelhos que alguns fatos se repetem, outros aparecem nuns e não noutros e ainda alguns detalhes aparecem em alguns e não em outros.

Pois bem, voltando ao assunto de Jesus ter repreendido Pedro e proibido os discípulos de falarem que Ele era o Messias. Jesus percebeu que os discípulos estavam com uma ideia parcialmente errada a respeito dele, porque só estavam percebendo o 'lado bom' da história, não estavam levando muito a sério aquelas indicações dadas diversas vezes por Jesus de que ele teria de sofrer muito e morrer, para que a sua glória se manifestasse. Parece que os discípulos pensavam que Jesus estava falando aquilo como algo metafórico, que não iria acontecer. Em suma, Jesus percebeu que eles não estavam conscientes de que Ele era um servo sofredor, que o Messias previsto por Isaías não seria um salvador glorioso e forte do ponto de vista material e político, mas de um reino diferente, eterno, espiritual, que não seria conquistado ao fio da espada, mas com o coração e na obediência aos desígnios do Pai. Então, Jesus proibiu que eles ficassem espalhando essa notícia, porque haveria um tempo próprio para isso, após a sua morte e ressurreição. Daí que Ele foi pacientemente explicar novamente: antes que Ele pudesse entrar na sua glória, teria de ser preso, espancado, maltratado, torturado até a morte, que Ele não iria reagir tal como dissera o Profeta, que deveria passar por tudo isso, a fim de que a sua glória se manifestasse. Assim, enquanto seguiam para Jerusalém, onde todas essas coisas iriam acontecer, ele aproveitou a viagem para reciclar outra vez essa lição fundamental, ou seja, a figura do Messias estava associada ao servo sofredor de Isaías, não àquele protótipo do guerreiro como foi Ciro, o libertador do povo cativo na Babilônia. Era preciso que os discípulos entendessem essa diferença essencial, sob pena de eles confundirem as figuras do messias no antigo e no novo testamentos.

Jesus falava essas coisas especialmente por causa de Judas Iscariotes, porque dentre os discípulos, era ele o que mais ansiava pela 'hora fatal' em que Jesus iria dar o grande golpe e comandar uma revolta gigantesca contra os romanos, para expulsá-los do território judeu. Judas achava que Jesus estava blefando quando falava dos sofrimentos pelos quais iria passar, quem sabe, Judas ficava repassando para os outros discípulos que isso era só conversa e Jesus, que sabia o que se passava no coração dele e de todos, estava dando a Judas mais esta oportunidade de repensar os seus planos. Judas, porém, era um cabeça dura, um radical que só pensava em planos materiais, ele via no grupo do discípulos os futuros comandantes de um grande exército popular, que retornaria a liberdade ao povo judeu. Até a última hora, quando ele levou os soldados romanos para prenderem Jesus, Judas ainda tinha essa esperança de sublevação.

Meus amigos, nós não devemos ser ingênuos como os demais discípulos de Jesus, nem também ser radicais como Judas. Devemos estar atentos à mensagem de Cristo com o coração aberto e a mente solícita, procurando descobrir qual a missão que ele espera de cada um de nós. A oração, a meditação e as obras de misericórdia são os recursos que temos para perceber isso. Que o divino Mestre nos ilumine nas nossas tarefas de cada dia, para que estejamos conscientes dos nossos deveres de seguidores da verdadeira mensagem cristã, não daquilo que nós caprichosamente teimamos em aceitar.

Por questão de espaço, para não me alongar demais, deixo para comentar a carta de São Tiago em outra oportunidade.


domingo, 9 de setembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - EPHATÁ - 09.09.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – EPHATÁ – 09.09.2012

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, eu destaco para a nossa reflexão o tema da palavra aramaica “ephatá”, que significa 'abre-te'. Foi o que Cristo pronunciou para curar o surdo e mudo, em mais um de seus milagres pelas terras da Galiléia.

Na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (35, 4), lemos a sua extraordinária e detalhada profecia sobre o futuro Messias, quando afirmou: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. ” (35, 5) Apenas recordando, o livro de Isaías foi escrito no tempo em que os judeus encontravam-se no cativeiro da Babilônia e o messias então esperado para libertá-los foi o rei Ciro, da Pérsia, que derrotou Nabucodonosor e libertou os judeus, que assim puderam retornar à sua terra. Só que este messias-Ciro apenas de muito longe lembrava a figura do futuro Messias, que iria libertar não só o povo judeu, mas todo a raça humana da escravidão do pecado e da morte. Por isso, naquela ocasião, dizia o Profeta: dizei aos desanimados 'criai ânimo' porque logo logo virá a recompensa de Deus que nos vem salvar. A Bíblia tem sempre um sentido histórico e outro trans histórico, assim, no primeiro momento, a profecia se referia a Ciro da Pérsia, mas no sentido do futuro, ao Messias-Cristo. Ciro não tinha o poder de devolver a visão aos cegos nem a ambulação aos coxos nem de soltar a língua dos mudos, mas o Profeta previu que isso aconteceria quando viesse o Messias verdadeiro. E sucedeu realmente como ele previra.

Na leitura do evangelho de Marcos (7, 31), temos a narração do episódio da cura procedida por Cristo na pessoa de um surdo e mudo. Ele colocou os dedos nos ouvidos surdos dele e com Sua saliva, molhou a língua muda do felizardo, e depois pronunciou a palavra forte “ephatá”, a qual o próprio evangelista explica que significa 'abre-te'. E logo aquele que era surdo e mudo transformou-se num incontrolável falante/ouvinte. E quanto mais Cristo pedia para que ele se calasse, mais ele falava e proclamava as maravilhas realizadas nele. Esta palavra foi escrita por São Jerônimo, no texto latino, como 'ephphetha', enquanto no texto grego está escrito “effathá”, certamente por isso a tradução da CNBB utiliza o termo 'efatá' e eu estou usando com o símbolo antigo do F=PH, para distinguir com um sentido especial.

Meus amigos, este ephatá pode ser entendido de múltiplos modos. No sentido próprio utilizado por Cristo na ocasião do milagre, significou para o surdo-mudo o abrir-se fisiológico dos seus ouvidos e da sua glote, para que ele pudesse articular sons e ouvi-los. Mas no sentido figurado, que se refere a nós, o ato de abrir-se se dirige à nossa mente, ao nosso coração, à nossa vontade, ao nosso intelecto. Cristo está nos dizendo 'abre-te' para que possamos compreender melhor a nossa missão e assim podermos melhor testemunhar a nossa fé.

Este seria o significado intelectual do ephatá. Saber interpretar com maior clareza a palavra de Cristo dentro dos desafios que a vida social nos coloca a cada dia, em meio a tantas e tão variadas dissensões, alternativas, exigências, falsas promessas e diversas quimeras que nos rodeiam. Abrir a nossa mente para compreendermos de que modo o nosso viver pode dar testemunho de que somos a Igreja de Cristo no meio do mundo, com a maior naturalidade e sem afetação. Diferente de muitos exemplos que vemos diariamente, sobretudo da parte dos nossos irmãos que exploram os meios tecnológicos de comunicação (rádio e TV), muitas vezes, iludindo e arrastando o nosso povo simples com apelos emotivos e sentimentais. Ontem, casualmente, eu estava zapeando os canais da televisão e vi uma dessas sessões públicas de alta emotividade, com pessoas chorando e sendo iludidas de que aquilo é a verdadeira fé. Para viver a fé autêntica, não é necessário chegar a esse ponto. Vive-se a fé autêntica muito mais com a razão e o intelecto do que com a emotividade, o sentimentalismo. Esses são muito mais poderosos, não há dúvida, no entanto, são também muito mais efêmeros. Enquanto a pessoa está passando por alguma dificuldade (e nesse mundo, tem sempre muitas pessoas altamente necessitadas tanto material como espiritualmente), esse sentimentalismo dá um certo alívio, porém, apresenta uma visão ilusória e deturpada da verdadeira fé. Por isso, o primeiro sentido do ephatá se dirige ao nosso intelecto, no sentido de que devemos estar atentos para vivenciar a nossa fé independentemente desses apelos e motivações permeadas pelo sentimentalismo.

O sentido volitivo do conceito do ephatá eu percebo num exercício consciente da nossa parte para nos abrirmos aos mais necessitados, de não nos quedarmos indiferentes diante de certas situações de injustiça social, quando a mensagem cristã nos ensina a ser solidários. E aqui eu trago à colação a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (2, 1), que vai direto ao assunto, sem rodeios, dando um exemplo que até parece estar se referindo aos dias de hoje: “ imaginai que na vossa reunião entra uma pessoa com anel de ouro no dedo e bem vestida, e também um pobre, com sua roupa surrada, e vós dedicais atenção ao que está bem vestido, dizendo-lhe: 'Vem sentar-te aqui, à vontade', enquanto dizeis ao pobre: 'Fica aí, de pé', ou então: 'Senta-te aqui no chão, aos meus pés'.” Mais direto, impossível. Quantas vezes, isso pode ter acontecido conosco, por não estarmos com a mente aberta para perceber além das aparências, além das etiquetas sociais. Um pobre que bate à nossa porta pedindo um pouco de alimento tem a mesma dignidade como pessoa do q ue um profissional liberal que nós recebemos na nossa casa de outra maneira. Não estou dizendo que se deva deixar entrar em sua casa qualquer pessoa desconhecida, pois a cautela também faz parte da vida do cristão. Refiro-me à atitude de falta de respeito humano com que, muitas vezes, vemos as pessoas mais humildes serem tratadas por outros e até por nós mesmos. Nas entidades públicas, nos estabelecimentos bancários, nos supermercados, até mesmo dentro dos templos vemos pessoas, que se orgulham de ser católicos de carteirinha (até mesmo sacerdotes, infelizmente) tratarem mal as pessoas de vestes maltrapilhas ou surradas, usando a expressão do apóstolo Tiago. Daí a exortação dele: “a fé que tendes em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas”, isto é, não deve permitir que sejamos injustos com pessoas menos favorecidas, exatamente aquelas mais precisadas.

Num terceiro sentido, que eu chamaria de afetivo, o conceito de ephatá nos leva a refletir sobre a nossa abertura interior para compreender a nossa missão, o que Deus quer de nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que esta graça chegue até nós. Deus não nos obriga, não nos impõe, não vem a nós em qualquer condição, mas apenas quando encontra a porta da nossa alma aberta para recebê-Lo. Os teólogos, desde S. Tomás de Aquino, sempre foram acordes em reconhecer que Deus dá a sua graça a todas as pessoas, no entanto, para que esta graça seja eficaz, é necessário que estejamos abertos, disponíveis, atentos, desejosos de recebê-la. Numa mensagem que circulou recentemente nos e-mails do grupo, o nosso colega Bosco fazia alusão a uma frase de Sto Agostinho, que o Frei Higino repetia com frequência: qui te creavit sine te, non te salvabit sine te (aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti). É exatamente isso que estamos dizendo aqui com outras palavras. Deus nos dá a graça da salvação, porém, sem a nossa colaboração, sem a nossa disponibilidade, sem que façamos a nossa parte, esta graça não operará seus efeitos em nós. Estar aberto à graça divina é condição indispensável para que ela penetre em nós e nos faça verdadeiros filhos d'Ele.

Que Nossa Senhora do Brasil, cuja festa foi ontem (8/9) celebrada, a padroeira do nosso Seminário Seráfico e perene padroeira também de todos os que por lá passaram, nos ajude a manter sempre a nossa mente e o nosso espírito disponíveis à graça divina, assim como Ela fez e que tornou possível a nossa redenção.