COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 3º DOMINGO DA QUARESMA – IDOLATRIA E COMÉRCIO RELIGIOSO –
11.03.2012
As leituras da liturgia
deste domingo (3º da quaresma) nos trazem para a reflexão diversos
temas importantes, mas vou me fixar apenas na questão da idolatria e
sua consequência, que é o comércio religioso.
Vemos na primeira
leitura, do livro do Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos
mandamentos dados a Moisés no monte Sinai. Este tema é, por si só,
merecedor de um comentário à parte, por conta das inúmeras
divergências sobretudo entre católicos e seguidores de Lutero,
especialmente no que diz respeito ao segundo mandamento (não farás
imagens) e ao último (não cobiçarás a mulher do próximo,nem seu
boi, nem seu jumento...), quanto ao primeiro, a catequese católica
simplesmente omitiu, e quanto ao segundo, dividiu em dois preceitos.
Atenhamo-nos, porém, apenas ao tema do segundo mandamento: “não
farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em
cima, nos céus, ou embaixo, na terra, ou do que existe nas águas,
debaixo da terra. Não te prostrarás diante destes deuses nem lhes
prestarás culto...” (Ex 20, 4-5) pois fica evidente, pela leitura
do texto bíblico, que a catequese católica 'saltou' este e pôs
como se fosse o segundo mandamento, o terceiro (Ex 20,7): não
pronunciarás o nome de Deus em vão. Depois viria a questão do
sábado, mas deixemos essa polêmica para outra ocasião.
É do conhecimento
geral que a catequese católica pulou este segundo mandamento porque,
ao longo do tempo, sempre aprovou e autorizou o uso de imagens
sacras, tendo sido essa uma das grandes divergências apontadas por
Lutero e ainda hoje motivo de reclamação dos cristãos não
católicos. Eu vejo nisso uma enorme e desnecessária discussão que,
perante uma interpretação dinâmica da escritura, não apegada à
literalidade, em nada contradiria a prática tradicional do
catolicismo. Bem que a Igreja Católica poderia rever o rol dos
mandamentos e corrigir aquilo que, pela simples leitura do texto do
Êxodo, está em desalinho. Para entender melhor isso, basta
analisarmos o significado da idolatria, rejeitada por Javeh em Ex,
20, 4. Se observarmos bem, o grande “x” da questão não está no
ato de esculpir imagens de figura alguma (vers. 4), mas no ato de
prostrar-se e adorar esses 'deuses' (vers. 5). Trata-se de um
mandamento só: não esculpir imagens de figuras (deuses, imagens
=eídolon, em grego), para que o povo não venha a praticar a
'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos.
O ciúme de Javeh se foca no fato de ser 'substituído' pelas figuras
criadas pelo povo, não é propriamente pelas esculturas em si
mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas
vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para
anunciar a lei, encontrou vários hebreus cultuando o bezerro de
ouro.
Ora, nós todos sabemos
que as imagens sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma
característica dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são
elas objeto de adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e
edificação, cristãos que podem ser considerados como modelos a
serem seguidos, pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, assim são
os fiéis canonizados (santos). As imagens religiosas não são
objetos de culto, embora estejam presentes no recinto do culto. Não
se pode negar que uma significativa parcela dos fiéis, de instrução
religiosa mais elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é
a postura teológica doutrinária. Por isso, entendo ser bastante
razoável uma 'revisão' do que foi escrito no passado e fazer-se uma
adequação do texto catequético ao texto bíblico. O grande
problema é que, então, isso iria significar a admissão de um erro
histórico e aí entra aquela outra séria e desnecessária decisão
dogmática das autoridades religiosas do passado acerca da
'inerrância' da instituição eclesiástica, cujos desdobramentos
doutrinários e pastorais são totalmente imprevisíveis. Contudo,
meus amigos, fico eu a pensar se a manutenção da situação atual é
menos prejudicial do que uma reformulação doutrinária em alguns
pontos básicos.
A situação do
catolicismo mundial está muito complicada. Estatisticamente, a
Europa possui um número assustadoramente baixo de católicos. A
África e a Àsia, há muito tempo, têm folgada maioria islâmica.
Os Estados Unidos da América são, desde há muito, em maioria
protestantes. Resta apenas a América do Sul, especialmente o Brasil,
como o grande celeiro mundial dos cristãos católicos. Mas com a
maciça investida das organizações evangélicas, igrejas-empresas,
a nossa população mais desinformada vem trocando, com uma
preocupante mobilidade, sua fé católica pelo engodo daqueles que
prometem 'um terreninho no céu' pago em módicas prestações. Do
jeito que a situação evolui, daqui a pouco teremos um mero punhado
de intelectuais adeptos do catolicismo ortodoxo, provavelmente,
aqueles vinculados a alguma das comunidades 'carismáticas'.
Meus amigos, penso que
vocês vão concordar comigo no seguinte: o grande, o máximo, o
sublime ídolo do nosso tempo é o dinheiro, é ele que está tomando
o lugar sagrado do Criador, mesmo nos ambientes religiosos, que se
autoproclamam legítimos. Não são as figuras de gesso, madeira ou
bronze que ameaçam o lugar de Deus no nosso meio, mas sim o vil
metal. É verdade que, sem o dinheiro, nada se faz nos dias de hoje.
Aquela regra antiga de São Francisco (“que os frades não recebam
dinheiro”) já foi abandonada há muito tempo, por razões
perfeitamente compreensíveis. Mas uma coisa é utilizar o dinheiro
como meio, outra bem diferente é ter o dinheiro como um fim em si
mesmo. E aqui entra a narrativa do evangelho de João (2, 13) sobre a
atitude radical de Jesus em expulsar os comerciantes do templo: “Não
façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” Eu fico a pensar
que atitude tomaria Jesus se chegasse hoje em muitos dos nossos
templos, sobretudo nas calçadas e arredores, mais especialmente nos
dias de festas do(a) padroeiro(a)... com certeza ele repetiria a
mesma cena narrada no evangelho. Citemos somente os exemplos de
Canindé, Juazeiro do Norte, Aparecida (SP). Como fica difícil
distinguir as pessoas que ali comparecem com verdadeiro espírito de
fé daquelas outras que têm como objetivo apenas “se dar bem”
com a situação. Uma vez, eu fui a Canindé e, logo que desci do
carro, na praça da Matriz, achegou-se um cidadão e me 'deu' um
santinho minúsculo de bronze, dizendo que já estava bento e que
estava doando, porque ele não vendia o produto. Mas me pediu uma
ajuda financeira em compensação. Eu recusei o 'presente' e ele
ficou visivelmente aborrecido, porque escolheu o cliente errado. E
fiquei pensando na estratégia dele e nas diversas formas dos outros
'vendedores' dissimulados. Nos dias de romarias, esses aproveitadores
fazem a sua festa particular.
Nesse contexto, meus
amigos, eu vejo também com muita preocupação os casos dos
'padres-cantores', gravadores de discos e apresentadores de shows
religiosos. De um lado, eles realizam uma forma de evangelizar,
aproveitando-se dos meios audiovisuais. Mas junto com isso, tem o
lado inevitável dos produtos que eles 'divulgam', inclusive CD e
DVD, cobrando dinheiro para fazer apresentações, negociando
retransmissão de programas em emissoras de rádio, etc. Por mais que
eles declarem o propósito favorável do empreendimento, fica difícil
estabelecer uma linha divisória entre a devoção e o mercantilismo.
E assim, a idolatria tão rejeitada por Javeh desde tempos imemoriais
continua infiltrada, de modo mais ou menos disfarçado, entre as
pessoas e os ambientes religiosos.
Por isso, escrevi acima
que a grande preocupação de Javeh, ao proibir a confecção das
imagens, não era pelas figuras em si, mas pela idolatria que elas
poderiam gerar. Ocorre que, com ou sem a presença das imagens, o que
preocupa Javeh é a substituição dEle pelos ídolos, sejam eles em
qual figura se expressem. Daí eu ter afirmado acima que o comércio
religioso é, ao meu ver, o grande ídolo da religiosidade
contemporânea. E nesse ponto, vemos que católicos e não católicos
estão numa mesma situação, com certa hegemonia de algumas
organizações evangélicas, que não se preocupam em disfarçar o
seu verdadeiro objetivo. E o nosso povo simples, ingenuamente e
embotado pela mentalidade cultural criada pela catequese histórica
no nosso meio, considera isso a coisa mais natural do mundo.
Estejamos atentos para
não sermos cooptados por essa sutil e penetrante idolatria
contemporânea.
Nenhum comentário:
Postar um comentário