terça-feira, 17 de abril de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – IDOLATRIA E COMÉRCIO RELIGIOSO – 11.03.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – IDOLATRIA E COMÉRCIO RELIGIOSO – 11.03.2012



As leituras da liturgia deste domingo (3º da quaresma) nos trazem para a reflexão diversos temas importantes, mas vou me fixar apenas na questão da idolatria e sua consequência, que é o comércio religioso.

Vemos na primeira leitura, do livro do Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos mandamentos dados a Moisés no monte Sinai. Este tema é, por si só, merecedor de um comentário à parte, por conta das inúmeras divergências sobretudo entre católicos e seguidores de Lutero, especialmente no que diz respeito ao segundo mandamento (não farás imagens) e ao último (não cobiçarás a mulher do próximo,nem seu boi, nem seu jumento...), quanto ao primeiro, a catequese católica simplesmente omitiu, e quanto ao segundo, dividiu em dois preceitos. Atenhamo-nos, porém, apenas ao tema do segundo mandamento: “não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, ou embaixo, na terra, ou do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante destes deuses nem lhes prestarás culto...” (Ex 20, 4-5) pois fica evidente, pela leitura do texto bíblico, que a catequese católica 'saltou' este e pôs como se fosse o segundo mandamento, o terceiro (Ex 20,7): não pronunciarás o nome de Deus em vão. Depois viria a questão do sábado, mas deixemos essa polêmica para outra ocasião.

É do conhecimento geral que a catequese católica pulou este segundo mandamento porque, ao longo do tempo, sempre aprovou e autorizou o uso de imagens sacras, tendo sido essa uma das grandes divergências apontadas por Lutero e ainda hoje motivo de reclamação dos cristãos não católicos. Eu vejo nisso uma enorme e desnecessária discussão que, perante uma interpretação dinâmica da escritura, não apegada à literalidade, em nada contradiria a prática tradicional do catolicismo. Bem que a Igreja Católica poderia rever o rol dos mandamentos e corrigir aquilo que, pela simples leitura do texto do Êxodo, está em desalinho. Para entender melhor isso, basta analisarmos o significado da idolatria, rejeitada por Javeh em Ex, 20, 4. Se observarmos bem, o grande “x” da questão não está no ato de esculpir imagens de figura alguma (vers. 4), mas no ato de prostrar-se e adorar esses 'deuses' (vers. 5). Trata-se de um mandamento só: não esculpir imagens de figuras (deuses, imagens =eídolon, em grego), para que o povo não venha a praticar a 'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos. O ciúme de Javeh se foca no fato de ser 'substituído' pelas figuras criadas pelo povo, não é propriamente pelas esculturas em si mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para anunciar a lei, encontrou vários hebreus cultuando o bezerro de ouro.

Ora, nós todos sabemos que as imagens sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma característica dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são elas objeto de adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e edificação, cristãos que podem ser considerados como modelos a serem seguidos, pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, assim são os fiéis canonizados (santos). As imagens religiosas não são objetos de culto, embora estejam presentes no recinto do culto. Não se pode negar que uma significativa parcela dos fiéis, de instrução religiosa mais elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é a postura teológica doutrinária. Por isso, entendo ser bastante razoável uma 'revisão' do que foi escrito no passado e fazer-se uma adequação do texto catequético ao texto bíblico. O grande problema é que, então, isso iria significar a admissão de um erro histórico e aí entra aquela outra séria e desnecessária decisão dogmática das autoridades religiosas do passado acerca da 'inerrância' da instituição eclesiástica, cujos desdobramentos doutrinários e pastorais são totalmente imprevisíveis. Contudo, meus amigos, fico eu a pensar se a manutenção da situação atual é menos prejudicial do que uma reformulação doutrinária em alguns pontos básicos.

A situação do catolicismo mundial está muito complicada. Estatisticamente, a Europa possui um número assustadoramente baixo de católicos. A África e a Àsia, há muito tempo, têm folgada maioria islâmica. Os Estados Unidos da América são, desde há muito, em maioria protestantes. Resta apenas a América do Sul, especialmente o Brasil, como o grande celeiro mundial dos cristãos católicos. Mas com a maciça investida das organizações evangélicas, igrejas-empresas, a nossa população mais desinformada vem trocando, com uma preocupante mobilidade, sua fé católica pelo engodo daqueles que prometem 'um terreninho no céu' pago em módicas prestações. Do jeito que a situação evolui, daqui a pouco teremos um mero punhado de intelectuais adeptos do catolicismo ortodoxo, provavelmente, aqueles vinculados a alguma das comunidades 'carismáticas'.

Meus amigos, penso que vocês vão concordar comigo no seguinte: o grande, o máximo, o sublime ídolo do nosso tempo é o dinheiro, é ele que está tomando o lugar sagrado do Criador, mesmo nos ambientes religiosos, que se autoproclamam legítimos. Não são as figuras de gesso, madeira ou bronze que ameaçam o lugar de Deus no nosso meio, mas sim o vil metal. É verdade que, sem o dinheiro, nada se faz nos dias de hoje. Aquela regra antiga de São Francisco (“que os frades não recebam dinheiro”) já foi abandonada há muito tempo, por razões perfeitamente compreensíveis. Mas uma coisa é utilizar o dinheiro como meio, outra bem diferente é ter o dinheiro como um fim em si mesmo. E aqui entra a narrativa do evangelho de João (2, 13) sobre a atitude radical de Jesus em expulsar os comerciantes do templo: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” Eu fico a pensar que atitude tomaria Jesus se chegasse hoje em muitos dos nossos templos, sobretudo nas calçadas e arredores, mais especialmente nos dias de festas do(a) padroeiro(a)... com certeza ele repetiria a mesma cena narrada no evangelho. Citemos somente os exemplos de Canindé, Juazeiro do Norte, Aparecida (SP). Como fica difícil distinguir as pessoas que ali comparecem com verdadeiro espírito de fé daquelas outras que têm como objetivo apenas “se dar bem” com a situação. Uma vez, eu fui a Canindé e, logo que desci do carro, na praça da Matriz, achegou-se um cidadão e me 'deu' um santinho minúsculo de bronze, dizendo que já estava bento e que estava doando, porque ele não vendia o produto. Mas me pediu uma ajuda financeira em compensação. Eu recusei o 'presente' e ele ficou visivelmente aborrecido, porque escolheu o cliente errado. E fiquei pensando na estratégia dele e nas diversas formas dos outros 'vendedores' dissimulados. Nos dias de romarias, esses aproveitadores fazem a sua festa particular.

Nesse contexto, meus amigos, eu vejo também com muita preocupação os casos dos 'padres-cantores', gravadores de discos e apresentadores de shows religiosos. De um lado, eles realizam uma forma de evangelizar, aproveitando-se dos meios audiovisuais. Mas junto com isso, tem o lado inevitável dos produtos que eles 'divulgam', inclusive CD e DVD, cobrando dinheiro para fazer apresentações, negociando retransmissão de programas em emissoras de rádio, etc. Por mais que eles declarem o propósito favorável do empreendimento, fica difícil estabelecer uma linha divisória entre a devoção e o mercantilismo. E assim, a idolatria tão rejeitada por Javeh desde tempos imemoriais continua infiltrada, de modo mais ou menos disfarçado, entre as pessoas e os ambientes religiosos.

Por isso, escrevi acima que a grande preocupação de Javeh, ao proibir a confecção das imagens, não era pelas figuras em si, mas pela idolatria que elas poderiam gerar. Ocorre que, com ou sem a presença das imagens, o que preocupa Javeh é a substituição dEle pelos ídolos, sejam eles em qual figura se expressem. Daí eu ter afirmado acima que o comércio religioso é, ao meu ver, o grande ídolo da religiosidade contemporânea. E nesse ponto, vemos que católicos e não católicos estão numa mesma situação, com certa hegemonia de algumas organizações evangélicas, que não se preocupam em disfarçar o seu verdadeiro objetivo. E o nosso povo simples, ingenuamente e embotado pela mentalidade cultural criada pela catequese histórica no nosso meio, considera isso a coisa mais natural do mundo.

Estejamos atentos para não sermos cooptados por essa sutil e penetrante idolatria contemporânea.

Nenhum comentário:

Postar um comentário