terça-feira, 17 de abril de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – DIVES IN MISERICORDIA (RICO EM MISERICÓRDIA) – 18.03.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – DIVES IN MISERICORDIA (RICO EM MISERICÓRDIA) – 18.03.2012

A liturgia do 4º domingo da quaresma traz como tema das leituras o conhecido mote paulino “dives in misericórdia” = o Senhor é rico em misericórdia.

Vemos, na primeira leitura retirada do livro de Paralipômenos ou Crônicas, que o povo todo (tanto os chefes como os subordinados) foi infiel a Javeh e O substituiu pelos ídolos das nações pagãs, profanando o sagrado templo, por isso, o castigo foi também tremendo: aqueles que não foram mortos à espada pelo exército de Nabucodonosor, foram levados cativos para a Babilônia. Aparece novamente aqui a temática da idolatria, que foi comentada do domingo anterior, e desta vez fica mais clara ainda que a ira de Javeh não é propriamente quanto à confecção de esculturas ou imagens, mas sim com o fato de que o povo passa a adorar essas imagens, em vez de adorar o próprio Javeh. Daí a proibição de fazer qualquer escultura, por causa do risco de que sejam transformadas em objeto de adoração e assim o povo venha a se afastar de Javeh e voltar-se para as esculturas que eles mesmos fizeram. Mas este tema é tratado apenas 'en passant', porque já foi abordado antes. Aqui o foco se desloca para a misericórdia divina com o povo, mesmo tendo sido ele infiel e idólatra.

Nesse contexto do cativeiro da Babilônia compreendemos todo o livro de Isaías, pois foi através deste profeta que Javeh fez a catequese do povo no sentido de que eles entendessem que o cativeiro era fruto da infidelidade, mas que o Senhor estava sempre pronto a perdoar, esquecer tudo e devolver a liberdade deles, assim que eles O reconhecessem como seu Deus e se voltassem para ele. E, por fim, Isaias mostrou a povo que Javeh se utilizou da força do exército de Ciro, rei dos Persas, para vencer o dominador babilônico e restituir a liberdade aos hebreus. É o que se contém em Isaías 44, 29: “ASSIM diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas ”. E na leitura deste domingo, nas Crônicas, vemos que o rei Ciro, da Pérsia, baixou um Edito que ele mandou publicar de viva voz e afixar em todo o reino, confirmando a promessa de Javeh: 'Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho'. (II Cro 36, 23) Foi a concretização da tão sonhada liberdade do povo hebreu. No salmo responsorial desta primeira leitura, o salmista repete as palavras sofridas do povo enquanto se encontrava cativo: “junto aos rios da Babilônia nos sentávamos e chorávamos, lembrando de Sião; nos salgueiros das suas margens, pendurávamos nossas cítaras.” (Salmo 136, 1). Após o Edito de Ciro, certamente eles foram buscar suas cítaras e saíram correndo em busca de Jerusalém. Então, vemos aqui o tema principal da leitura: o Senhor é rico em misericórdia. Apesar de todas as infidelidades praticadas pelo povo, mesmo tendo ficado irado com isso e aplicado severo castigo, o Senhor relevou tudo e perdoou o seu povo, que ouviu a voz do profeta e voltou para Ele.

Este tema está contido também na segunda leitura, de Paulo aos Efésios, quando ele afirma: “Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! ” (Ef 2, 4) Neste outro momento da história do povo de Deus, a misericórdia divina se manifestou em sua forma mais plena na pessoa de Cristo, em cuja ressurreição, o Pai nos ressuscitou a todos e nos garantiu um assento no céu. Nesta leitura, temos também uma afirmação paulina, que é motivo de divergência entre os teólogos, em relação àquilo que é necessário para a salvação. No cap 2, vers 8, Paulo diz que “é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. ” Ora, meus amigos, o que Paulo está dizendo? Que a fé é uma graça que Deus nos dá e, com ela, faremos boas obras e teremos acesso à salvação, ou seja, tudo se inicia com a graça. Santo Agostinho gastou muito tempo meditando para tentar entender como isso acontece, tendo em vista que Deus fez o ser humano dotado de liberdade. Então, se Deus nos deu ao homem o livre arbítrio e depois vem dar a sua graça, isso fica parecendo uma contradição, pois se o homem, usando do livre arbítrio que Deus lhe dá, não quiser receber a graça, mesmo assim a receberá? Ou seja, a graça é uma imposição divina para nós, o que afronta a liberdade humana, dada pelo mesmo Deus. É como se Deus estivesse sendo incoerente, o que é inadmissível para a pessoa divina. Como é que ele dá liberdade ao homem e, ao mesmo tempo, o obriga a receber a graça? De acordo com Paulo, sem a graça que Deus nos dá, não teríamos a fé e sem a fé não teríamos a salvação. Portanto, é pela graça de Deus que temos a salvação. Mas se o homem não quiser se salvar, como fica? Ele é ou não livre para aceitar a graça que Deus lhe dá? Santo Agostinho chegou até a pensar que haveria uma predestinação, ou seja, alguns homens já estariam condenados desde o nascimento, pois Deus já sabia que esses não iriam corresponder à sua graça. Depois, o próprio Agostinho rejeitou essa explicação, porque isso equivaleria a dizer que Deus é injusto, o que também é inadmissível para a pessoa divina. Por fim, Santo Agostinho não encontrou uma explicação satisfatória. Depois, Sto Tomás veio dizer que a graça não interfere na liberdade, porque o homem é livre na medida em que está aberto à graça divina, pois a graça é aquilo que a mais realiza a liberdade humana. Eu confesso a vocês que, nos meus estudos de teologia, esse foi um assunto que não me deixou satisfeito com nenhuma das doutrinas. Para mim, continua uma incógnita o modo de explicar racionalmente como se dá esse confronto entre liberdade e graça. Talvez não haja uma forma racional de explicar isso.

Na leitura do evangelho de João, vemos o diálogo de Cristo com Nicodemos. Este, assim como José de Arimatéia, eram fariseus que reconheciam em Cristo o Messias, mas não assumiam isso em público, com medo da represália dos membros do seu grupo. Tanto que Nicodemos só se encontrava com Cristo em ambiente reservado, para conversar a sós. E Cristo então tinha toda paciência para explicar a ele respondendo as suas dúvidas e mostrando que os fariseus estavam sendo irracionais em não aceitá-lo como Messias, demonstrando que Ele tinha vindo como enviado do Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. ” Em outras palavras, Cristo estava mandando um recado aos fariseus através de Nicodemos. Vejam, eu vou ser elevado do solo assim como Moisés fez com a serpente no deserto, para salvação do povo. (Jo 3, 16) Cristo é Ele mesmo a própria misericórdia divina em pessoa e quem não acreditar nisso, já está condenado. Observem bem, Cristo não disse que Deus condena quem não acredita nele (Cristo), disse que quem não acreditasse estaria se autocondenando. A lei estava ali, na pessoa dEle e o julgamento já estava proclamado: “o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz.” Deus é rico em misericórdia, mas do mesmo modo como entregou o povo para ser escravo, no tempo de Nabucodonosor, porque eles insistiam em não reconhecê-lO como o seu Deus, do mesmo modo aqueles que não reconhecessem o Filho Unigênito, misericórdia divina em pessoa, também seriam atirados num tremendo castigo.

Portanto, meus amigos, a riqueza misericordiosa de Deus tem um limite que não está nEle, mas em nós, isto é, a misericórdia divina é sem limite mas se nós não O aceitarmos, o problema não está com Ele, mas conosco. Deus não condena ninguém, ao contrário, ele está sempre pronto a perdoar e esquecer, como fez com o seu povo muitas vezes infiel. Quem se condena é o próprio pecador, quando não reconhece o dom misericordioso de Deus que Ele está constantemente a nos ofertar.

Que Deus nos ilumine para termos sempre a mente aberta e o livre arbítrio orientado para a sua divina graça, para que assim a nossa fé esteja sempre acima de qualquer tribulação.


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