COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – DIVES IN MISERICORDIA (RICO EM MISERICÓRDIA) – 18.03.2012
A liturgia do 4º
domingo da quaresma traz como tema das leituras o conhecido mote
paulino “dives in misericórdia” = o Senhor é rico em
misericórdia.
Vemos, na primeira
leitura retirada do livro de Paralipômenos ou Crônicas, que o povo
todo (tanto os chefes como os subordinados) foi infiel a Javeh e O
substituiu pelos ídolos das nações pagãs, profanando o sagrado
templo, por isso, o castigo foi também tremendo: aqueles que não
foram mortos à espada pelo exército de Nabucodonosor, foram levados
cativos para a Babilônia. Aparece novamente aqui a temática da
idolatria, que foi comentada do domingo anterior, e desta vez fica
mais clara ainda que a ira de Javeh não é propriamente quanto à
confecção de esculturas ou imagens, mas sim com o fato de que o
povo passa a adorar essas imagens, em vez de adorar o próprio Javeh.
Daí a proibição de fazer qualquer escultura, por causa do risco de
que sejam transformadas em objeto de adoração e assim o povo venha
a se afastar de Javeh e voltar-se para as esculturas que eles mesmos
fizeram. Mas este tema é tratado apenas 'en passant', porque já foi
abordado antes. Aqui o foco se desloca para a misericórdia divina
com o povo, mesmo tendo sido ele infiel e idólatra.
Nesse contexto do
cativeiro da Babilônia compreendemos todo o livro de Isaías, pois
foi através deste profeta que Javeh fez a catequese do povo no
sentido de que eles entendessem que o cativeiro era fruto da
infidelidade, mas que o Senhor estava sempre pronto a perdoar,
esquecer tudo e devolver a liberdade deles, assim que eles O
reconhecessem como seu Deus e se voltassem para ele. E, por fim,
Isaias mostrou a povo que Javeh se utilizou da força do exército de
Ciro, rei dos Persas, para vencer o dominador babilônico e restituir
a liberdade aos hebreus. É o que se contém em Isaías 44, 29:
“ASSIM diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão
direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os
lombos dos reis, para abrir diante dele as portas ”. E na
leitura deste domingo, nas Crônicas, vemos que o rei Ciro, da
Pérsia, baixou um Edito que ele mandou publicar de viva voz e afixar
em todo o reino, confirmando a promessa de Javeh: 'Assim fala
Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos
da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém,
que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu
povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a
caminho'. (II Cro 36, 23) Foi a concretização da tão sonhada
liberdade do povo hebreu. No salmo responsorial desta primeira
leitura, o salmista repete as palavras sofridas do povo enquanto se
encontrava cativo: “junto aos rios da Babilônia nos sentávamos e
chorávamos, lembrando de Sião; nos salgueiros das suas margens,
pendurávamos nossas cítaras.” (Salmo 136, 1). Após o Edito de
Ciro, certamente eles foram buscar suas cítaras e saíram correndo
em busca de Jerusalém. Então, vemos aqui o tema principal da
leitura: o Senhor é rico em misericórdia. Apesar de todas as
infidelidades praticadas pelo povo, mesmo tendo ficado irado com isso
e aplicado severo castigo, o Senhor relevou tudo e perdoou o seu
povo, que ouviu a voz do profeta e voltou para Ele.
Este tema está contido
também na segunda leitura, de Paulo aos Efésios, quando ele afirma:
“Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos
mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É
por graça que vós sois salvos! ” (Ef 2, 4) Neste outro momento da
história do povo de Deus, a misericórdia divina se manifestou em
sua forma mais plena na pessoa de Cristo, em cuja ressurreição, o
Pai nos ressuscitou a todos e nos garantiu um assento no céu. Nesta
leitura, temos também uma afirmação paulina, que é motivo de
divergência entre os teólogos, em relação àquilo que é
necessário para a salvação. No cap 2, vers 8, Paulo diz que “é
pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós;
é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. ”
Ora, meus amigos, o que Paulo está dizendo? Que a fé é uma graça
que Deus nos dá e, com ela, faremos boas obras e teremos acesso à
salvação, ou seja, tudo se inicia com a graça. Santo Agostinho
gastou muito tempo meditando para tentar entender como isso acontece,
tendo em vista que Deus fez o ser humano dotado de liberdade. Então,
se Deus nos deu ao homem o livre arbítrio e depois vem dar a sua
graça, isso fica parecendo uma contradição, pois se o homem,
usando do livre arbítrio que Deus lhe dá, não quiser receber a
graça, mesmo assim a receberá? Ou seja, a graça é uma imposição
divina para nós, o que afronta a liberdade humana, dada pelo mesmo
Deus. É como se Deus estivesse sendo incoerente, o que é
inadmissível para a pessoa divina. Como é que ele dá liberdade ao
homem e, ao mesmo tempo, o obriga a receber a graça? De acordo com
Paulo, sem a graça que Deus nos dá, não teríamos a fé e sem a fé
não teríamos a salvação. Portanto, é pela graça de Deus que
temos a salvação. Mas se o homem não quiser se salvar, como fica?
Ele é ou não livre para aceitar a graça que Deus lhe dá? Santo
Agostinho chegou até a pensar que haveria uma predestinação, ou
seja, alguns homens já estariam condenados desde o nascimento, pois
Deus já sabia que esses não iriam corresponder à sua graça.
Depois, o próprio Agostinho rejeitou essa explicação, porque isso
equivaleria a dizer que Deus é injusto, o que também é
inadmissível para a pessoa divina. Por fim, Santo Agostinho não
encontrou uma explicação satisfatória. Depois, Sto Tomás veio
dizer que a graça não interfere na liberdade, porque o homem é
livre na medida em que está aberto à graça divina, pois a graça é
aquilo que a mais realiza a liberdade humana. Eu confesso a vocês
que, nos meus estudos de teologia, esse foi um assunto que não me
deixou satisfeito com nenhuma das doutrinas. Para mim, continua uma
incógnita o modo de explicar racionalmente como se dá esse
confronto entre liberdade e graça. Talvez não haja uma forma
racional de explicar isso.
Na leitura do evangelho
de João, vemos o diálogo de Cristo com Nicodemos. Este, assim como
José de Arimatéia, eram fariseus que reconheciam em Cristo o
Messias, mas não assumiam isso em público, com medo da represália
dos membros do seu grupo. Tanto que Nicodemos só se encontrava com
Cristo em ambiente reservado, para conversar a sós. E Cristo então
tinha toda paciência para explicar a ele respondendo as suas dúvidas
e mostrando que os fariseus estavam sendo irracionais em não
aceitá-lo como Messias, demonstrando que Ele tinha vindo como
enviado do Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho
unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a
vida eterna. ” Em outras palavras, Cristo estava mandando um recado
aos fariseus através de Nicodemos. Vejam, eu vou ser elevado do solo
assim como Moisés fez com a serpente no deserto, para salvação do
povo. (Jo 3, 16) Cristo é Ele mesmo a própria misericórdia divina
em pessoa e quem não acreditar nisso, já está condenado. Observem
bem, Cristo não disse que Deus condena quem não acredita nele
(Cristo), disse que quem não acreditasse estaria se autocondenando.
A lei estava ali, na pessoa dEle e o julgamento já estava
proclamado: “o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os
homens preferiram as trevas à luz.” Deus é rico em misericórdia,
mas do mesmo modo como entregou o povo para ser escravo, no tempo de
Nabucodonosor, porque eles insistiam em não reconhecê-lO como o seu
Deus, do mesmo modo aqueles que não reconhecessem o Filho Unigênito,
misericórdia divina em pessoa, também seriam atirados num tremendo
castigo.
Portanto, meus amigos,
a riqueza misericordiosa de Deus tem um limite que não está nEle,
mas em nós, isto é, a misericórdia divina é sem limite mas se nós
não O aceitarmos, o problema não está com Ele, mas conosco. Deus
não condena ninguém, ao contrário, ele está sempre pronto a
perdoar e esquecer, como fez com o seu povo muitas vezes infiel. Quem
se condena é o próprio pecador, quando não reconhece o dom
misericordioso de Deus que Ele está constantemente a nos ofertar.
Que Deus nos ilumine
para termos sempre a mente aberta e o livre arbítrio orientado para
a sua divina graça, para que assim a nossa fé esteja sempre acima
de qualquer tribulação.
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