terça-feira, 17 de abril de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – TEOLOGIA JOANINA – 15.04.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – TEOLOGIA JOANINA – 15.04.2012



Neste segundo domingo da Páscoa (atentar que não se diz domingo 'depois' da Páscoa), fiz a opção de não destacar um tema em especial, mas comentar diversos pontos teológicos próprios da teologia joanina, a partir dos seus escritos colocados na liturgia de hoje: a 1a. Carta e o evangelho.

Para melhor compreensão, é necessário observar que o evangelho e as cartas de João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT. Embora o cânon da Sagrada Escritura coloque no final da Bíblia o Apocalipse, este foi escrito antes, na época em que João estava exilado na ilha de Patmos. As cartas e o evangelho foram escritos após a sua libertação, por volta dos anos 96 a 100. Esse detalhe é importante para perceber o amadurecimento teológico presente nos escritos joaninos, resultado já de várias décadas de desenvolvimento da doutrina cristã.

No trecho da 1a. Carta de João, selecionado pela liturgia deste domingo (5, 1-6) temos pelo menos duas lições a destacar: no vers. 3, temos: “pois isso é amar a Deus: observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são pesados.” Ou seja, é o mandamento do amor, aquele que Cristo resumiu no lavapés dos discípulos, quando disse: eu vos dou um novo mandamento – que vos ameis uns aos outros, este é o sinal pelo qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o que d'Ele nasceu. Portanto, já não são mais aqueles mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Trata-se agora do novo mandamento, que resume os antigos 10 em apenas 2: amar a Deus e ao próximo.

A outra lição está no vers. 6: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Nâo veio somente com água, mas com a água e o sangue.” João refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar também da morte e ressurreição de Cristo, no sacrifício eucarístico. Cristo morreu por nós e nos salvou, mas para sermos merecedores desse dom salvífico, devemos participar com Ele da sua cruz através da memória da redenção, que se renova a cada dia na celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs, colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova aliança.

No trecho do evangelho da liturgia de hoje (Jo 20, 19-31), onde está relatado o episódio da incredulidade de Tomé, há outros pontos a destacar além dessa conhecida história, que virou até comercial de sabão em pó, na década de 70 (teste de s. Tomé). No vers 22, João diz que Jesus “soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por João, bem diferente das outras narrações, que falam em línguas de fogo. Cristo conferiu o Espírito aos apóstolos nesta sua primeira 'visita', ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana. Se fizermos uma composição cronológica, este dia seria o domingo de hoje, porque no alvorecer do primeiro dia da semana após a sua morte, Jesus ressuscitou e apareceu a Maria Madalena, mandando recado aos apóstolos que iria encontrá-los na Galiléia. É interessante observar que, de início, a Igreja ainda mantinha o costume judaico de guardar o sábado, só depois de conscientizar-se de que os fatos mais importantes a partir da ressurreição de Cristo ocorreram no primeiro dia da semana, foi-se introduzindo a mudança para o domingo como dia do Senhor. Tal mudança ainda não é bem aceita e entendida por diversas igrejas cristãs não católicas (não falar 'protestantes', ok, em homenagem ao grande Papa João XXIII).

Outro detalhe interessante: Tomé não se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Pois bem, quando Cristo apareceu no domingo seguinte, foi logo chamando Tomé e mostrando as chagas, ou seja, Cristo já sabia da incredulidade de Tomé sem ninguém ter-lhe informado disso. João utiliza este episódio dando bastante ênfase à teimosia de Tomé com dois objetivos: primeiro, para mostrar a divindade de Cristo através do dom da onisciência, pois soubera do que Tomé havia dito mesmo sem ninguém ter falado isso para Ele; segundo, para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer Cristo, quando Este disse que: “bem aventurados os que creram sem ter visto.” E como João sabia que este escrito ia ser distribuído para muitas comunidades na Ásia Menor, ele complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.

Quero destacar agora um ponto de muita importância teológica e ao mesmo tempo suscitador de grande polêmica. Está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. Primeiro, devemos entender que o perdoar naquela época significava livrar, porque quem tinha alguma dívida e não podia pagar se tornava escravo do credor. Quando o credor perdoava a dívida, significava que estava dando a liberdade ao devedor. Então, é neste contexto que devemos entender o 'perdoar' de João, ou seja, de libertar a pessoa daquele mal que é o pecado. Quem não era perdoado, permanecia escravo. Portanto, este é o sentido do verbo 'retiverdes', a pessoa continuaria presa ao seu pecado, não se libertaria. Ficar retido, pois, significa permanecer escravo do próprio pecado. Assim fica o pecador que não manifesta arrependimento.

Aqui entra outro ponto muito delicado. A teologia considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo 'sacramento da confissão', mas não é bem assim, é o sacramento da penitência e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados (subentende-se dos arrependidos) e reter, isto é, não perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador devia ir até os apóstolos e 'narrar seus pecados' para poder ser perdoado, a ordem de Cristo se concentra no perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica coloca como obrigatória a 'confissão' dos pecados? Nas primeiras comunidades eclesiais, não havia essa 'confissão'. O ato penitencial que faz parte da liturgia eucarística é exatamente o momento para o pecador examinar o seu íntimo e se arrepender. No entanto, a Igreja Católica não considera só esse arrependimento íntimo como suficiente para o perdão, exige o ritual de comparecer diante do sacerdote para que o perdão seja efetivo.

Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, cujo cinquentenário está sendo comemorado neste ano, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de 'confissão comunitária', que foi uma sugestão de alguns grupos de conciliares para o retorno da prática original da penitência, como era nos primeiros tempos da era cristã. Todavia, as forças conservadoras da teologia, das quais o nosso Papa Bento XVI é um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões especialíssimas e em caráter excepcional.

Conclui-se que esse ritual da 'confissão' foi introduzido na teologia posteriormente como fazendo parte do sacramento da penitência, tendo sido inventado pelos monges medievais que faziam a 'confissão' em sinal de humildade, como uma prática devocional optativa e mais fervorosa. Mais ou menos como nós fazíamos no 'capítulo das culpas', que era parte dos costumes diários no tempo do noviciado. Mas Cristo, segundo as palavras de João, não colocou essa condição como necessária para o perdão, apenas o arrependimento. Assim como também Cristo não disse que os cristãos deveriam participar da celebração eucarística todos os domingos. Ele disse apenas “todas as vezes que fizerdes isso, fazei-o em minha memória”. A Igreja Católica faz esses acréscimos fundamentando-se naquela outra 'delegação' de Cristo a Pedro: tudo o que ligares... e o que desligares... Contudo, devemos ter em mente que a doutrina deve também acompanhar a evolução dos tempos, pois aquele famoso ditado latino 'oh tempora, oh mores' não deve ser entendido apenas em relação aos costumes pretéritos, mas respeitando cada grupo de 'mores' nos seus devidos 'tempora'. Na comemoração dos 50 anos do Concílio Vaticano II, foi convocado pelo Papa um Sínodo dos Bispos para o mês de outubro deste ano. Como seria oportuno um novo fôlego para o 'aggiornamento' tão acalentado por João XXIII, que foi se tornando em 'apassadamento' nas décadas seguintes até hoje.


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