COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 2º DOMINGO DA PÁSCOA – TEOLOGIA JOANINA – 15.04.2012
Neste segundo domingo
da Páscoa (atentar que não se diz domingo 'depois' da Páscoa), fiz
a opção de não destacar um tema em especial, mas comentar diversos
pontos teológicos próprios da teologia joanina, a partir dos seus
escritos colocados na liturgia de hoje: a 1a. Carta e o evangelho.
Para melhor
compreensão, é necessário observar que o evangelho e as cartas de
João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT.
Embora o cânon da Sagrada Escritura coloque no final da Bíblia o
Apocalipse, este foi escrito antes, na época em que João estava
exilado na ilha de Patmos. As cartas e o evangelho foram escritos
após a sua libertação, por volta dos anos 96 a 100. Esse detalhe é
importante para perceber o amadurecimento teológico presente nos
escritos joaninos, resultado já de várias décadas de
desenvolvimento da doutrina cristã.
No trecho da 1a. Carta
de João, selecionado pela liturgia deste domingo (5, 1-6) temos pelo
menos duas lições a destacar: no vers. 3, temos: “pois isso é
amar a Deus: observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus
não são pesados.” Ou seja, é o mandamento do amor, aquele que
Cristo resumiu no lavapés dos discípulos, quando disse: eu vos dou
um novo mandamento – que vos ameis uns aos outros, este é o sinal
pelo qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz
que os mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais
digno e prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará
também o que d'Ele nasceu. Portanto, já não são mais aqueles
mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Trata-se agora do
novo mandamento, que resume os antigos 10 em apenas 2: amar a Deus e
ao próximo.
A outra lição está
no vers. 6: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus
Cristo. Nâo veio somente com água, mas com a água e o sangue.”
João refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o
batismo apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso
participar também da morte e ressurreição de Cristo, no sacrifício
eucarístico. Cristo morreu por nós e nos salvou, mas para sermos
merecedores desse dom salvífico, devemos participar com Ele da sua
cruz através da memória da redenção, que se renova a cada dia na
celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o
objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte
dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs,
colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo
testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a
morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova
aliança.
No trecho do evangelho
da liturgia de hoje (Jo 20, 19-31), onde está relatado o episódio
da incredulidade de Tomé, há outros pontos a destacar além dessa
conhecida história, que virou até comercial de sabão em pó, na
década de 70 (teste de s. Tomé). No vers 22, João diz que Jesus
“soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo...” Vemos
aqui o Pentecostes descrito por João, bem diferente das outras
narrações, que falam em línguas de fogo. Cristo conferiu o
Espírito aos apóstolos nesta sua primeira 'visita', ao anoitecer
daquele dia, o primeiro da semana. Se fizermos uma composição
cronológica, este dia seria o domingo de hoje, porque no alvorecer
do primeiro dia da semana após a sua morte, Jesus ressuscitou e
apareceu a Maria Madalena, mandando recado aos apóstolos que iria
encontrá-los na Galiléia. É interessante observar que, de início,
a Igreja ainda mantinha o costume judaico de guardar o sábado, só
depois de conscientizar-se de que os fatos mais importantes a partir
da ressurreição de Cristo ocorreram no primeiro dia da semana,
foi-se introduzindo a mudança para o domingo como dia do Senhor. Tal
mudança ainda não é bem aceita e entendida por diversas igrejas
cristãs não católicas (não falar 'protestantes', ok, em homenagem
ao grande Papa João XXIII).
Outro detalhe
interessante: Tomé não se encontrava com os doze e disse que só
acreditaria vendo. Pois bem, quando Cristo apareceu no domingo
seguinte, foi logo chamando Tomé e mostrando as chagas, ou seja,
Cristo já sabia da incredulidade de Tomé sem ninguém ter-lhe
informado disso. João utiliza este episódio dando bastante ênfase
à teimosia de Tomé com dois objetivos: primeiro, para mostrar a
divindade de Cristo através do dom da onisciência, pois soubera do
que Tomé havia dito mesmo sem ninguém ter falado isso para Ele;
segundo, para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer
Cristo, quando Este disse que: “bem aventurados os que creram sem
ter visto.” E como João sabia que este escrito ia ser distribuído
para muitas comunidades na Ásia Menor, ele complementa dizendo que
Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram
escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma
amostra de tudo o que Ele havia feito.
Quero destacar agora um
ponto de muita importância teológica e ao mesmo tempo suscitador de
grande polêmica. Está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados,
eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”.
Primeiro, devemos entender que o perdoar naquela época significava
livrar, porque quem tinha alguma dívida e não podia pagar se
tornava escravo do credor. Quando o credor perdoava a dívida,
significava que estava dando a liberdade ao devedor. Então, é neste
contexto que devemos entender o 'perdoar' de João, ou seja, de
libertar a pessoa daquele mal que é o pecado. Quem não era
perdoado, permanecia escravo. Portanto, este é o sentido do verbo
'retiverdes', a pessoa continuaria presa ao seu pecado, não se
libertaria. Ficar retido, pois, significa permanecer escravo do
próprio pecado. Assim fica o pecador que não manifesta
arrependimento.
Aqui entra outro ponto
muito delicado. A teologia considera este versículo como o
fundamento teológico do sacramento da penitência. Muitas vezes, se
ouve as pessoas dizendo 'sacramento da confissão', mas não é bem
assim, é o sacramento da penitência e da reconciliação,
decorrente do arrependimento. Conforme se verifica no texto joanino,
Cristo fala em perdoar os pecados (subentende-se dos arrependidos) e
reter, isto é, não perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não
disse que o pecador devia ir até os apóstolos e 'narrar seus
pecados' para poder ser perdoado, a ordem de Cristo se concentra no
perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica
coloca como obrigatória a 'confissão' dos pecados? Nas primeiras
comunidades eclesiais, não havia essa 'confissão'. O ato
penitencial que faz parte da liturgia eucarística é exatamente o
momento para o pecador examinar o seu íntimo e se arrepender. No
entanto, a Igreja Católica não considera só esse arrependimento
íntimo como suficiente para o perdão, exige o ritual de comparecer
diante do sacerdote para que o perdão seja efetivo.
Nos primeiros anos após
o Concílio Vaticano II, cujo cinquentenário está sendo comemorado
neste ano, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de
'confissão comunitária', que foi uma sugestão de alguns grupos de
conciliares para o retorno da prática original da penitência, como
era nos primeiros tempos da era cristã. Todavia, as forças
conservadoras da teologia, das quais o nosso Papa Bento XVI é um
notável representante, após algum tempo retiraram essa prática
como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões
especialíssimas e em caráter excepcional.
Conclui-se que esse
ritual da 'confissão' foi introduzido na teologia posteriormente
como fazendo parte do sacramento da penitência, tendo sido inventado
pelos monges medievais que faziam a 'confissão' em sinal de
humildade, como uma prática devocional optativa e mais fervorosa.
Mais ou menos como nós fazíamos no 'capítulo das culpas', que era
parte dos costumes diários no tempo do noviciado. Mas Cristo,
segundo as palavras de João, não colocou essa condição como
necessária para o perdão, apenas o arrependimento. Assim como
também Cristo não disse que os cristãos deveriam participar da
celebração eucarística todos os domingos. Ele disse apenas “todas
as vezes que fizerdes isso, fazei-o em minha memória”. A Igreja
Católica faz esses acréscimos fundamentando-se naquela outra
'delegação' de Cristo a Pedro: tudo o que ligares... e o que
desligares... Contudo, devemos ter em mente que a doutrina deve
também acompanhar a evolução dos tempos, pois aquele famoso ditado
latino 'oh tempora, oh mores' não deve ser entendido apenas em
relação aos costumes pretéritos, mas respeitando cada grupo de
'mores' nos seus devidos 'tempora'. Na comemoração dos 50 anos do
Concílio Vaticano II, foi convocado pelo Papa um Sínodo dos Bispos
para o mês de outubro deste ano. Como seria oportuno um novo fôlego
para o 'aggiornamento' tão acalentado por João XXIII, que foi se
tornando em 'apassadamento' nas décadas seguintes até hoje.
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