COMENTÁRIO
LITÚRGICO – FESTA DE CRISTO REI – REINO DA CARIDADE –
26.11.2017.
Caros Leitores,
Como
é praxe, no domingo que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a
festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história,
esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, num
contexto político internacional conturbado, período entre as
guerras mundiais e com profusão de governos autocráticos e
ditatoriais em vários países da Europa. A intenção do Papa era
chamar a atenção do mundo para o “reino” de Cristo, que supera
as divisões políticas e as disputas pelo poder material, pois o seu
mandamento supremo é a caridade para com os irmãos.
Particularmente, eu não vejo com simpatia essa festividade no
contexto sociopolítico contemporâneo, falar em reino não condiz
com o exemplo histórico de Cristo, que sempre recusou honrarias e
não gostava de ser chamado de Rei. Convém ainda lembrar que na cruz
de Cristo, Pilatos mandou colocar a inscrição “rei dos judeus”
como um escárnio, então a inspiração litúrgica para essa memória
litúrgica, por melhor que tenha sido a intenção do Papa, bem que
poderia ser repaginada. Trata-se de uma festa da igreja universal,
não apenas no Brasil, o que torna mais difícil ainda qualquer
alteração, porque, com certeza, muitas vozes de protesto se
levantariam. Mas o fato é que um símbolo de realeza e de
triunfalismo religioso nos dias de hoje não são aceitos de bom
grado pelas demais igrejas, o que trama contra o ecumenismo, uma das
principais metas buscadas pelo Papa Francisco. Na próxima semana, o
Papa estará viajando ao leste asiático (Myanmar e Bangladesh), em
missão de paz e confraternização cristã, ou seja, o universo
preferencial da Igreja Católica romana se direciona totalmente em
sentido diverso. É um ponto de vista pessoal, peço desculpas aos leitores que dele não participarem.
Pois
bem, dada essa completa modificação do contexto histórico e também
das novas estratégias adotadas pela Igreja Católica romana, as
leituras litúrgicas exigem de nós um maior esforço mental para
ajustá-las a esse estado de coisas. A primeira leitura, do livro do
profeta
Ezequiel, habitualmente enigmático, no trecho lido na liturgia de
hoje,
faz referência às muitas ovelhas que estão dispersas e que serão
resgatadas por Deus. Porém, comete um erro, na época justificável,
de fazer distinção entre ovelhas, carneiros
e bodes. Esse mesmo
erro referencial
será também cometido
por Mateus,
na
distinção entre ovelhas e cabritos, comentarei isso mais adiante.
Por sua vez, a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-28) contém
aquela famosa e polêmica comparação
entre Adão e Jesus Cristo, que traz dificuldades
teológicas para a harmonização entre a teologia e a ciência: “por
um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a
ressurreição dos mortos. ”
(15, 21) Conforme todos sabem, na perspectiva científica, não se
sustenta mais a convicção de que toda a humanidade
se originou apenas de um único casal, porém esse era o entendimento
na época de Paulo. E depois, Paulo faz uma afirmação que, ao meu
ver, está em total desacordo com a ideia de Cristo sobre o seu
“reino”: “Pois
é preciso que ele reine, até que todos os seus inimigos estejam
debaixo de seus pés.” (15, 25)
Ora, essa proposta de subjugar os inimigos é bem típica da época
do império romano e era um arquétipo na cabeça de Paulo. No
entanto, o “reino” que Cristo veio fundar é o reino do amor,
cujo passaporte para nele adentrar é a caridade e, assim sendo, não
está conforme a ele a imagem de submeter os inimigos debaixo dos
seus pés. Os possíveis inimigos serão conquistados para fazerem
parte também eles do reino da caridade. Por isso, precisamos filtrar
a doutrina de Paulo para a ajustarmos à cosmovisão contemporânea.
E Paulo novamente insiste naquela ideia mecanicista da vinda de
Cristo “dentro de alguns dias”. Ele, Paulo, e os cristãos da
época, pensavam que o retorno de Cristo era uma questão de poucos
dias, Paulo pensava que ainda iria encontrar Cristo antes de morrer.
Do mesmo modo, os demais cristãos entendiam que essa vinda gloriosa
de Cristo seria iminente. Só com o passar do tempo e com o
aperfeiçoamento da reflexão teológica esse pensamento evoluiu.
Um
semelhante contorcionismo mental será necessário para ajustarmos a
compreensão do texto do evangelho de Mateus, lido na liturgia de
hoje (Mt 25, 31-46). Novamente, precisamos ter em mente a cosmologia
da época, fundada no geocentrismo de Ptolomeu, que era o
conhecimento científico dominante. Mateus coloca na boca de Jesus
todo um discurso que é, provavelmente, muito mais resultado da
crença da comunidade do que de palavras do próprio Cristo.
Comparemos com o texto de João, quando Pilatos perguntou-lhe:
“então, és rei?” Jesus respondeu: o meu reino não é deste
mundo. (João 18, 34) Percebe-se que essa descrição feita por
Mateus da vinda de Jesus descendo em sua glória, acompanhado dos
anjos e sentado num trono glorioso é muito mais uma criação de uma
cabeça pensante humana do que algo que se perceba nos outros
discursos de Cristo acerca do reino de Deus. De fato, o evangelista
faz uma descrição bem conforme o modelo terreno dos reis de sua
época, que é também como ainda hoje as imagens de Cristo Rei são
representadas: com um vistoso manto rubro, uma coroa real, um cetro
de ouro, como eram os protótipos dos reis da antiguidade. Mas o
Cristo Rei não precisa se apresentar com esse aparato imperialista,
porque o Seu reino não é deste mundo, é o reino da caridade, do
amor ao próximo, não é da ostentação nem da dominação.
Uma
outra comparação totalmente desproporcional é a que o evangelista
faz, ao distinguir as ovelhas dos cabritos (25, 32-33), colocando as
ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Eu diria que é uma
comparação infeliz, porque está figurando os infiéis como
cabritos, da mesma forma como o profeta Ezequiel havia diferenciado
entre ovelhas, carneiros e bodes (Ez 11, 17). Meus amigos, essa
metáfora é totalmente fora de propósito. Deve ter sido dela que os
artistas medievais tiraram aquela figura horrível de representar o
demônio com pés de bode, ou seja, bodes, cabritos são imagens
demoníacas. Quero crer que Jesus Cristo não tenha feito esse tipo
de comparação, porque contém uma odiosa discriminação, tenho por
certo que da boca de Jesus não sairiam palavras com tais
significados depreciativos. Ademais, eu também tenho por certo que,
na presença de Cristo, a “fila da esquerda” estará totalmente
vazia, pois todos (ovelhas, carneiros, bodes e cabritos) estarão na
“fila da direita”, porque o reino de Cristo é o reino do amor e
o passaporte para sua entrada é a caridade. Percebe-se isso nas
ações que Ele valorizou praticadas por aqueles que ficaram na fila
da direita: estava com fome e me destes de comer, com sede e me
destes de beber, era estrangeiro e me recebestes na vossa casa... ou
seja, em uma só palavra, é a prática da caridade.
Vejamos
agora o que disse o Papa Francisco, no sermão de uma missa da festa
de Cristo Rei, algum tempo atrás, essa sim, uma mensagem totalmente
coerente com a mensagem de Cristo: "A Salvação não começa
confessando a realeza de Cristo, mas imitando as obras de
misericórdia por meio das quais Ele realizou o Reino do amor, da
proximidade e da ternura com os nossos irmãos. Disso dependerá a
nossa entrada ou não no Reino de Deus”. Perfeito esse ensinamento
do Papa, desmistificando aquela imagem triunfalista tradicional do
Cristo Rei no estilo medieval. Proclamar a realeza de Cristo é agir
como Ele agiu e como Ele ensinou que deveríamos agir: dando alimento
aos famintos e água aos sedentos, vestindo os nus e recepcionando os
estrangeiros. Se não fizermos isso, não adianta tentar se colocar
sob o manto do Cristo Rei, porque não haverá espaço.
Meus
amigos, concluo com uma ideia que já tive ocasião de repassar a
vocês em outra oportunidade: entendo a figura de Cristo como rei não
no sentido da realeza terrena, mas como o soberano da verdade, da
justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e, para isso, Ele
não precisa nem de um manto nem de um cetro nem de um trono, porque
o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é
a paz.
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