COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA
MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 05.11.2017
Caros Leitores,
A liturgia deste domingo traz a
comemoração da festa de Todos os Santos. Comumente, quando se fala
em “santos”, vem logo à mente os cristãos e cristãs que foram
canonizados. No entanto, tomando como referência a leitura do
Apocalipse, o apóstolo João teve a visão de “uma grande
multidão de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas,
que ninguém podia contar”, composta por aqueles que lavaram e
alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro. Essa multidão, que se
sucedeu à visão joanina daqueles assinalados, os membros das doze
tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos diversos
quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se
pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados.
Nesta semana, ocorre em Juazeiro do
Norte uma das suas mais concorridas romarias, a de finados. Era uma
devoção pessoal do Padre Cícero (as almas do purgatório), que ele
repassou para os fiéis de sua freguesia e se transformou num
grandioso fenômeno sócio-religioso. Ali se reúnem anualmente
cristãos provenientes dos diversos Estados do nordeste para rezar e
expressar sua fé. Meus amigos, parece-me óbvio que essa multidão
de fiéis que lota a cidade de Juazeiro do Norte nesses dias é uma
representação exemplar da imensa multidão descrita no texto de
João, tanta que ninguém podia contar. Alguém poderá contradizer:
ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso.
Seja qual for o nome que queiramos dar, o fato é que, para as
pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé do modo que
eles sabem melhor expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas
suas atitudes.
Na leitura litúrgica de hoje do
Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe
perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o
próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação,
lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só
podiam ser nordestinos, os que saíram da grande tribulação da seca
e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados
ciceronianos. É oportuno salientar que, nos primeiros dez séculos
do cristianismo, não havia canonização, quem proclamara os santos
era o povo. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para
si essa tarefa de proclamar oficialmente os “santos”. Ora, todos
sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero,
independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico.
Assim, se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação
popular dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra
primitiva, mesmo que a hierarquia oficial ainda não tenha feito
isso.
Meus amigos, essa é a autêntica
comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja
celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria
não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se
comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra
coisa é o fenômeno que se observa “in loco” e a energia que se
sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos
que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo
quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em
Juazeiro, na romaria de finados, este número é mais do que
quadruplicado. A previsão do apóstolo João deve ser, portanto,
calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido,
sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que
ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes
genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e
alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também
fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas
comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras
incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram
validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da
salvação.
A segunda leitura, que também é da
autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde
já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em
nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro,
“quando Jesus se manifestar,
seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo
3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser
chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de
modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente
que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde
já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo,
que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada
divina. Essa situação é descrita na teologia como a dialética do
“já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém,
ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer,
no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim
explica essa doutrina: “A
salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é
mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado,
futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra
infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação
ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo
retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há
também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação
constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa
conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”.
Achei
interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas
cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo
explica que o conceito de salvação é muito superior à simples
justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo
corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a
passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus
se manifestar”. Esse
conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da
nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como
encobertas por um véu, como
diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque
agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face;
agora
conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido”
[1Coríntios 13].
A
riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o
famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem
aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que
somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus),
que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes',
tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra
nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos
aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse
assunto se encaixa com um episódio bastante conhecido, narrado no
evangelho de Mateus (13, 31), quando Jesus escolheu hospedar-se na
casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um
publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela
hipocrisia dos fariseus. Querendo conhecer Jesus, mas sendo de baixa
estatura, ele subiu numa árvore, pensando que iria passar
despercebido. No entanto, Jesus conhecia a sua fé e mandou que ele
descesse da árvore, pois queria hospedar-se na sua casa. Os
fariseus, que sempre estavam por perto, ao verem aquilo, murmuravam:
com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai
escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da
lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso
fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no
sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi
ofertada a salvação e ele muito que aceitou e, por isso, tornou-se
também um “beatus”.
O
Papa Francisco, no sermão dirigido aos fiéis que lotavam a na Praça
de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa
“Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: “Não
existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de
qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de
Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum
daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa
de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E
quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e
tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e
com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do
retorno.”
O
convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador
público, assim
como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias
ao que o mundo aceita, enche
de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande
tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no
cumprimento fiel à nossa vocação cristã.
Permaneçamos
fiéis ao ensinamento de Cristo, para que possamos ser dignos de
participar das suas promessas de santidade.
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