domingo, 17 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - A CILADA DO PRECONCEITO - 17.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – A CILADA DO PRECONCEITO – 17.03.2013

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para leitura um trecho bastante conhecido pelo grande público, que é o caso da mulher flagrada em adultério e que deveria ser apedrejada, destacando a sabedoria de Jesus para fugir à cilada do preconceito e da hipocrisia. Nas outras leituras, destaca-se o tema da renovação, bem relacionado com a recente eleição do Seráfico Papa, que deverá renovar e revitalizar a Santa Madre Igreja.

Na primeira leitura, o projeta Isaias (43, 18) nos dirige um recado direto: “'Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis? ” Pois é, será que não somos capazes de reconhecer as coisas novas que Deus nos faz constantemente? Dois fatos recentes mobilizaram as atenções do mundo inteiro, tanto entre cristãos, católicos, quanto entre pessoas das mais diversas tendências religiosas: a renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco. Por certo, esta leitura do profeta Isaías já estava prevista para ser tema deste domingo desde muito tempo atrás, mas o Espírito de Deus conduziu os fatos de modo que ela se tornou ainda mais significativa neste tempo de mudanças. Impossível não reconhecer as coisas novas que já estão acontecendo e, de certo modo, tentar adivinhar as outras novidades que ainda deverão surgir na sequência desses fatos. Esse tema de Isaías foi utilizado por Paulo naquela polêmica levantada pelos cristãos judaizantes, que queriam restabelecer a obrigação da circuncisão como complemento do batismo, ao que Paulo argumentou: deixem de olhar o passado e mirem os fatos futuros, em Cristo, Deus fez novas todas as coisas.

Na segunda leitura, a Filipenses (3, 8-14), Paulo prossegue nessa mesma linha de raciocínio, acerca das novidades, quando ele diz que perdeu tudo por causa de Cristo. O que Paulo sacrificou para aderir plenamente à missão que Cristo lhe confiou não consistiu apenas em bens e benefícios, mas no abandono de si mesmo pela causa do evangelho. Ele não tinha mais família, nem casa, nem emprego, nem salário, sua vida era viajando de um lugar para outro, a pregar o evangelho, converter pessoas e constituir novas comunidades. Paulo foi o verdadeiro herói da difusão do cristianismo na Europa, desde a Grécia até Roma. A própria comunidade de Roma foi fundada por Paulo, aquela onde Pedro foi exercer sua missão episcopal posteriormente, transformando-a na Diocese base do cristianismo mundial. Pedro era antes titular da comunidade de Jerusalém, tendo-se transferido para Roma após o sucesso da pregação de Paulo e a grande adesão ali conseguida da população romana ao evangelho de Cristo. Paulo diz que considera lixo tudo aquilo que ele sacrificou, comparado à glória de estar unido a Cristo, em comunhão com seus sofrimentos, tornando-se semelhante a Ele na sua morte. No mesmo sentido da mensagem de Isaías, na primeira leitura, Paulo também afirma que “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus. ”(Fl 3, 13) Veremos como, de forma indireta, essa temática do esquecer o passado e olhar para a frente está também presente na leitura do evangelho.

No evangelho (Jo 8, 1-11), o apóstolo João mostra a sabedoria de Jesus ao resolver magistralmente uma autêntica “sinuca” em que lhe colocaram os fariseus e os mestres da lei, na tentativa de encontrarem algo para usar como acusação. Antes de abordar o conhecido episódio da mulher adúltera, detenhamo-nos em alguns detalhes da leitura, que são também significativos. Diz João no início deste capítulo 8 que Jesus havia ido ao monte das Oliveiras para orar e, voltando de lá, foi direto para o templo. É interessante observarmos essa informação, porque Jesus não foi àquele monte apenas na noite em que Judas chegou lá com os soldados, ao contrário, Judas já levou os soldados para lá porque sabia que Jesus tinha o costume de orar durante a noite no referido monte. Essa oração noturna de Jesus, por diversas vezes referenciada nos evangelhos, inspirou os monges medievais para os ofícios divinos durante as madrugadas, costume que chegou até nós, nos anos 60, o que causava grande desconforto naquelas noites frias de Guaramiranga, sem energia elétrica naquela época, quem passou por essa experiência lembra muito bem do seu significado. Aliás, na missa jubilar do Monsenhor Verçosa, no Seminário da Prainha, o Dom Frei Adalberto justificou na homilia que essa pedagogia rígida e até dolorosa foi necessária para moldar as têmperas daqueles que a vivenciaram, contribuindo para torná-los pessoas bem formadas e cidadãos dignos de dar exemplo à sociedade.

Outro ponto acessório a destacar no contexto do episódio da mulher adúltera é o da discriminação que pesava sobre a mulher, associada à hipocrisia masculina. A mulher, se fosse apanhada em adultério, deveria ser apedrejada até a morte, conforme a lei de Moisés, todavia, todos sabemos que a mulher não adulterava sozinha, para isso ela devia ter uma companhia masculina. Ora, se a mulher foi flagrada em adultério, o seu parceiro também o foi e, portanto, era possível que aqueles ali presentes o conhecessem, talvez até mesmo ele estivesse ali no meio do grupo com uma pedra na mão. Quanta desfaçatez e quanta mentira juntas. Fico pensando quantas mulheres aquele grupo já teria apedrejado e fico pensando também na sorte grande daquela mulher ao ter encontrado Jesus no seu caminho. O evangelista não registrou o seu nome e, ao que eu saiba, a tradição também não traz essa informação, mas certamente, ela era uma daquelas mulheres piedosas, que acompanharam o trajeto de Cristo a caminho do calvário e choraram por Ele.

A estratégia dos fariseus e mestres da lei era poderosa e eles pensavam que haviam colocado Jesus contra a parede, deixando-o numa situação sem saída, qualquer que fosse a sua resposta. “Moisés, na lei, mandou apedrejar essas mulheres, que dizes tu?” Ora, se Jesus dissesse “sim”, sua pregação sobre o amor e o perdão estaria desmoralizada e a sua palavra se tornaria sem qualquer valor, levando a sua legião de seguidores ao descrédito e inviabilizando o seu projeto do novo reino de amor. Se respondesse “não”, pior ainda, estaria infringindo a lei de Moisés e na presença de dezenas de testemunhas, isso seria suficiente para ele ser acusado de infração legal e ser condenado no pretório. Uma cilada tão bem arquitetada só podia ser resolvida de modo favorável por alguém que possuía uma mente especial, mesmo prescindindo da natureza divina de Cristo. Ele não se abalou com a indisfarçável má-fé dos fariseus e serenamente passou a escrever no chão com o dedo. O evangelho silencia a respeito das palavras que Ele estaria escrevendo. Embora a tradição afirme que seriam os pecados dos que estavam ali presentes, na minha opinião, Jesus não escrevia nada propriamente, ele fez aquilo como uma contra estratégia para provocar os fariseus. Obviamente, eles não foram lá perto tentar ler o que ele escrevia, mas ficaram intrigados com aquilo. O que Ele estaria escrevendo? Intimamente, eles tiveram medo de terem a sua intimidade exposta, pois embora não acreditando na divindade de Jesus, eles sabiam da sua fama de realizar milagres e ter um poder sobrenatural. Então, apenas insistiram na mesma pergunta: o que dizes sobre isso?

Meus amigos, Jesus percebeu nessa insistência deles um quê de indecisão e temor, a arrogância deles havia se transformado em fraqueza e aquela pergunta repetida era sinal claro da confusão que se passava nas suas mentes. A resposta de Jesus não poderia ter sido mais magistral: quem dentre vós nunca cometeu nenhuma infração, pode começar a apedrejar, porque só tem moral para reclamar dos pecados dos outros aquele que não os tem. Então, diz o evangelista, Jesus se inclinou novamente e voltou a rabiscar no chão, enquanto eles foram se retirando um a um, a começar pelos mais velhos. A pobre mulher, tremendo e temendo pelo que poderia ocorrer, foi a única que não correu, bem que poderia ter fugido quando os seus acusadores se afastaram. Mas não, ela esperou pelo perdão de Cristo, ali naquele momento, ela passou por uma profunda conversão, e foi o que Jesus percebeu quando lhe disse: vai e não tornes a pecar. Isto é, esquece o passado, olha pra frente, daqui em diante farei novas todas as coisas na tua vida.

Meus amigos, que a nossa preparação para a Páscoa seja animada pelo tema das leituras de hoje: façamos novas todas as coisas, esqueçamos o passado e não olhemos para trás.


domingo, 10 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - DOMINGO DA RECONCILIAÇÃO - 10.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – DOMINGO DA RECONCILIAÇÃO – 10.03.2013

Caros Confrades,

Nas leituras deste 4º domingo da quaresma, destaco o tema da reconciliação presente nos vários textos lidos, dentre eles aquele conhecido episódio do “filho pródigo”, que a liturgia agora prefere chamar de “o pai misericordioso”.

Na primeira leitura, do livro de Josué (5, 9-12), temos a narração da primeira Páscoa que os israelitas comemoraram após adentrar na terra prometida. Javeh diz a Josué: 'Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito', isto é, agora vocês estão livres novamente, habitando a terra dos vossos pais, não precisam mais se preocupar com a escravidão dos egípcios. A reconciliação de Javeh com o seu povo se deu, finalmente, pelas mãos de Josué, sucessor de Moisés no comando dos israelitas pelo deserto. A primeira Páscoa celebrada em Canaã significa o cumprimento da promessa de Javeh e a renovação da aliança. O povo hebreu iria ainda passar por inúmeras agruras, fruto de sua infidelidade. Mas, naquele momento, a situação era de paz e prosperidade.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 5, 17-21), o apóstolo lembra que, por Cristo, Deus reconciliou o mundo com ele próprio e nos deu o ministério da reconciliação. Esta carta foi escrita num momento difícil para a comunidade de Corinto, envolta com a polêmica dos judaizantes e atormentada por adversários de Paulo, que teimavam em manter os antigos costumes judeus, mesmo depois de convertidos. Por isso, Paulo adverte: “Se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo. ” (2Cor 5,7) Os velhos costumes dos judeus não deviam mais ser invocados dentro da nova comunidade cristã, porque em Cristo tudo foi reconfigurado. E de uma forma bastante contundente, ele conclama toda a comunidade a deixar-se reconciliar com Deus. “Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20) para que não recebais em vão a Sua graça. A exortação de Paulo acerca da reconciliação se fazia necessária porque a comunidade de Corinto havia excluído os dissidentes e não aceitava mais a participação destes nas atividades eclesiais. Os críticos de Paulo, atendendo aos apelos dele na carta anterior, queriam retornar ao convívio fraterno, mas havia resistências. Por isso, Paulo até evitou de fazer uma viagem a Corinto, a fim de não exaltar ainda mais os ânimos, preferindo mandar a carta. Daí ele enfatizar que Deus nos deu, através de Cristo, o ministério da reconciliação.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32), temos a narração de uma das parábolas de Cristo mais conhecidas, ao lado da parábola do Bom Samaritano, que é a história do filho pródigo. Durante muito tempo, a liturgia identificava assim esse texto, reportando-se à figura do filho que esbanjou frivolamente todos os seus bens de herança e depois foi novamente acolhido pelo pai bondoso. Reformulando o tema, a liturgia agora mudou o foco do episódio para a figura do pai misericordioso, que acolhe o filho irresponsável e busca reconciliar o irmão mais velho, que não aceitava a situação.

Essa historinha contada por Jesus foi mais um cascudo na cabeça dura dos fariseus, que se consideravam os únicos merecedores da amizade com Javeh, porque eram os herdeiros legítimos da tradição veterotestamentária. Como sempre, os fariseus não entenderam a mensagem, porque estavam seguros demais dos seus méritos e, na sua estreiteza de pensamento, não podiam admitir que povos estranhos à aliança antiga passassem a ter assento junto com eles na mesa da refeição divina.

O contexto da narração se dá num momento em que Jesus conversava com publicanos e pecadores. Para começar, é importante lembrar que os fariseus se consideravam sem pecado. Eles cumpriam rigorosamente a lei, jejuavam, davam esmolas, iam à sinagoga nos sábados, isto é, faziam tudo como mandava a lei de Moisés. Embora essas práticas fossem, muitas vezes, apenas da boca pra fora, ou seja, eram mais para os outros verem do que atitudes feitas com convicção e fé, eles se consideravam pessoas exemplares e quem não fazia isso era considerado pecador. Além desses pecadores, porque não cumpriam a lei à risca, havia aqueles e aquelas que eram tido(a)s como pecadores públicos, como era o caso dos publicanos e das prostitutas. Dentro da mentalidade judaica, esses grupos viviam permanentemente no pecado e não tinham jeito, ou seja, não havia como deixarem essa vida marginal e passarem à condição de pessoas justas. Por outro lado, o simples contato com essas pessoas, ainda que fosse para um mero cumprimento, era suficiente para deixar impuro quem se aproximasse, havendo a necessidade de fazer depois um ritual de purificação, como alguém que toca uma pessoa com doença contagiosa, que precisa fazer assepsia.

O fato de Jesus ter comunicação com essas pessoas pecadoras públicas era fortemente censurado pelos fariseus e um dos motivos para que estes duvidassem da divindade de Jesus, porque um enviado de Javeh saberia da proibição legal de ter contato com essa gente 'imunda'. Daí que, conforme diz Lucas (15, 1), os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-los e Jesus os recebia, fato que gerava revolta nos fariseus. Por isso, Jesus os comparou ao filho mais velho, que ficou se roendo de ciúmes porque o irmão irresponsável retornou depois de uma temporada de aventuras e o pai, além de não repreendê-lo, ainda fez uma grande festa. Neste mesmo trecho (15, 7), que foi omitido na leitura litúrgica, Jesus justificou isso, quando disse que haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento. Por não compreenderem e nem aceitarem essa verdade, os fariseus terminaram perdendo a oportunidade de participar da festa pascal promovida pelo Pai.

Vê-se, meus amigos, nessa narração uma atitude acima de tudo preconceituosa por parte dos fariseus. Naquela época, tanto quanto hoje, existia a praxe de rotular as pessoas por critérios nem sempre justificáveis, mas que tinham aprovação social inconsciente. Naquela época, eram os publicanos e pecadores. Nos dias de hoje, são as pessoas humildes, as de pouca instrução, alguns grupos minoritários que sofrem segregação por causa da cor ou pela opção sexual, sem falar também na discriminação que, muitas vezes, sofrem as pessoas de outras crenças religiosas, que são logo tachadas de herejes ou infiéis. Esses preconceitos que nos são repassados pelo processo de aculturação se alojam no nosso inconsciente e, de repente, nos surpreendemos fazendo atitudes que nós mesmos reprovamos quando vemos outros fazerem. O comportamento de Cristo, acolhendo a todos indistintamente, aliás, acolhendo com mais atenção aqueles que eram os mais excluídos na sociedade farisaica, deve nos servir de exemplo para a nossa vida cotidiana, a fim de nos vigiarmos para não cairmos no mesmo falso moralismo e na mesma falsa fé dos fariseus.

Vemos também, na pedagogia paulina, uma atitude de respeito que serve de modelo para nós, educadores de nossos filhos ou de alunos, que é a prática da humildade. Paulo tinha conhecimento da rebeldia de seus críticos que viviam na comunidade de Corinto, todavia, não se prevaleceu da sua autoridade de apóstolo e enviado por Cristo para impor o seu pensamento. Ao contrário, ele muito humildemente “suplicou” aos coríntios para que se deixassem reconciliar com Deus, não ameaçou nem impôs condições para isso. Ao apelar para o ministério da reconciliação, ele ensinou que, mesmo quando o irmão está numa posição errônea, não se deve expor os seus defeitos nem apelar para ameaças e castigos, como estratégia de convencimento porque, diz ele, “em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas”, mas ao contrário, “aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.” (2Cor 5, 21).

Que o Divino Mestre nos ensine sempre a humildade no trato com os irmãos, exercitando cada vez mais e melhor o ministério da reconciliação como modelo da nossa vida de comunidade.


domingo, 3 de março de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - CUIDADO PARA NÃO CAIR - 03.03.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – CUIDADO PARA NÃO CAIR – 03.03.2012

Caros Confrades,

Tomarei como referência para este comentário as leituras deste domingo (3º da quaresma) da carta de Paulo a Coríntios, com a advertência final: tome cuidado para não cair, e ainda do evangelho de Lucas (13, 1-9), que contem a parábola da figueira que não dava frutos.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (3, 1-8), vemos a vocação de Moisés, quando Javeh o escolheu para falar diante do Faraó, ele que não sabia falar nem tinha o dom da oratória. Desta primeira leitura, destacarei apenas a autodefinição que Javeh faz de si mesmo: “eu sou”, sem quaisquer complementos. De fato, Deus não tem complementos, ele é todo e integralmente um, tornando-se desnecessária qualquer outra explicação. De acordo com o Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão deste domingo, o verbo hebraico que é traduzido em português por “eu sou” tem um significado muito mais amplo do que a expressão em português, pois inclui também o sentido de 'fazer ser', ou seja, além de ser absolutamente, Ele também faz as coisas serem. Seria uma autodefinição de Javeh como o criador do universo. Tem assim um significado ativo e dinâmico de ser, não o aspecto estático que a expressão em português sugere.

Passando ao tema selecionado, vemos na carta de Paulo a Coríntios (1Cor 10, 1-6) a menção aos patriarcas e aos hebreus que atravessaram o deserto, favorecidos por Javeh comendo o maná e bebendo a água do rochedo, porém desagradaram a Deus e morreram antes de chegar na terra prometida. O próprio Moisés também teria recebido o mesmo castigo por haver duvidado do poder de Javeh. Paulo reproduz uma figura que era muito conhecido dos judeus daquele tempo, que era a imagem do Deus furioso e vingativo, que amava o povo mas não os poupava, quando cometiam infidelidades. Então, diz Paulo, estes fatos devem ser vir de advertência para nós, para que não repitamos as mesmas atitudes reprováveis cometidas pelos nossos antepassados, que foram alvo do anjo exterminador. Vejam bem “anjo exterminador”, uma figura cultural do povo hebreu que parecia indicar algo que, nos dias de hoje, chamamos de “castigos de Deus”.

Por que Paulo estaria usando essas imagens do tempo antigo numa época em que Jesus Cristo já havia dito que tinha vindo abolir aqueles costumes com o seu novo mandamento? Na verdade, Paulo faz referência ao rochedo donde brotava a água no deserto, vendo neste rochedo uma prefigura de Cristo, a fonte da água viva. Verifica-se, na verdade, um esforço de Paulo para integrar a antiga aliança com a nova aliança, através de uma catequese que aproveitasse os conhecimentos da tradição hebraica, pois o cristão de Corinto eram, em grande parte, judeus convertidos. Ficava, portanto, mais fácil para Paulo lançar mão dos conceitos da tradição conhecida por eles para fazer a relação com a mensagem de Cristo. Havia, entre estes judeus, um conceito que nós ainda encontramos na mentalidade religiosa do nosso povo de que, quando acontece algo de ruim com alguém, aquilo foi um castigo de Deus. Isso era entendido, pelo raciocínio inverso, que quando alguém havia sido beneficiado com algo de bom, isso seria um prêmio de Deus, uma espécie de reconhecimento de Deus pelos méritos desta pessoa. Daí a advertência de Paulo: quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair. (1Cor 10, 12).

O “estar de pé”, neste contexto, significa a autoconfiança na salvação, porque se a pessoa não foi castigada, é porque Deus se agrada dela; o “cair” significa sofrer algum revés, passar por alguma dificuldade, enfrentar uma adversidade. Então, diz Paulo, quem pensa que está de bem com Deus porque não foi castigado e, ao contrário, pensa que o irmão que sofre é porque não está de bem com Deus, deve mudar essa mentalidade. Se não houver “conversão”, isto é, se não houver mudança de mentalidade, pode acontecer o mesmo que aconteceu no deserto: virá o “anjo exterminador” já não para tirar a vida do corpo, mas representado na presunção de salvação. Com isso, ele quer significar que a conversão não é uma atitude que acontece uma vez na vida e pronto, mas ela deve ser renovada a cada dia, na nossa consciência e nas nossas atitudes. O batismo não é garantia de salvação por si só, se não for complementado com um trabalho contínuo de renovação interior, pela leitura e meditação da escritura, pela inserção dos ensinamentos de Cristo no nosso dia a dia. Por isso ele adverte: quem pensa que está em pé (de bem com Deus, com a salvação assegurada), tenha cuidado para não cair (não deixar a presunção e o orgulho embotarem a sua visão de fé).

Este é também o ensinamento que retiramos da passagem do evangelho de Lucas (13, 1-9), quando os judeus falaram a Jesus sobre alguns do povo que haviam sido mortos por ordem de Pilatos, que confundiu o ritual de sacrifícios de animais deles com alguma ação de rebeldia, de modo que eles foram assassinados sendo inocentes. Por isso, Jesus pergunta aos próprios portadores da notícia: por acaso, vocês pensam que estes que morreram eram mais pecadores do que os outros? Dentro daquela mentalidade judaica, essa desgraça acontecida com cidadãos inocentes era entendida como um 'castigo divino' por alguma coisa imprópria feita por eles. Então, Jesus aproveita a ocasião para ensinar que não é nada disso, que não se deve associar o sofrimento de alguém com uma espécie de 'vingança' de Javeh, porque isso pode acontecer a qualquer um.

Para ilustrar este mesmo ensinamento, Jesus cita também um episódio ocorrido por aqueles dias, em que uma torre de pedra, na localidade de Solié, havia desmoronado, matando 18 hebreus. Segundo os estudiosos da arqueologia, essa torre teria existido nos arredores de Jerusalém e era próxima de uma piscina natural famosa na região, a piscina de Siloé, que estava constantemente cheia por ter sido construída num local que nós aqui chamamos de “olho d'água”. Era uma espécie de balneário público e havia sempre gente por lá. Provavelmente, a própria consistência insegura do solo próximo da nascente de água teria afetado os alicerces e levado a torre de pedra a cair. Então, Jesus usa este conhecido episódio para reforçar a sua catequese: vocês pensam que aqueles que morreram soterrados eram mais pecadores do que os outros habitantes de Jerusalém? E repete a mesma conclusão: não se trata de vingança de Javeh, mas trata-se de algo que pode acontecer com qualquer um. É um fato da vida, que não está relacionado com o poder divino, mas com a negligência ou ignorância dos seres humanos. Trazendo para os dias de hoje, Jesus diria que os tsunamis, o desequilíbrio ecológico do planeta, as epidemias disseminadas por toda a parte, a violência generalizada não são castigos divinos, mas são resultado da ação egoísta e desastrosa comandada pelo próprio homem.

Então, Lucas conclui com a parábola da videira que não dava frutos. Era uma árvore bonita, frondosa, de boa aparência, mas infrutífera. O “dono” ficou irritado: já faz três anos que eu venho aqui e não vejo frutos nesta árvore, pode cortá-la. O “capataz” intercedeu pela árvore: vamos dar mais uma chance a ela, vamos colocar adubo, podar, aguar, vamos ver se os frutos chegarão na próxima safra. Ora, meus amigos, quem esse “dono”? É Javeh, claro. E quem é o “capataz” que intercedeu pela árvore? É o próprio Cristo. Ele veio cumprir este plano de Javeh (adubar, podar, aguar) a árvore do povo, pra ver se ainda tinha jeito. O povo havia se negado a ouvir os profetas e se recusado a cumprir a promessa, ou seja, praticava só aquela religião de fachada, que desagradava Javeh por não ter raízes firmadas no coração. Quantos profetas, desde Moisés, Javeh havia mandado pra ensinar o povo, mas este sempre voltaram aos seus ídolos. Então, com a catequese de Jesus, Javeh estava dando mais uma chance à árvore do povo de Deus: vai lá, conversa com esse povo, mostra a eles quem Tu és, vejamos se eles se convertem e produzem frutos... não deu certo. O povo não entendeu nada e continuou a adorar a Javeh apenas com atitudes exteriores, sem raízes no coração, e essa religião enganosa pode até enganar os outros, mas a Javeh não engana.

Meus amigos, era como se Jesus estivesse dizendo: eu sou a última chance de vocês, acreditem em mim e façam o que eu estou dizendo. Os ouvidos dos judeus estavam totalmente surdos e o adubo e a aguação não surtiram nenhum efeito. Então, ouçamos São Paulo e não deixemos que o mesmo venha a acontecer conosco. Cuidemos para não cair na tentação de achar que, por cumprir suas obrigações religiosas, mas sem ter o coração contrito, alguém está sendo agradável a Deus.


domingo, 24 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - VISÕES FUTUROLÓGICAS - 24.02.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – VISÕES FUTUROLÓGICAS – 24.02.2013

Caros Confrades,

Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos escolhidos. Fala também sobre a promessa de Javé a Abrão e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados, tal como Cristo.

Na primeira leitura, lemos o início das negociações entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da aliança, que deu origem ao povo escolhido. Abrão pede um sinal e Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua homenagem, ocasião em que Javeh trouxe o fogo para a consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência mais numerosa do que as estrelas do céu. Esta passagem do Gênesis (Gn 15, 17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume. E reflete também a cosmologia da época, no que se refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se estivessem penduradas na abóbada celeste. De todo modo, a promessa de Javeh a Abrão diz respeito à visão futurológica do povo hebreu, que passa pela intervenção miraculosa d'Ele. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então. Como poderia ele ter uma descendência tão numerosa sozinhos, sem a ajuda de Javeh?

Por falar nos conteúdos legendários contidos sobretudo no pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia, convém observar que as primeiras partes escritas da Bíblia apareceram por volta do ano 1.000 a.C., época do rei Salomão, ou seja, século X. Por sua vez, a época de Abrão está situada historicamente em torno do ano 1.800 a.C, ou seja, entre os séculos XIX e XVIII a.C., o que significa que a tradição oral que conservou a história de Abrão passou cerca de 800 anos sendo transmitida de pai pra filho. Convenhamos, é muito tempo para imaginar que tenha se mantido fiel às suas origens. Nessa linha de raciocínio, devemos entender esses conteúdos legendários pela sua mensagem finalista, pois foram escritos no futuro referindo-se a fatos passados.

Na segunda leitura, trecho da carta de Paulo à comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs fundadas por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo, não façam isso, sede meus imitadores, vivam de acordo com o exemplo que eu vos dei. Não dêem maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho, teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os gregos eram os grandes comerciantes do Mediterrâneo, capitaneados pelo império romano. Aceitaram a pregação de Paulo e aderiram ao cristianismo, mas com a viagem deste, voltaram aos seus afazeres materiais, diversões, comedeiras e bebedeiras, daí a chamada de atenção de Paulo: o fim destes é a perdição, o deus deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta advertência de Paulo se aplica aos nossos dias, para que não deixemos que os nossos compromissos de cristãos sejam suplantados pelas urgentes e inadiáveis necessidades que a cada dia nos afetam. Não podemos deixar que o nosso deus seja a gula nem que o nosso pensamento se concentre apenas nos bens materiais. Vale lembrar nesse contexto, outra advertência de Paulo, desta ver aos Coríntios (1Cor 10, 31): quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus.

Na leitura do evangelho de Lucas (9, 29-36), temos a conhecida narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo, o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que Jesus já tinha explicado para eles diversas vezes e ele não conseguiam entender); terceiro, os discípulos, muito provavelmente, ficaram como que hipnotizados com aquela visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia. Diz Lucas (9, 36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e nem conversavam entre eles sobre o assunto. Penso que cada um deve ter pensado que tivera um sonho (ou um pesadelo) e teve receio de comentar com o outro.

Foi quando uma nuvem os encobriu e eles ouviram a revelação do Pai: este é o meu filho prometido, escutai-O. A palavra grega escrita por Lucas é “eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São Jerônimo traduziu por 'dilectus' e anteriormente a tradução portuguesa seguia a terminologia latina (meu filho amado), mas no texto oficial da CNBB, foi traduzida por “o escolhido”. Com efeito, o verbo “legow” tem o significado como escolher, mas tem também o sentido de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação, parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí que eu preferi traduzir por “filho prometido, anunciado”, porque estamos tratando da visão futurológica expressa na liturgia deste domingo. Coerente com o tema da primeira leitura, onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora prometido desde o início.

Os dois personagens com os quais Jesus dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional da exegese, representam a Lei e os Profetas, os primórdios da história do povo hebreu, quando Javeh entregou a Torah ao povo através de Moisés, e depois a continuidade dessa presença viva de Javeh falando ao seu povo, através dos profetas. Em outra reflexão, eu abordei a questão do por que não foi Isaías, que Jesus cita muito mais vezes, o personagem do diálogo e sim Elias. Talvez porque este foi o profeta que ressuscitou o filho único da viúva de Sarepta, havendo assim uma alusão indireta à ressurreição de Jesus após sua paixão. Agora, ponho outra questão: por que Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três – Pedro, João e Tiago? Fica difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o fato de João e Tiago terem um certo parentesco com Jesus, lembrando que, há pouco tempo, foi encontrado um túmulo com a inscrição “Tiago irmão do Senhor”, e sabe-se que João era irmão de Tiago, ambos filhos de Zebedeu e seguidores de Cristo desde as primeiras horas. Talvez por serem aqueles em quem Ele tinha mais confiança ou demonstravam melhor entendimento. Talvez porque Ele quisesse manter o fato em segredo e isso seria mais difícil com um grupo numeroso.

Qualquer que tenha sido o motivo, penso que interessa apenas que eles foram os escolhidos por Jesus, da mesma forma que Jesus havia sido escolhido e prometido pelo Pai. Felizmente para nós, diferentemente dos outros nove apóstolos que não participaram daquela experiência, somos todos escolhidos por Ele para conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu na terra. Aos apóstolos, Jesus não se revelou a todos, mas a nós, Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do foco da missão e perdendo a visão do seu futuro como cristãos. A figura do Cristo transfigurado é o apelo d'Ele para nós a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, mantendo sempre a esperança e combatendo o bom combate, nunca perdendo o foco em nossa atuação, mas permanecendo firmes na promessa do nosso futuro.


domingo, 17 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - AS TENTAÇÕES DE CADA UM - 17.02.2013


COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – AS TENTAÇÕES DE CADA UM – 17.02.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como de costume, o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade: no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.

Apenas para recordar um tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos nas leituras de Deuteronônio e no evangelho de Lucas a simbologia do numero 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo a ocorrência de um fato muito importante. Não significa literalmente a passagem de 40 dias ou meses ou anos, mas o tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.

Na primeira leitura (Deuteronômio, 26, 4-10), o texto traz as instruções de Moisés ao seus auxiliares, porque ele já sabia que não chegaria até a terra prometida, apenas a veria de longe. Possivelmente, a instrução seria para Josué, que foi o sucessor de Moisés no comando do povo, na reta final. Quando eles chegassem à terra prometida, deviam levar ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos da terra e ali professar o agradecimento de todo o povo pela condução que tiveram durante a peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de enfrentar um sem número de desafios físicos e espirituais, tendo o Senhor os conduzido sempre e constantemente perdoado as infidelidades deles. O livro tem esse título (deuteros+nomos=segunda lei) porque se trata de um compêndio encontrado casualmente numa escavação no templo e que repete em parte normas já contidas na Torah, os cinco primeiros livros. Este livro é um verdadeiro 'código de legislação' hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as prescrições e os rituais descritos. É uma verdadeira compilação do direito hebreu, que não fazia distinção entre normas religiosas e normas civis, porque a sua organização era um estado teocrático.

Nos dias de hoje, temos ainda a sobrevivência dos estados teocráticos no Irã, no Afeganistão, além de outros países orientais islâmicos, onde as pessoas podem ser presas por blasfêmia (transgressão religiosa em geral). Um repórter perguntou a um nativo afegão, quando em viagem por lá no período conhecido como Ramadã, tempo em que os islâmicos fazem jejum obrigatório, o que aconteceria se ele (repórter) fosse visto 'quebrando o jejum'. O nativo respondeu: as pessoas reconhecem que o senhor é um estrangeiro e não farão nada, mas se for um de nós, eles chamarão a polícia. Curioso nisso, que eu não sabia, é que o jejum é apenas durante o dia, porque após o por do sol, as pessoas podem ser alimentar à vontade. Existem os locais já conhecidos pela população onde são servidas refeições gratuitas após o por do sol, porque evidentemente ninguém aguenta passar o mês sem comer.

Temos na segunda leitura (Paulo a Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a universalidade da fé em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu ou grego – e nós podemos acrescentar: europeu ou americano, africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com o coração e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer não ficará confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava apenas no mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós. Foi naquela polêmica que surgiu em Roma dos cristãos judaizantes, que achavam que só podia ser cristão quem aderisse à lei de Moisés e fizesse a circuncisão. Então, Paulo ensinou que o batismo cristão supre e substitui todos os rituais da antiga lei. Roma, a grande metrópole na qual o cristianismo se universalizou, era uma grande babel daquele tempo, abrigando pessoas das mais diversas origens e nacionalidades, consequentemente, dos mais diversos idiomas e costumes. Foi o primeiro grande desafio enfrentado na pregação do evangelho para os pagãos ou gentios, resolvido graças à intervenção oportuna e sábia de Paulo.

A leitura do evangelho de hoje, de Lucas 4, 1-13, repete a narração contida nos outros dois sinóticos: após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi tentado por Satanás. Conforme já mencionei em comentário similar no ano passado, retiremos da nossa mente aquele personagem com chifres na cabeça e pés de bode, exalando enxofre, figura produzida pelos pintores medievais. As tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia significar em situações de extrema pressão psicológica. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele seriam facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. Foi uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um milagre na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus fazer um 'milagrezinho' na presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Ele nada disse. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, porque talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud).

Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, pois somente assim estaremos criando condições de superá-las. Foi o que Jesus foi fazer no deserto: refletir sobre ele mesmo, sobre sua condição divina e humana, sobre a sua missão espinhosa e dolorosa da qual ele não podia se esquivar. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e os subterfúgios inconscientes dele na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Quando fazemos algo do qual depois ficamos arrependidos, não foi um satanás exterior que nos tentou, foi ação daquele satanás que reside num canto escuro do nosso ser mais íntimo e nós tentamos fugir dele, através de processos de racionalizações das nossas próprias decisões equivocadas. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.

Que o Mestre nos ensine sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas imperfeições e frustrações.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - A VOCAÇÃO DE CADA UM - 10.02.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO DE CADA UM – 10.02.2013

Caros Confrades,

Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três situações diferentes, pelas quais a vocação divina foi dirigida a personagens importantes na história da salvação. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a vocação de cada um, pois Deus se serve de acontecimentos diversos para nos chamar a realizar uma missão que Ele nos destinou.

Na primeira leitura, temos o relato da vocação do profeta Isaías (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele começou a profetizar. Diz Isaías que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins e ficou com medo, porque era apenas um pecador. Então, um dos serafins tirou uma brasa do altar e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.

Primeiro, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o martírio a que ele teria de se submeter, tanto assim que Jesus o cita por diversas vezes, no período de sua pregação. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças de invasões por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de libertador político, conforme haviam predito os profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não compreenderam nada, porque a expectativa histórica que se formara, ao longo de tantos séculos, era de um Messias lutador e aguerrido.

Esse trecho de Isaías contém ainda uma invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3) que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. Em primeiro lugar, gostaria de explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de santo é santíssimo, mas no hebraico, por falta dessa versatilidade da língua, o superlativo da palavra se expressa com a sua repetição por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos. Quem se recorda da invocação latina, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. É o Senhor que vence as guerras e derrota os inimigos, como faziam os reis daquele tempo.

Outro detalhe interessante é que o serafim tomou uma brasa do altar com uma tenaz (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do próprio fogo aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Deus, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ser serrado no meio do corpo, por ordem do rei Manassés.

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago não estão documentadas, no entanto, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade. Isso significa que Jesus fez muito mais aparições do que os evangelhos relatam.

Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Do modo como está escrito, fica transparecendo que Paulo achava os demais apóstolos preguiçosos ou, no mínimo, não tão dedicados quanto eles. Talvez ele tenha exagerado um pouco na valorização do seu trabalho. Mas o fato é que isso é verdade mesmo. A colaboração de Paulo, na divulgação do evangelho no território grego e depois na Europa toda, foi inigualável, não apenas pela extensão da área visitada, mas principalmente pela qualidade de sua pregação e da sua pedagogia. Paulo era o único intelectual do grupo. Aliás, na minha convicção, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época.

O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro, seu irmão André, Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galiléia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Ele estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fiasco. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi o sinal para que Pedro se rendesse diante do poder de Jesus e Este o convidasse para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais. O resto da história é por demais conhecido.

Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. A Bíblia utiliza muito o conceito tradicional de “reino” de Deus e toda a literatura teológica também o repete com abundância. A ideia do 'reino' era algo usual e frequente nos tempos mais antigos, quando a forma política da monarquia era a mais adotada. Por isso, penso eu que, nos tempos atuais, se torna uma palavra arcaica e com pálido sentido. Falar-se em “reino” de Deus (venha a nós o Vosso reino) parece algo muito distante ou com um simbolismo que não se encaixa na nossa realidade cotidiana. Com isso em mente, parece-me preferível utilizar o conceito de “missão”, pois os outrora denominados “trabalhadores do reino” são, de fato, os missionários de hoje. Missão é um conceito mais próximo da nossa realidade, identifica-se mais com a nossa vida social, na qual somos chamados a agir dando testemunho da nossa fé perante a comunidade. O nosso compromisso de cristãos é um compromisso missionário.

Vemos também, nesses episódios das leituras de hoje, que o chamado missionário de cada pessoa é diferente, Deus se serve de fatos relacionados com a rotina de cada um e, por intermédio desta, faz o seu chamamento. Todos nós, que um dia estivemos no Seminário, podemos refletir sobre o que nos conduziu até lá (e também o que nos conduziu para fora de lá) e tentar descobrir os termos pelos quais Deus se dirigiu a nós e nos incumbiu de uma missão. Nós não precisamos sair da nossa rotina para recebermos o chamado de Deus, nem para realizar na nossa vida o que Ele deseja e espera de nós. As leituras deste domingo nos dão o ensejo de repensar e redescobrir a nossa missão, bem como de avaliar como está sendo a nossa fidelidade a ela. Se estamos apenas na beira da praia ou se somos capazes de navegar em águas mais profundas, como Jesus fez com Pedro e André.



domingo, 3 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM - 03.02.2013 - A CARIDADE E A PROFECIA


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 03.02.2013 – A CARIDADE E A PROFECIA

Caros amigos,

Após três semanas de intervalo, em decorrência de viagem e dificuldade de acesso à internet, volto com as nossas reflexões semanais, animado por mensagens recebidas dos generosos confrades, instando-me a continuar a fazê-las. Fico deveras agradecido.

Neste quarto domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois temas interessantes: o hino da caridade, uma inspirada página do apóstolo Paulo a Coríntios (1Cor 12,31) e a vocação para a profecia, nas pessoas de Jeremias e do profeta que falava em nome próprio, Jesus Cristo.

Nesse antológico texto, que já foi transformado em música popular, Paulo foi de uma felicidade muito grande, ao tecer louvores à caridade. No texto grego, Paulo usa o vocábulo “agape”, que é uma das palavra traduzidas por “amor”, mas como palavra amor é polissêmica em português, para evitar uma compreensão equivocada do seu sentido, costuma-se traduzir por 'caridade'. Apenas para esclarecer aos confrades, na língua grega, utiliza-se a palavra “eros” para significar o amor carnal, aquele voltado para a satisfação dos sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva egoista, individualista e interesseira, enquanto a palavra “agape” é utilizada para significar o amor doação, desinteressado, amor que quer o bem do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de tudo para fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que se perfaz na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a) amado(a). Como podem ver, não há uma palavra em português que carregue todo esse significado, nem mesmo a palavra 'caridade' tem essa conotação total. No entanto, é o vocábulo que mais se aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica.

Pois bem, no famoso 'hino à caridade', Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa forma de amor, que não se limita a meras atitudes externas, mas deve unir o interior com o exterior, para alcançar o seu pleno significado. Se eu falasse todas as línguas, isto é, se eu fosse um exímio comunicador, mas sem a caridade, seria igual a uma sineta que toca; se eu tivesse toda ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um sábio extraordinário e um crente ardoroso, mas sem a caridade eu nada seria. Se eu me desfizesse de todos os meus bens a serviço dos pobres, ou seja, se eu praticasse a filantropia para ser elogiado pelas pessoas, mas não tiver a caridade, de nada isso serve. E por aí segue. Meus amigos, que fantástico desafio Paulo põe diante de nós. De nada valem as nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras de misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia, nossos grupos de oração, nossas participações na missa e nos sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos pastorais, etc, se tudo isso não vier de uma convicção interior, de um ato original de entrega plena e total do nosso próprio ser a Deus, de um compromisso firme e permanente de seguir o ensinamento de Cristo. Se tudo o que fizermos tiver como motivação só o cumprimento do dever, a tradição familiar ou social, o peso na consciência ao ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda, se for para mostrar-se aos outros, se for para angariar elogios e fama na comunidade, meus amigos, estaremos sendo o que Paulo chama de 'címbalo que tine', ou seja, um corpo sem espírito, que não funciona por si, mas manipulado por uma força externa.

E passa a discorrer sobre as qualidades do amor-ágape: “A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo. ” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela jaculatória, que todos ainda devem se lembrar: “Deus charitas est et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A caridade é o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade nunca acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e virtudes acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se extinguirá um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica fácil de compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus e estando na caridade, estamos nele.

Passo agora ao assunto da vocação à profecia. Em primeiro lugar, o exemplo de Jeremias, lido na primeira leitura (Jr 1, 4). Primeiramente, explico o sentido da palavra 'profeta'. Deriva do grego “prophetés”, que por sua vez, é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”, que significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa 'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em nome de Javeh. Jeremias foi aquele profeta que ousou desafiar Javeh ao dizer: eu não vou mais falar em teu nome, porque todas as vezes em que faço isso, sou ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não vou mais fazer isso. Então, o próprio Jeremias confessa: eu não consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o tranquilizou: “ põe a roupa e o cinto, levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer … eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, ” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.

A nossa vocação profética também nos coloca diante de desafios semelhantes e não podemos nos acovardar. O exemplo de Jeremias é uma motivação para nós. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho, disse Paulo parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um de nós, no exercício da nossa missão de seguidor de Cristo e de Francisco, deve também sentir dentro de si esse fogo abrasador que não permite que a nossa voz se cale, que não deixemos passar uma ocasião para testemunhar a nossa fé, para comunicar aos outros o ensinamento que recebemos de Cristo. Os profetas de outrora falavam em nome de Javeh, nós hoje falamos em nome de Cristo, que é a própria Palavra de Javeh materializada e encarnada, que nos mandou para continuarmos a sua missão, quando chamou os apóstolos e estes criaram as primeiras 'ekklesias' (comunidades), através das quais nós somos hoje chamados ao mesmo apostolado.

E aqui passamos a considerar a missão profética de Cristo, que não falava em nome de Javeh, como os profetas antigos, mas falava em nome próprio, porque Ele é a própria Palavra de Javeh. No evangelho do domingo passado, cuja continuação lemos hoje, vemos o autotestemunho de Cristo, quando ele se proclama o Messias, ao ler a passagem do profeta Isaías, cap 61: (O Espírito do Senhor Deus está sobre mim. E Ele me ungiu para pregar o evangelho. Para resgatar o pobre da sua pobreza) e depois, fechando o livro, acrescentou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Foi uma rara ocasião em que Cristo assumiu publicamente que Ele era o Messias esperado. Alguns judeus o chamava de 'profeta', mas na verdade, ele era mais que um profeta porque falava em nome próprio. Mas os seus concidadãos tinham dificuldades em aceitar isso: como pode? É o filho de José carpinteiro, como pode ser o Messias? E ficavam esperando dele sinais extraordinários para que acreditassem, o que Cristo se recusava a fazer.

Pode até parecer estranha essa atitude de Cristo. Por que ele não dava logo os “sinais” que eles tanto queriam e assim os convencia de uma vez? Por que ficava se negando a fazer milagres em sua própria cidade? A resposta é simples: Ele queria que todos acreditassem na sua pregação, no seu testemunho, não em demonstrações de poder, em exibicionismos. Jesus queria que eles cressem na Sua pessoa sem a necessidade de ter de provar isso por meios miraculosos, porque isso levaria a uma atitude de submissão da parte deles, não a uma adesão consciente. Fazer um milagre para demonstrar poder era como obrigá-los a acreditar e esse não era o Seu objetivo. A crença devia ser fruto de uma decisão da vontade livre, não de uma situação forçada. Ele esperava que os seus concidadãos, aqueles que conheciam a sua família e O conheciam desde criança, fossem capazes de enxergar n'Ele mais do que os olhos carnais mostravam, mas isso não aconteceu. Ao contrário. Ficaram irritados e tentaram linchá-los. E Jesus terminou fazendo um milagre diferente nessa ocasião, como diz o evangelista Lucas (4, 30): passando pelo meio deles, continuou o seu caminho. Ora, de que modo Jesus teria conseguido se libertar de uma multidão irada, senão tornando-se invisível a eles e passando pelo meio da turba sem que O vissem? No entanto, mesmo assim, não perceberam o milagre nem acreditaram n'Ele.

Meus amigos, para não me alongar demasiado, concluo convidando todos a meditarem sobre a nossa vivência da vocação profética, à qual fomos chamados pelo batismo, e que em nós se consolidou com a formação recebida nas dependências seráficas.