domingo, 17 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

COMENTÁRIO LITURGICO – 24º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

Caros Leitores,

Preliminarmente, quero fazer um registro histórico significativo para todos nós. Nesta data, comemora-se a festa litúrgica da “impressão das chagas” em São Francisco, isto é, o dia em que ele recebeu as chagas de Cristo no seu corpo. De acordo com a tradição, São Francisco rezava com muito fervor em alta madrugada diante da cruz e, de repente, um serafim desceu do céu, retirou uma brasa do fogo que ardia no altar e com ela cravou na carne dele os mesmos sinais da crucificação de Jesus, o que lhe causou grande dor física, da qual ele padeceria até o final da vida. Hoje também foi comemorado o aniversário jubilar (50 anos) de ordenação dos Freis Dom Geraldo, Gilberto e Nazário.

Passando ao tema das leituras litúrgicas do domingo, a mensagem central aborda o problema da raiva e do rancor, associados com a misericórdia e com a reconciliação. A primeira leitura, retirada do Eclesiástico (ou Ben Sirac, na tradição hebraica – Eclo 28, 1-9) é de extrema e coerente sabedoria: O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las. Perdoa a injustiça cometida por teu próximo, assim, quando orares, teus pecados serão perdoados. Ora, se alguém não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?  Se ele, que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? (Eclo 28,4-5). Vemos aqui, meus amigos, que a liturgia está prosseguindo na mesma temática do domingo anterior, quando trouxe a mensagem sobre a correção fraterna. Tal como aquela, esta do perdão é também uma das coisas mais difíceis de se fazer na prática, mas esse é o mandamento. Como diz Paulo, apóstolo, neste mesmo sentido (embora não seja uma das leituras de hoje): amar os amigos é muito fácil, mas devemos amar os inimigos. Existem algumas atitudes dos nossos semelhantes que doem muito profundamente em nós, sobretudo a maledicência, a injúria, a ingratidão, doem mais do que uma alfinetada. A vontade que se tem é de nunca mais olhar na cara da pessoa que faz isso. Mas exorta o Eclesiástico (38, 8-9): Pensa nos mandamentos, persevera nos mandamentos e não guardes rancor ao teu próximo. Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!

Certa vez, eu li no nosso livro de exercicios latinos (G. Zenoni) um fato pitoresco da vida de Sócrates, que me vem agora à mente. A esposa de Sócrates chamava-se Xantipa, era uma mulher inconveniente, muito grosseira, faladeira, tratava mal o marido, os amigos se admiravam da paciência com que Sócrates suportava tudo isso. Aos que perguntavam a ele por que não a deixava, Sócrates respondia: com ela, eu exercito todos os dias a tolerância e aprendo a ser tolerante com os outros. Na minha interpretação, o exercício da tolerância, no caso de Sócrates, é o exercício do perdão. É aquilo que nós rezamos todos os dias no Pai Nosso - perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos ofenderam – fácil de dizer, mas nada fácil de praticar.

Tem também a esse propósito a história de um homem que comprava jornais todos os dias de um jornaleiro que o atendia rispidamente, mas ele sempre sorria e o cumprimentava com cortesia. Um amigo perguntou porque ele não retribuía a grosseria do jornaleiro na mesma medida, então ele respondeu: porque não quero que ele decida como eu devo me comportar, quem decide o meu comportamento sou eu. Se eu retribuir a grosseria dele, estarei deixando que ele decida por mim; sendo gentil, eu estou no comando da minha decisão. Isso é algo fácil de fazer? Por certo que não. Mas é isso que a sabedoria hebraica nos ensina e o que Cristo referenda na leitura do evangelho, que comentarei a seguir. Se há pessoas que praticam a tolerância por motivos humanitários, muito mais nós cristãos temos, além do humanitarismo, a motivação do mandamento que manda perdoar.

Na perspectiva científica contemporânea, os psicólogos recomendam uma espécie de terapia do perdão. Antes de ser uma virtude religiosa ou moral, perdoar é um ato terapêutico, faz bem à alma e alegra a vida de quem perdoa, aliviando as tensões e dissolvendo a ansiedade. Perdoar não é amnésia, simplesmente esquecer, aliás, o esquecimento de certas ofensas é, pode-se dizer, impossível. O legítimo perdão se alcança quando você consegue se lembrar da ofensa, sem que aquilo lhe oprima o espírito. O exercício do perdão é uma necessidade da alma, para que não venhamos a adoecer física e psicologicamente. E, muito diferente do que se pensa, perdoar não é atitude de pessoas fracas, ao contrário, exige extrema fortaleza de espírito, sendo necessário ter muita maturidade e autocontrole para exercê-lo. Ora, se essa atitude de perdoar é recomendada até mesmo fora do ambiente religioso, fundada no objetivo de viver melhor, tanto mais quando o ato do perdão se associa com a fé religiosa. O cristão que não consegue superar a ânsia da vingança e busca, de todos os modos, se vingar do ofensor não está sendo fiel ao ensinamento de Cristo.

É isso que ele reforça na leitura do evangelho de hoje (Mt 18, 21-35). Em certa ocasião, Pedro, que devia encontrar-se atormentado com ofensas de alguém, pergunta a Jesus Cristo: Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim, sete vezes? Pedro já devia achar que estava sendo bastante tolerante ao perdoar sete vezes. Ocorre que Jesus Cristo respondeu de forma inesperada para ele: não apenas sete, mas 70 x 7. Mostrando o seu conhecimento da Torah, Cristo repetiu a regra que consta em Gênesis 4, 24, quando Lamech, filho de Caim, tendo matado um homem que o ofendera, comentara com suas mulheres Ada e Zilá: Caim será castigado sete vezes, mas Lamech, setenta vezes sete. Os exegetas interpretam esse número (70 x 7) como sendo o símbolo do infinito. O número 7, interpretado dentro da numerologia bíblica, tem uma relação com a plenitude, sendo considerado o número perfeito. A criação do mundo em 7 dias indica que este é um número da preferência de Javeh. No cristianismo primitivo, a associação da Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) com os pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste) indica o sete como a soma do 3 da Trindade com o 4 dos pontos cardeais, conferindo-lhe o status de número prefeito. Daí que, quando Pedro indaga sobre “perdoar sete vezes” estaria talvez referindo-se a uma quantidade que simbolizaria o máximo. Mas quando Cristo responde que o perdão deve ser conferido setenta vezes sete vezes, está querendo potencializar fortemente esse número 7, que já era em si muito grande, isto é, deve-se perdoar infinitas vezes.

E, em seguida, Jesus Cristo complementa a lição com a história do devedor que teve uma grande dívida perdoada pelo patrão, mas daí a pouco, quando ele encontrou alguém que lhe devia poucas moedas, agiu de modo intolerante e não foi capaz de passar adiante o perdão que havia recebido. O patrão mandou chamá-lo e retirou o perdão que havia dado, exigindo o pagamento de toda a dívida. Vale lembrar que, na época de Jesus, o devedor que não tivesse como quitar sua dívida se tornava escravo do credor, que podia até vendê-lo no mercado para resgatar o seu crédito. E se a dívida fosse tão grande que apenas a venda do devedor não fosse suficiente, o credor podia vender também a esposa, os filhos, os bens do devedor, o que fosse bastante para cobrir a dívida. Daí porque, no texto antigo do Pai Nosso (ainda é assim no texto latino) a expressão era: perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Ser devedor insolvente era condição que levava alguém à escravidão. E Jesus arremata o discurso de um modo fulminante: é assim que o vosso Pai agirá convosco, se não perdoardes de coração o vosso irmão. Vejam bem, não basta perdoar simplesmente, tem de ser perdão de coração.

Meus amigos, como isso é difícil, mas este é o mandamento. No sermão da missa paroquial, o celebrante disse algo muito interessante: devemos ser misericordiosos com o próximo não porque o próximo mereça isso, mas porque Deus é misericordioso conosco. Se nós recebemos misericórdia sem merecer, devemos praticar também a misericórdia com quem não a merece. Este é o desafio que Cristo coloca para nós neste domingo. É a mesma mensagem que o São Francisco ensinava com outras palavras: ninguém deve esperar ser perdoado para, só então, dar o perdão, pois é perdoando que se é perdoado. Sigamos o seu exemplo.

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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - CORREÇÃO FRATERNA - 10.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – CORREÇÃO FRATERNA – 10.09.2017

Caros Leitores,

Neste 23º domingo comum, as leituras litúrgicas nos lembram o dever do cristão de chamar a atenção daqueles irmãos que, de algum modo, caíram em falta com a caridade ou se desviaram da fidelidade aos mandamentos divinos. No nosso tempo do Noviciado, exercitávamos diariamente a prática da correção fraterna e o “corrigido” ainda tinha que dizer “seja pelo amor de Deus a sua santa caridade.” Esse dever decorre da responsabilidade que cada um de nós tem de reconduzir de volta ao caminho a ovelha desgarrada. Os nossos co-irmãos não católicos assumem isso como uma obrigação rotineira. Se um membro de uma congregação evangélica não comparece ao culto, no dia seguinte, alguém vai à casa do faltante a indagar-lhe os motivos da sua ausência. Entre os católicos, essa tradição não se manteve, mas Jesus Cristo recomenda isso expressamente no evangelho deste domingo.

Na primeira leitura, retirada do livro do profeta Ezequiel (33, 7-9), o Senhor adverte o fiel sobre a sua obrigação de mostrar ao ímpio a sua impiedade e de chamá-lo ao caminho da retidão, sob pena de que, não o repreendendo e vindo ele a morrer em pecado, o fiel se torna responsável pela perdição daquele pecador. Ao contrário, se o pecador for advertido pelo fiel e não quiser se converter, este não será responsabilizado pela perdição daquele. Esta responsabilidade que o cristão tem perante os irmãos da religião e mesmo perante os não crentes está expressa na frase de Javeh dita através do Profeta: “Eu te estabeleci como vigia da casa de Israel.” Cada cristão é responsável, ao mesmo tempo, pela fidelidade na própria fé e ainda pela perseverança na fé dos irmãos. Vemos aqui as duas dimensões da fé (horizontal e vertical), isto é, a religião direcionada, ao mesmo tempo, para Deus e para a comunidade, dimensão esta que foi durante muito tempo menosprezada, quando a catequese católica se concentrava no lema individualista “salva a tua alma”, como se o fiel fosse responsável apenas por si e os pastores devessem se preocupar com a qualidade da fé dos crentes em geral. A palavra de Javeh através do Profeta Ezequiel não está dirigida aos Sacerdotes do seu tempo, mas a cada um dos integrantes do povo de Deus. Cada fiel é estabelecido como vigia na casa de Israel, cada um de nós tem o dever não apenas de dar o exemplo, mas também de manter-se alerta com o procedimento dos membros da comunidade, a fim de que nenhum deles se desvie da fidelidade aos mandamentos. Cada cristão é responsável diretamente pela própria fé e indiretamente também pela fé dos irmãos. A fé assume, nesse contexto, uma característica proativa, no sentido de que o verdadeiro cristão não está preocupado apenas consigo próprio, apenas em salvar a própria alma, como se dizia na linguagem tradicional, mas deve preocupar-se também com a salvação dos irmãos. A salvação é comunitária, a fé é comunitária, a religião é comunitária. A religião vivida apenas para si, internamente, é estéril e vazia.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (13, 8-10), o Apóstolo ensina essa mesma lição com outras palavras, quando diz: “Os mandamentos: “Não cometerás adultério”, “não matarás”, “não roubarás”, “não cobiçarás”, e qualquer outro mandamento, se resumem neste: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.” Isso quer dizer que as ordens divinas contidas nos mandamentos da lei não devem consistir em normas negativas (não faça isso, não faça aquilo) nem preceitos de abstenção, mas no sentido da assunção de uma atitude positiva de amor generoso. Ou melhor dizendo: aquelas ordens de cunho negativo (não isso, não aquilo) que constavam na lei antiga, pelo novo mandamento de Cristo se transformaram em ações positivas e concretas de amar os irmãos. “O amor é o cumprimento perfeito da lei”, completa o apóstolo Paulo. E Paulo não está inventando isso, porque o próprio Cristo dissera, certa vez, ao criticar os fariseus, que haviam formulado centenas de prescrições restritivas interpretando a lei de Moisés, uma frase similar, quando um doutor da lei o interrogou: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mateus 22:36-40).” Os doutores da lei eram exatamente aqueles fariseus mestres, que haviam transformado a lei de Moisés em um conjunto de regras minuciosas e burocráticas, que tornavam insuportável a vida dos judeus. A grande catequese de Jesus contra esse tipo de religião farisaica, que infelizmente ainda hoje se mantém na cabeça de alguns cristãos (clérigos e leigos), foi a de mostrar que a lei de Deus é a lei do amor, não a do castigo e da repreensão. Infelizmente, apesar do ensinamento tão claro da parte de Jesus, desenvolveu-se uma vertente doutrinária do cristianismo nesses mesmos moldes de fanatismo. Isso decorre, sobretudo, do fato de que alguns cristãos colocam o Direito Canônico acima do Evangelho. O Direito Canônico deve ser compreendido como norma de organização e de manutenção da unidade eclesial, não como doutrina que se sobrepõe sobre a Palavra de Cristo transmitida pelos escritores sagrados. Por exemplo: o católico que vai à missa dominical apenas porque o Direito Canônico afirma cometer um pecado quem não for, esse cristão não está praticando a religião verdadeira de Cristo, que é a religião do amor. Lembro demais de ter ouvido na catequese tradicional que todos devem cumprir o “preceito dominical”. Ora, cumprir o preceito não é o mesmo que praticar o mandamento de Cristo. Cumprir o preceito é um ato burocrático exterior estéril, se não estiver acompanhado da motivação interior que decorre do amor a Cristo e aos irmãos. A falta desse componente interno essencial transforma a ida ao templo uma simples obrigação e assim estamos adotando aquele mesmo comportamento que Jesus Cristo, por diversas vezes, criticou nos fariseus, que praticavam uma religião de exterioridades. Vista desse modo, a missa passa a ser um ritual enfadonho, o sermão do celebrante vira um discurso interminável e o fiel fica escolhendo aquele padre que celebra a missa mais depressa, a fim de “se livrar” logo da obrigação. Com toda certeza, não é isso que Cristo quer de nós.

Qual seria, então, a motivação para ir à missa aos domingos, se não for o do cumprimento do preceito? A resposta está na leitura do evangelho, retirada de Mateus (18, 15-20), ou seja, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles.” A verdadeira motivação da participação na celebração litúrgica está no encontro com os irmãos, porque é na comunidade que Cristo está presente, de acordo com a promessa dele. É porque a nossa religião é comunitária e deve ser exercida na comunidade. Por mais que eu reze individualmente (e aqui eu não estou negando o valor dessa oração individual), isso não é suficiente, a fé não está completa. É no encontro da comunidade orante que o cristão tem a certeza de que está na presença de Cristo.

É nesse contexto que devemos compreender a exortação de Cristo, no sentido de que “se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus.” Na comunidade, a nossa oração é muito mais forte, aliás, ela tem todo o poder, assegurado pelo próprio Cristo. Daí que o ato de corrigir o irmão não deve ser com aquele tom ameaçador de censura, de mostrar seus pecados, de advertir sobre os castigos, etc., mas de reconduzi-lo ao amor de Deus. Por exemplo, se o irmão não vai à missa e você vai conversar com ele sobre isso, o tom da conversa não deve dar ênfase no aspecto do “pecado” ou do “descumprimento do preceito”, mas deve destacar a dimensão comunitária da religião, da superioridade da oração coletiva sobre a prece particular, da promessa de Cristo de estar presente quando os irmãos se reunem para rezar, não quando alguém reza individualmente. Daí porque a missa transmitida pela televisão ou pela internet só é legitimada em casos específicos e não substitui, sem reservas, a celebração eucarística comunitária.

É interessante também destacar a metodologia da abordagem ensinada por Jesus. Primeiro, o irmão deve ser procurado em particular, para não expô-lo na comunidade. Se essa conversa não tiver resultado, vem o segundo passo: repete a conversa na presença de outros dois irmãos, atribuindo assim uma força persuasiva maior. Se também isso não funcionar, então será a vez de apelar para que toda a comunidade se empenhe nessa tentativa. Essa sequência de ações deverá ser suficiente para chamar o irmão faltoso à reconciliação. Se nem assim der certo, então vai incidir aquilo que lemos na primeira leitura, do profeta Ezequiel: o ímpio morrerá na sua impiedade, mas tu não serás responsabilizado pela perdição dele. Aqui se entrelaça a primeira leitura com o texto do evangelho, mostrando a harmonia e a coerência da palavra de Deus no antigo e no novo testamentos.

Meus amigos, obviamente não é tarefa fácil chamar a atenção de um irmão sobre o seu comportamento, ao contrário, é extremamente delicada e deve ser tratada com o máximo tato e sensibilidade. Mas Jesus nos ensina que, apesar disso, a nossa fé nos traz essa responsabilidade e não devemos ignorá-la.

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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DE DEUS - 03.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 03.09.2017

Caros Leitores,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo com o mundo (lógica mundana) e aprender a pensar de acordo com o que é divino (lógica de Deus). A repreensão que Jesus faz a Pedro, que não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus, conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos.”

Na primeira leitura, do livro do profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujo rei Ezequias e cujos sacerdotes praticavam a ganância e a idolatria e desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu: “Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: ‘Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar.” (Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh lhe mostrou que ele devia continuar seguindo a lógica de Deus, profetizando. Assim foi até que vieram os inimigos, destruíram a cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele, Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! (1 Cor 9:16)” O desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte os cristãos romanos a pensar de acordo com a lógica divina, quando diz: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, seguindo as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da liturgia de hoje: “Somos chamados a não nos deixarmos absorver pela visão deste mundo, mas a estar cada vez mais conscientes da necessidade e do empenho dos cristãos de avançarem contracorrente e à margem. Neste paradoxo está contida a regra de ouro que Deus inscreveu na natureza humana criada em Cristo : a regra de que só o amor dá sentido e felicidade à vida. Gastar os seus talentos, energias e o seu tempo só para se salvar, se proteger e se realizar a si mesmo, conduz, na verdade, a perder-se, quer dizer, a uma existência triste e estéril. Se, pelo contrário, vivemos para o Senhor e fundamentamos a nossa vida sobre o amor, como fez Jesus, podemos saborear a autêntica alegria e a nossa vida não será estéril, pelo contrário, ela será fecunda. ”. (apud Zenit, revista eletrônica desta data – www.zenit.org). Achei interessante o Papa fazer esse paradoxo entre a lógica mundana e a lógica divina, porque viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a cada dia, para os cristãos.

No evangelho deste domingo (Mateus 16, 21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro, chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua hebraica, “satan” (סתן) significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal do verbo hostilizar, acusar, denunciar. É interessante ainda observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é utilizado para designar adversários entre seres humanos, pois quando o adversário é um ser sobrenatural (por ex: anjo mau), a palavra usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram sinônimas (satanás e diábolos), passando assim para o português. Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio, o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá, inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse sentido que deve ser entendido o “carão” de Jesus.

Convém destacar também nesse contexto o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o significado comum em português. Em grego, a palavra original é “skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de tropeço”, isto é, algo que impede de atingir um objetivo. Foi exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: “Deus te livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer”. Ora, nós sabemos que Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da expectativa da paixão, porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, e isso o deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai, afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque não pensas as coisas de Deus (lógica divina), mas pensas as coisas dos homens (lógica mundana).

Vemos assim, meus amigos, claramente nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo, isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja, carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto, está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.

Na sequência desse ensinamento, Jesus pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no nosso período de formação: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é bastante alentadora: “o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Mt 16, 27).

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terça-feira, 29 de agosto de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21º DOMINGO COMUM - PODER E LIDERANÇA - 27.08.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – PODER E LIDERANÇA – 27.08.2017

Caros Confrades,

Neste 21º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Igreja? Esse trecho de Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo, de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu: o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na solução das discussões em torno desse tema é a chave para a re-união das Igrejas ocidental e oriental.

Temos na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. O reinado deste trouxe desastrosas consequências para Israel, em virtude de seus erros administrativos, colocando em risco a segurança do povo, ao fazer alianças políticas duvidosas, além de não valorizar o poder do Javeh, preferindo confiar nos reis vizinhos. Sobna era um estrangeiro administrador do palácio real e, diante da ameaça de invasão de Israel pelo exército da Assiria, em vez de estimular o povo a rezar, fazer penitência e pedir a proteção de Javeh, duvidou do seu poder, mandando oferecer banquetes para todos, dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou seja, tanto Ezequias quanto Sobna foram infiéis a Javeh e duvidaram do seu poder contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías foi avisá-lo de que aquele lugar de administrador seria agora assumido por Eliakim, filho de Helcias. O castigo para Ezequias viria depois. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao povo. Ao invés de exercer a liberança a serviço do povo, Sobna fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no conhecido episódio em que Cristo institui Pedro como a “pedra” fundamental da Igreja.

Na segunda leitura, um trecho em continuidade da Carta aos Romanos, que vem sendo lida já há vários domingos, o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas ele (Paulo) está convocando os gentios para assumirem aquele lugar recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!” (11, 33) Paulo utiliza um argumento bem simples e convincente, de modo a conseguir a adesão dos romanos cultos à doutrina cristã. Os romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para ouvir a pregação dele e receber o batismo.

Na leitura do evangelho de Mateus (16, 13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?” As respostas são várias: uns dizem que é João Batista ou Elias ou Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos para que não espalhassem essa informação por enquanto. Até aqui, o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros dois evangelhos sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala de Jesus: “… por isso, eu te digo que tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão contra ela”. Ou seja, considerando que os outros dois evangelhos sinóticos não contém tal acréscimo, há fortes suspeitas de que, durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros da Bíblia, certos trechos das escrituras teriam sido propositalmente “editados”, de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria sido, possivelmente, uma inserção que não constava no manuscrito original, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tal suspeita é reforçada pelo fato de que os Patriarcas das igrejas orientais não concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade suprema de todos os cristãos, acima da autoridade deles, levando ao cisma, que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos denominados de sinóticos são compilações de documentos mais antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.

Não obstante isso, é importante deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico. Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior aos demais?

A propósito dessa questão, trago aqui um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta: “O Papa Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica. Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo 12, 32). Portanto, «presidir à caridade» significa atrair os homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as múltiplas diferenças."1 Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço. Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11) Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário, a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de autoritarismo, de poder político mesmo, isso durante muitos séculos. Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente dois, os quais eu posso dizer que presidiram realmente na caridade: o Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão ao Bispo de Roma. Este fato é um real e difícil obstáculo para que se alcance a unidade dos cristãos.

Que o Divino Mestre inspire o Papa Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.

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1http://www.cnbb.org.br/eventos-1/muticom/13641-a-catedra-de-pedro

domingo, 20 de agosto de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - ASSUNÇÃO DE MARIA - 20.08.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 20.08.2017

Caros Leitores,

A liturgia dominical comum do vigésimo domingo cede espaço para a celebração da festa da Assunção de Maria, conforme a negociação dos feriados religiosos para o Brasil, que são transferidos para o domingo seguinte. A Assunção de Maria ao céu foi proclamada como dogma de fé pelo Papa Pio XII, no dia 1 de novembro de 1950, sendo esta a primeira proclamação oficial de um dogma após ter sido declarado, no Concílio Vaticano I, em 1870, a infalibilidade papal em matéria de doutrina. Antes, o Papa fez uma grande consulta aos Bispos do mundo todo, tendo sido apoiada por grande maioria deles a proposta. Então, o Papa fez a solene declaração de fé, afirmando que a Virgem Maria, após haver concluído a sua missão na terra, foi elevada ao céu em corpo e alma. Propositalmente, o Papa não afirmou que Maria havia morrido, porque existe uma tradição muito forte nas igrejas orientais, que afirmam a “dormição” de Maria, indicando que ela não teria morrido e o Papa não quis entrar em choque com essa crença. O dogma da Assunção foi proclamado com base em remota tradição cristã, já que não consta na Bíblia, sendo esse um forte motivo para que outras igrejas não o aceitem.

A festa da Assunção de Maria também funciona como data de referência para outras denominações da Virgem, as quais não possuem uma data definida. Assim é que, nesta data, uma variedade de outras Nossas Senhoras tomam assento: além da Nossa Senhora da Assunção, designação própria da data, tem a Nossa Senhora da Glória, a Nossa Senhora dos Prazeres, a Nossa Senhora da Saúde, a Nossa Senhora da Palma, falando apenas de algumas que existem no território cearense. Provavelmente, em outros lugares do Brasil haja outras designações que eu não conheço. Esse fenômeno reflete a grande influência que o culto mariano tem na nossa cultura religiosa, tanto popular quanto erudita, herança deixada pelos colonizadores portugueses. Sem dúvida, há um acentuado exagero devocional a Nossa Senhora, que suplanta a figura principal da nossa fé religiosa, o Filho de Maria. Esse devocionismo excessivo se encontra também presente na atribuição dos nomes próprios das brasileiras. Nos dias atuais, essa tendência vem diminuindo progressivamente, mas seguramente mais da metade das mulheres brasileiras ainda tem alguma “maria” na composição do seu nome. Sem nenhum demérito para a Mãe de Deus, cuja participação no Mistério da Redenção é determinante e imensurável, mas o devocionismo a Maria e aos Santos em geral, marca do catolicismo brasileiro, constitui um desvio teológico de profundas raízes não apenas na mente popular, mas na grande maioria dos presbíteros.

Comentando um pouco as leituras da festa litúrgica da Assunção de Maria, temos na primeira leitura, um conhecido trecho do Apocalipse (12, 1-6), que narra a figura do dragão pronto para devorar o filho da mulher que estava prestes a nascer. As associações imediatas mais do que óbvias são: a mulher é Maria e o dragão é o demônio. Mas há outras hipóteses para a figura da mulher: a própria Igreja, ou o povo de Deus, ou ainda o povo de Israel. Assim como há outras hipóteses para o dragão de sete cabeças e dez chifres. Talvez seja a figura do império romano com suas autoridades perversas, levando perseguição ao cristianismo. A cauda do dragão, que era capaz de destruir a terça parte das estrelas do céu, deve significar o grande poder desses imperadores pagãos. Dado o grande conteúdo simbólico do livro do Apocalipse, são muitas as possibilidades de interpretação que as suas palavras permitem, de modo que cada crença busca uma forma de relacionar com suas próprias convicções. Eu tenho cá as minhas reservas sobre muitas dessas conclusões que já vi pessoas retirarem dali. Gramaticalmente, a palavra vem do grego apo-kalypsis, termo derivado do verbo kalyptô, que significa esconder, funcionando a preposição “apo” como uma negativa, portanto, algo que é retirado do esconderijo. Nas bíblias não católicas, o termo é traduzido por “revelação”, porém não se deve confundir o conceito teológico da revelação dada por Cristo sobre o Pai, o fundamento da nossa fé, com qualquer revelação, mesmo que totalmente acreditada, como é o caso. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Bíblia católica não traduz a palavra, apenas a translitera. Na minha modesta opinião, não é este um livro que deva merecer a atenção dos fiéis em busca de “revelações” outras que estariam escondidas, visto que a única revelação, a única Palavra de Deus é o próprio Cristo e esta se encontra de modo admirável nos evangelhos. O Apocalipse é apenas um quebra-cabeças para teólogos decifrarem.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-27), temos aquela também famosa analogia que o Apóstolo faz entre Cristo e Adão, quando ela afirma que “por um homem” entrou o pecado no mundo e depois “por um homem” entrou a salvação. Essa figura retórica de Paulo já foi motivo de inúmeros e inconclusos debates entre os teólogos, de um lado, aqueles que defendem a doutrina científica da evolução das espécies e, de outro lado, os que defendem a teoria criacionista. Em meus recentes estudos de hebraico bíblico, aprendi que a palavra Adam (אדס) significa “homem”, pessoa humana, então não vale a pena discutir sobre o que essa analogia conceitual de Paulo possa significar. Além disso, as descobertas científicas não param de evidenciar que a criação divina continua com plena força na expansão do universo e na perene evolução dos seres vivos. A meu ver, a teoria criacionista é mero fruto do fundamentalismo bíblico e nada acrescenta à bagagem conteudista da nossa fé. Além do mais, seria irrazoável esperar que Paulo fosse capaz de pensar com categorias científicas que só passaram a ser definidas muitos séculos depois da morte dele. E o seu conceito mecanicista de ressurreição, exposto nos versículos 23 e 24 deste capítulo 15 também merece ser atualizado, para uma melhor adequação com o pensamento teológico contemporâneo.

Temos, na leitura do evangelho de Lucas (1, 39-56), a narração da visita de Maria a sua prima Isabel, depois de ter sabido, pelo anjo, da gravidez desta. Este trecho contém o popular e belo cântico do Magnificat, que tantas vezes cantamos em melodias diversas, correspondendo este à exaltação e ao agradecimento de Maria pela homenagem prestada a ela por Isabel, que recebeu ali a segunda revelação da chegada do Messias (a primeira revelação foi a do anjo a Maria). E a criança que pulou no ventre de Isabel, também por desígnio divino, seria o precursor de Jesus, aquele que iria aplainar as veredas, cumprindo o que profetizara Isaías. O evangelista Lucas, nesta narrativa, quis deixar bem clara essa relação entre a missão de João Batista e a profecia de Isaias acerca do Messias. Sendo um intelectual e tendo tido o privilégio de conviver com Maria, após a morte de Cristo, Lucas nos deixou preciosas informações e interessantes associações, enriquecendo de forma inteligente e apropriada as confidências que Maria lhe fizeram.

Convém lembrar que Zacarias, marido de Isabel, era o sacerdote em exercício naquele ano, e que ficara mudo misteriosamente, após duvidar da gravidez da mulher. Este fato denota a relação direta familiar de Jesus com a classe sacerdotal do povo de Israel, embora José não pertencesse a essa classe, Conclui-se também a qualidade da instrução religiosa recebida por João Batista do pai sacerdote. Não foi por acaso que ele foi escolhido para ser o anunciador do Messias e não foi por um milagre que ele veio a conhecer as escrituras, mas foi pela formação recebida. De sua parte, Maria também recebia instrução religiosa dos rabinos da sinagoga, de modo que o anúncio do anjo a ela foi prontamente compreendido. Ela apenas ficou embaraçada: por que eu? Mas quando o anjo disse que ela tinha sido agraciada por Deus, ela não teve dúvidas em aceitar: fiat mihi secundum verbum tuum (faça-se em mim segundo a tua palavra). E com toda certeza, Maria e José também colocaram o menino Jesus na escola bíblica daquele tempo, pois assim tinha sido a formação de ambos. É algo que faz falta nos dias de hoje, pois as nossas crianças e jovens não são estimuladas para o estudo da Bíblia, limitando-se a ouvirem “palestras” dos formadores paroquiais, os quais nem sempre possuem a desejável cultura religiosa que a função exige. Pelo menos é assim que eu observo nas diversas Paróquias, por ocasião do tirocínio preparatório das crianças e adolescente para a primeira eucaristia e para a crisma.

Meus amigos, que fique bem claro que eu não sou contrário à devoção a Nossa Senhora, ao inverso, eu creio que ela é digna de todo louvor e veneração, pela importância fundamental de sua vida no mistério da Redenção. O problema passa a existir quando, por um acentuado zelo em favor da devoção a Maria, se desvia a atenção dos fiéis do verdadeiro foco da nossa fé cristã, que é a pessoa de Cristo. Que Maria assunta inspire as nossas autoridades religiosas para reconhecerem e ensinarem a sua correta devoção.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - FIRMEZA NA FÉ - 13.08.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – FIRMEZA NA FÉ – 13.08.2017

Caros Leitores,

A liturgia deste 19º domingo comum nos exorta a sermos firmes na nossa postura de fé. Esta não pode padecer nem do apego à tradição, de um lado, nem da fragilidade da incerteza, de outro. A primeira figura está no desabafo de Paulo, na carta aos Romanos, onde ele lamenta pela atitude rígida dos judeus, os legítimos herdeiros da promessa, que não reconheceram o Filho de Deus. A segunda figura está na fraqueza de Pedro diante do perigo, duvidando de si próprio e sucumbindo na sua vacilação. São duas situações para as quais precisamos estar atentos, porque facilmente podem nos iludir. A nossa fé não pode ficar estagnada nem ameaçada por dúvidas, mas deve estar num constante processo de crescimento e amadurecimento, superando todas as ameaças que a afligem.

Na primeira leitura, retirada do livro dos Reis (1Rs 19, 9-13), o autor sagrado nos ensina a reconhecer Deus nos acontecimentos, mostrando o exemplo do profeta Isaías. Ele subiu o monte Horeb, a fim de ter um encontro com Javeh, e pernoitava numa caverna, quando recebeu o aviso: espera lá fora, que o Senhor vai passar. Então, o profeta viu chegar um grande vendaval, mas não se abalou porque não viu o Senhor naquele vento; depois, veio um terremoto medonho, mas também ele não se impressionou, porque não viu o Senhor no terremoto; depois, viu um fogo devastando as árvores, mas o Senhor também não estava no fogo; por fim, veio uma leve brisa, então, ele saiu para esperar a chegada de Javeh. O que devemos entender com isso? Que a ação de Deus acontece de forma suave, natural, sem alarde, mansamente. Deus não precisa fazer grande barulho para mostrar-se a nós, Ele não necessita de ser anunciado com toque de tambores ou som de cornetas, como faziam as autoridades dos tempo antigos, a fim de serem notados pela população. Deus age na nossa vida de forma quase imperceptível, nós só precisamos estar atentos e saber perceber a sua presença na mais simples rotina, na mais costumeira tarefa. Isso me faz lembrar as atitudes espalhafatosas de alguns pregadores, sobretudo aqueles que aparecem nas igrejas eletrônicas, cujos canais enchem a lista das transmissões na TV, caprichando nas mímicas e nos trejeitos, utilizando-se até de encenações pagas (isso já foi comprovado), com o intuito de auferir maior credibilidade. A lição do Profeta está ali: Deus não está nesses eventos teatralizados, nesses terremotos psicológicos, nos anúncios fantasiosos. Deus está presente na simplicidade, na leveza do contato, na naturalidade do encontro pessoal. Quão proveitoso seria se todos os que buscam a Deus aprendessem a lição ensinada pelo profeta Isaías nessa leitura. Rapidamente, os ilusionistas da religião seriam desmascarados e os verdadeiros pregadores da Palavra seriam identificados.

A segunda leitura, dando continuidade à carta aos Romanos (Rm 9, 1-5), traz a queixa e o desabafo de Paulo em relação aos seus “irmãos de raça”, os judeus e mais ainda os fariseus, aquele grupo de judeus mais radicais e apegados às filigranas do texto da lei do que ao seu espírito de sabedoria. Diz ele: “Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça.” Paulo oferece a sua própria vida pela conversão dos judeus, para libertá-los daquele fechamento mental, que os impede de reconhecerem a verdade da Palavra de Deus humanizada em Jesus Cristo. “ A eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e também os patriarcas,” ou seja, eles são os chamados em primeiro lugar, os que deveriam estar na frente da fila, eles é que deveriam estar no trabalho de conversão dos gentios, no entanto, ao contrário, os gentios estão servindo de exemplo para eles, pela sua adesão à fé em Cristo, que eles renegam. E Paulo lamenta porque é um deles, foi educado como eles, sabe o que eles pensam, sabe o que eles esperam. Paulo pensava como eles e despertou para uma nova visão, daí a profunda dor que o Apóstolo sente pelo fato de seus irmãos de raça não serem também irmãos na fé cristã. O extremismo da sua compreensão das escrituras impede que eles aceitem o evangelho. Eles são tão aferrados à sua tradição, tão cuidadosos cumpridores de suas obrigações religiosas, no entanto, fecham-se num casulo intransponível, criado por eles próprios, e ficam impossibilitados de ver os novos rumos para onde a religião caminha.

Meus amigos, esta fé enclausurada em si própria, nos dias de hoje, é muito mais frequente do que se possa imaginar. Diversos grupos se apegam ao tradicionalismo religioso e rejeitam sumariamente qualquer nova abordagem da fé. O medo da heresia, mais ainda, o medo de uma possível infidelidade e de um castigo por causa isso levam muitos católicos a refugiarem-se nas velhas práticas e nas antigas doutrinas, criando uma clausura mental de pseudo segurança, tal como os judeus ainda hoje fazem, em relação ao segundo mandamento. O receio de chamar o nome de Deus em vão é tão grave e patológico que, no lugar da palavra Javeh eles pronunciam Elohim, Adonai, o Eterno, o Nome, mas não dizem Javeh, por causa da eventualidade de transgressão do segundo mandamento. Não devemos assimilar tal atitude. O nosso Deus é Amor, sua benevolência e compaixão são ilimitadas, não devemos criar obstáculos onde eles não existem. Lamentavelmente, existem em nossa Igreja clérigos e leigos submissos a essa idéia anacrônica de um Deus terrível, ameaçador, com o chicote permanentemente na mão pronto para castigar o fiel a qualquer deslize. No meu modo de entender, esses comportamentos podem ser identificados com a estreiteza religiosa dos antigos fariseus, que transformaram a lei de Moisés num conjunto de torturas físicas e mentais, que lhes obstruía o entendimento e a sensibilidade. Basta uma leitura mais atenta dos evangelhos para percebermos que não foi isso que Cristo ensinou.

No evangelho de Mateus (14, 22-33), vemos na imagem de Pedro a atitude oposta da fé petrificada em rígidos preceitos, isto é, a fé vacilante. Ao menor desafio, diante do menor obstáculo alguns cristãos sucumbem vítimas de suas próprias dúvidas. Se prestarmos atenção, podemos descobrir na nossa própria vida situações em que agimos iguais a Pedro, vencidos pela insegurança e a incerteza daquilo em que cremos. Quando Jesus se identificou para os discípulos, andando sobre as águas em direção ao barco como se estivesse em terra firme, Pedro, na sua costumeira impetuosidade, disse logo: também quero fazer isso. E Jesus disse: vem. Mas logo o vento forte se agitou contra o corpo dele e ele duvidou de si próprio. Sim, ele não duvidou de Jesus que lhe havia dito: vem! Ele duvidou da sua própria capacidade de realizar aquela tarefa extraordinária, que era pisar na água sem afundar. Era a sua fé que o mantinha flutuando. Quando ele pensou mais nos seus defeitos do que na força que Cristo havia lhe dado, então começou a afundar. Não foi a falta de fé em Cristo que se abateu sobre Pedro, mas ele duvidou de si mesmo, ele pensou que não seria capaz de fazer algo tão difícil, mesmo tendo recebido a ordem de Cristo: vem!

Meus amigos, esse comportamento de Pedro nos toca muito de perto, porque é muito possível que nós venhamos a padecer dessa mesma fraqueza, nos momentos em que somos desafiados. A fé cristã exige de nós certos compromissos que, às vezes, nós temos dúvida se poderemos levá-los adiante. O maior deles, talvez, seja o nosso compromisso de ser sal da terra e luz do mundo, isto é, de sermos exemplos para as outras pessoas. Não se acende uma luz para pô-la dentro do armário, nem se toma o sal para jogá-lo fora. Penso que nenhum de nós discorda disso e cada um se diz disposto a colocar em prática. Porém, quando somos desafiados numa situação concreta, muitas vezes agimos em desacordo com esse compromisso. Se eu critico os políticos corruptos (o que é muito comum, tanto uma coisa quanto outra, ou seja, a crítica e a corrupção), porém, eu cometo pequenos desvios de conduta social (por exemplo, avançar um sinal de trânsito, jogar papel no chão, deixar de pagar um tributo, tirar vantagem de uma situação em detrimento de alguém), fatos considerados banais para algumas pessoas, então eu estou fazendo igualmente a Pedro, isto é, estou fraquejando na minha fé, estou sendo incoerente na minha crítica aos que agem desonestamente. A nossa fé deve se manifestar não somente quando vamos à missa, quando rezamos o terço, quando pagamos o dízimo, quando ensinamos a reza aos nossos filhos, isso tudo é muito importante, sem dúvida. Contudo, mesmo nas ações mais corriqueiras do dia a dia, somos constantemente desafiados para darmos o exemplo da nossa fé e, nessas ocasiões, não podemos agir deste ou daquele modo justificando que “todo mundo faz assim”, porque o nosso compromisso de cristão é ser luz, e não sombra. Não é raro ouvirmos comentário do tipo: “fulano vive na igreja, no entanto, quando sai de lá...” Precisamos vigiar sempre, para não sucumbirmos a tal incoerência.

Deus quer de nós fidelidade sempre, não apenas no comparecimento da missa aos domingos e na participação dos sacramentos, não apenas em determinadas horas do dia ou em determinados dias da semana, mas a cada minuto de vida que Ele nos dá. Que o mergulho de Pedro nos sirva de alerta para nos mantermos firmes na nossa caminhada acima das águas turbulentas da sociedade.

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domingo, 6 de agosto de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - A TRANSFIGURAÇÃO - 06.08.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – A TRANSFIGURAÇÃO – 06.08.2017

Caros Leitores,

Neste 18º domingo comum, a liturgia celebra a solenidade da transfiguração de Cristo, extraordinário fenômeno ocorrido perante três dos seus apóstolos. A realeza de Cristo já estava predita no livro de Daniel (cap 7), onde ele narra visões e sonhos que lhe vieram à cabeça e ele precisou que um anjo lhe explicasse, porque ele não conseguia entender. Nessas visões, o profeta adota um conceito que, depois, foi assumido por Cristo: o filho do homem. E o apóstolo Pedro, na sua segunda carta, corrobora a narração de Mateus, dando testemunho do que ele presenciou naquela noite em que Jesus lhe mostrou a sua face gloriosa.

Na primeira leitura, o profeta Daniel (7, 9-14) descreve uma visão ou sonho fortemente enigmático, no qual viu animais monstruosos em situações completamente fora do contexto normal. Quatro animais gigantescos e exóticos saíram do mar (um leão, um urso, um leopardo e outro sem nome, que possuía dentes de ferro), figuras que os intérpretes atribuem aos grandes reinos que surgiram do ‘grande mar’ (o Mediterrâneo), inclusive o império romano, que seria a quarta fera inominada, E por fim, surgiu um Ancião de muitos dias (aqui começa o trecho da leitura de hoje) e dele aproximou-se um “filho de homem”, a quem foram dados o poder, a glória, a realeza, e todas as nações da terra serviram a ele. Interessante observar que Jesus Cristo, em diversas ocasiões, referiu-se a ele mesmo como “filho do homem”, numa explícita referência à figura criada pelo profeta Daniel. Esse reino, que lhe foi dado, completa o profeta, nunca se dissolverá. Nessa enigmática metáfora, reforçada com a utilização do conceito por Cristo, os exegetas interpretam o personagem “filho do homem”, da profecia de Daniel, como a prefiguração de Cristo, que trouxe ao mundo a mensagem do reino de Deus, que deveria alcançar todos os povos e seria triunfante no final dos tempos. Essa leitura se encaixa de modo pleno no fenômeno da transfiguração de Cristo, pela qual Jesus se mostrou luminoso e glorioso para os três apóstolos, e a sua autenticidade foi confirmada pela “voz” que se fez ouvir na ocasião, que bem pode ser atribuída ao “Ancião de muitos dias”, usando a mesma simbologia do profeta Daniel. No final deste capítulo 7, num trecho não incluído na leitura de hoje, o profeta Daniel confessa o quanto aquele “sonho” o deixou perturbado, mesmo depois de ter recebido as explicações do anjo. E declara: “ Aqui terminou o assunto. Quanto a mim, Daniel, os meus pensamentos muito me perturbaram, e mudou-se em mim o meu semblante; mas guardei o assunto no meu coração.” (Dn 7, 28) Deveras forte e impactante a palavra do Profeta que, segundo ele mesmo informa, escreveu isso logo após o término da visão, para que não esquecesse dos detalhes. É muito instrutiva a leitura inteira do cap 7 de Daniel, o que recomendo.

Na segunda leitura, lemos um trecho da segunda carta de Pedro, onde ele presta um eloquente testemunho acerca do que presenciou, juntamente aos outros dois apóstolos, do fato de extraordinária confiança com que Jesus os distinguiu. Por isso, ele diz que a sua pregação não está embasada em fábulas ou narrativas inventadas, mas no fato de que ele mesmo presenciou a demonstração inquestionável da divindade de Cristo. Diz ele: “Efetivamente, ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando do seio da esplêndida glória se fez ouvir aquela voz que dizia: ‘Este é o meu Filho bem-amado, no qual ponho o meu bem-querer’. Esta voz, nós a ouvimos, vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo.” (2Pd 1, 17) De acordo com a narração de Mateus, Jesus os proibiu de falar sobre o que tinham visto, até que ele ressuscitasse dos mortos. As epístolas de Pedro, diferentemente daquelas de Paulo, foram destinadas a comunidades de judeus convertidos e o objetivo de Pedro é exatamente convencer os judeus, que ainda relutavam em reconhecer a messianidade de Cristo, de que ele (Pedro) podia afirmar isso com plena certeza. A “voz” que veio da nuvem e testemunhada por Pedro é a mesma que também partiu da nuvem na ocasião em que Jesus recebeu o batismo da penitência, ministrado por João Batista, no Jordão, evento narrado por todos os evangelistas e que se constitui em um dos cinco principais fatos atestadores da divindade de Cristo (batismo, transfiguração, crucificação, ressurreição e ascensão).

Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos uma das narrações da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João, sendo esta a leitura selecionada pela liturgia de hoje. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João, como diz Mateus. Eu, particularmente, defendo esse entendimento.

A propósito desse conceito de “irmão do Senhor”, importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão” nas culturas antigas. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, não quer dizer apenas “irmão de sangue”, como habitualmente se entende, mas também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Prefiro acreditar que o Tiago do trio, que presenciou a configuração, poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.

Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas da região da Palestina, onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu em latim como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora europeia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” ficaria melhor “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.

Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, ao se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão específica e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus se colocava contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus dava provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas.

Para nós, a imagem do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.

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