COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – UM DIA ESPECIAL – 27.04.2014
Caros Confrades,
Neste segundo domingo da Páscoa (lembrar que não se diz domingo 'depois' da Páscoa), tivemos um dia especial na história do cristianismo: o domingo dos quatro Papas. Em outras épocas históricas, a Igreja já teve mais de um Papa, porém eram ilegítimos, mas no dia de hoje, por uma coincidência marcante, a festividade foi agraciada com dois Papas santos e dois Papas terrenos, um dia inédito em mais de dois milênios.
O segundo domingo da Páscoa havia sido denominado, por João Paulo II, como o Domingo da Misericórdia, criando assim a Festa da Divina Misericórdia. E o Papa Francisco, por privilegiada inspiração, escolheu esse dia para a ratificação da vida de santidade do próprio JP II e de João XXIII. Este segundo domingo possui uma milenar tradição na liturgia com o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na oitava da Páscoa, os que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade juntando-se aos outros irmãos da fé. Todos nós nos lembramos que, em todas as festas religiosas importantes, sempre se celebrava a “oitava”, mas a oitava da Páscoa sempre foi a mais solene, era quase como uma repetição da festa do domingo anterior. Até o vinho festivo, que aparecia no almoço dos dias de festa, voltava a aparecer nesse dia. Não haveria melhor dia para a cerimônia da canonização dos novos santos do que esta oitava da Páscoa.
Agora, nós já podemos dizer que conhecemos um santo que viveu no meio de nós, no sentido bem literal da palavra, pois JP II esteve aqui, foi visto por todos nós, alguns tiveram o privilégio de estar bem próximos dele, até de cumprimentá-lo e beijar-lhe a mão (eu não me incluo nesse seleto rol). Ele celebrou missas em Fortaleza. No Seminário da Prainha, ele celebrou uma missa particular só para os sacerdotes da Arquidiocese na capela interna e lá hoje existe uma placa de bronze narrando o fato e homenageando-o. “De longe vieste pra estar no nordeste, no meu Ceará...” diz aquela melodia cantada por Luiz Gonzaga, com versos do padre cearense Gotardo Lemos. Sem a menor dúvida, trata-se de um dia de intenso júbilo para todos nós, parece que o céu ficou mais próximo, quando nos lembramos que oficialmente foi reconhecida a chegada ali de São João Paulo II.
Não posso deixar de me reportar ao grande papa João XXIII, para mim, o mais memorável dos pontífices do século XX. Não diria que foi o maior, mas foi o mais corajoso, o mais inspirado, o mais santo, o discípulo mais fiel de Cristo. Em cinco anos como papa, um desconhecido Cardeal trouxe para a Igreja Católica as esperanças de uma nova igreja, que nós ainda estamos construindo. Apenas dois meses depois de eleito, ele conclamou toda a catolicidade para a realização do segundo Concilio do Vaticano, necessário para fazer o (como ele gostava de dizer) “aggiornamento” da Igreja Católica. O Espírito Santo se serviu da pessoa de um Cardeal humilde, sem grandes dotes intelectuais, sem grandes destaques sociais, mas de grande coragem e determinação, para iniciar a grande reconstrução da Igreja Católica, no século XX. O Monsenhor Manfredo, no sermão da missa de hoje, na Paróquia da Glória, narrou que estava na Praça de São Pedro naquele dia da eleição do João XXIII (outubro de 1958), quando uma multidão aguardava ansiosa pelo nome do novo Papa. “Habemus Papam”, avisara a fumaça branca que saía da chaminé da Capela Sistina, mas não se sabia ainda quem era o eleito. Quando o Carmelengo anunciou que o Papa era sua eminência Angelo Giuseppe Cardinale Roncalli, as pessoas se entreolharam e se perguntavam umas às outras: quem é este? Filho de um camponês de uma pequena cidade nas montanhas, era Cardeal em Veneza e não era conhecido pelo povo romano. Já tinha quase 78 anos de idade e sabia-se que ele não teria muito tempo de vida, seria uma espécie de papa “tampão”. Pois foi este que o divino Espírito escolheu para fazer a sua maior ação mobilizadora da religião católica, importante e necessária naqueles anos que se sucederam à segunda guerra mundial, quando o mundo todo havia mudado e as autoridades religiosas ainda não haviam percebido isso. É o Papa que eu mais admiro e a quem rogo, agora com o seu reconhecimento oficial na corte celeste, sua perene inspiração para os nossos prelados, bispos, sacerdotes e dirigentes religiosos, para que todos compreendam o que é ser cristão e católico na sociedade dos tempos confusos da nossa era.
Passando agora às leituras deste domingo, temos na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), a narração do modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo foi-se infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi o que o Seráfico Patriarca Francisco (o original) colocou na sua regra, no século XIII, a regra da pobreza, porque então já não se praticava isso entre os cristãos. E o próprio Papa da época (Inocêncio III) duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... que ironia... como se não estivesse de acordo com o evangelho. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como constante desafio para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.
Na leitura do evangelho (Jo 20, 19-31), repete-se o episódio da incredulidade de Tomé, um dos textos mais conhecidos e mais utilizados na catequese desde os primeiros tempos cristãos, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, tomando o exemplo de Tomé com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos que creem sem ter visto. Esta história da dúvida de Tomé é narrada apenas no evangelho de João. Lucas (24, 13-43) narra o diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús e, em seguida, a aparição d'Ele aos apóstolos todos, mas não se refere a Tomé. A narrativa de João é plenamente fidedigna, porque ele estava presente, diferentemente dos outros evangelistas, que souberam por outras fontes. Talvez o fato até fosse do conhecimento deles também, porém João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecendo os textos dos outros autores. Isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros haviam omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava aos cristãos do seu tempo. Daí é que se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos.
Um outro detalhe que se percebe na narrativa joanina e a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. É interessante essa tradução “primeiro dia da semana” que consta no texto em português, se compararmos com o texto latino de S. Jerônimo. Ele diz assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como estivesse tarde naquele dia, um depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. O sábado era o dia mais importante, porque ainda prevalecia a tradição judaica. E para os judeus, o dia termina com o por do sol, quando se inicia o dia seguinte. Ou seja, tarde da noite de sábado já era a “primeira feira” (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, só bastante tempo depois, os cristãos começaram a perceber essa preferência de Jesus pelo “dia depois do sábado” e passaram a transferir o dia do repouso (sabático) para o dia da glorificação de Cristo, por sua ressurreição e por suas sucessivas aparições aos discípulos no dia seguinte ao sábado. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.
Meus amigos, neste dia privilegiado dos quatro Papas e da oitava da Páscoa, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.
domingo, 27 de abril de 2014
domingo, 20 de abril de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 20.04.2014 - DIA DO SENHOR
COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 20.04.2014 – DIA DO SENHOR
Caros Confrades,
O ciclo periódico do ano litúrgico nos traz, mais uma vez, a celebração a festa da Páscoa. Foi num domingo de páscoa, há três anos, que iniciei a escritura desses comentários, pelos quais tenho tido a oportunidade de rever alguns conceitos bíblico-teológicos estudados no curso de teologia e também de aprender mais, através das leituras e pesquisas que faço, ao partilhar com vocês essas idéias. Agradeço a todos os que me honram com sua leitura, alguns me remetem opiniões animadoras, outros nada dizem mas espero que obtenham algum proveito do que leem. Ao reler sobre assuntos estudados por mim anos atrás, talvez o maior beneficiado seja eu mesmo, pela oportunidade que tenho de meditar e aprofundar os ensinamentos. Nesse contexto, animei-me a realizar um projeto antigo, que era estudar a língua hebraica, o que tem me trazido importantes informações, as quais também partilho aqui com vocês, porque são importantes para o conhecimento de todos os crentes em Deus, todos os cristãos e, em especial, os seguidores da fé católica. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, o que se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, mas é sempre oportuno refletirmos sobre o que significa verdadeiramente a Páscoa, para além dessas repetidas saudações.
Na tradição do catolicismo brasileiro, impera um misticismo muito forte em torno da paixão de Cristo, pelo Brasil afora, sabe-se de incontáveis encenações dos fatos relacionados com os eventos finais da missão histórica de Cristo, alguns mais e outros menos divulgados, mas sempre com aquela mesma receita emotiva, de modo a despertar pena de Jesus e ódio dos judeus. Num comentário que fiz há poucos dias, procurei apresentar uma versão menos convencional dos fatos relacionados com a “traição” de Judas, outro personagem que se tornou folclórico na mente do nosso povo, com a queima do boneco de pano. Essas práticas empanam o verdadeiro sentido da festa pascal, que é a comemoração da ressurreição de Cristo. Daí ser mais comum haver maior número de pessoas na cerimônia da sexta feira santa do que na vigília pascal. Certamente, ainda levará um tempo considerável para que uma nova catequese seja empreendida e se faça uma releitura dos sublimes acontecimentos rememorados na festa litúrgica do Tríduo Pascal. Por isso, decidi colocar o título deste comentário como “Dia do Senhor” ou “dies dominica”, na nomeclatura latina. Foi a partir da consciência da importância da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, que as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia domínico. Essa mudança caracteriza também a tradição do antigo testamento para o novo testamento. Isso, porém, não aconteceu de imediato, mas foi necessário um tempo de amadurecimento e de evolução da compreensão teológica desses fatos para que, finalmente, a mudança fosse operacionalizada, por volta do século IV. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).
Nesses concílios, foi debatida a questão do cálculo da data da páscoa, para que não coincidisse com a páscoa judaica, considerando que os judeus não aceitavam Jesus como Filho de Deus e Salvador. As igrejas orientais (Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Cairo) tinham maior aproximação com as comunidades judaicas e não queriam celebrar a festa da páscoa do mesmo dia, daí decidiram que seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Mas essa contagem não é assim tão simples e foi sempre ponto de discórdia entre a igreja romana e as igrejas orientais, que ainda hoje celebram a páscoa em datas diferenciadas. Isso sem deixar de mencionar também as discordâncias de outras denominações cristãs, que igualmente divergem das definições do catolicismo romano acerca da definição da data da celebração da páscoa. E visto que o fenômeno geográfico referencial para o seu cálculo é a fase da lua, a data da páscoa continua, nos dias de hoje, seguindo o calendário lunar, gerando incompatibilidade com a sequência das demais datas, que se orientam pelo calendário solar. Daí porque, a cada ano, o dia da páscoa sofre grande variação, sendo necessária, por via de consequência, uma sistemática de arranjamento das demais festividades, para que tudo se encaixe de forma harmoniosa. Contudo, mesmo não havendo coincidência de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.
Com efeito, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estáveis em determinados locais, onde passaram a plantar e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério norte, corresponde à primavera e coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após o frio do inverno, começando a produzir os primeiros frutos da terra, passou a ser festejado como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.
A páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia européia, pois naquela época as terras do lado sul terrestre não eram conhecidas). Como podem verificar, nós celebramos a páscoa européia, a páscoa do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos geográficos no nosso hemisfério, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos fazer a mesma questão que os orientais fizeram acerca da definição da data da páscoa? Haveria um sério risco à unidade do catolicismo. Pois bem, mas isso de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo. Propositalmente, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Após a ressurreição de Cristo, a páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas, da vida natural, da cultura humana, assumindo uma dimensão especial na economia da salvação, usando uma terminologia bem característica dos compêndios de teologia. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.
As primeiras comunidades cristãs não perceberam isso logo e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, essa devia ser a nova referência para as festividades pascais.
Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além,portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.
Caros Confrades,
O ciclo periódico do ano litúrgico nos traz, mais uma vez, a celebração a festa da Páscoa. Foi num domingo de páscoa, há três anos, que iniciei a escritura desses comentários, pelos quais tenho tido a oportunidade de rever alguns conceitos bíblico-teológicos estudados no curso de teologia e também de aprender mais, através das leituras e pesquisas que faço, ao partilhar com vocês essas idéias. Agradeço a todos os que me honram com sua leitura, alguns me remetem opiniões animadoras, outros nada dizem mas espero que obtenham algum proveito do que leem. Ao reler sobre assuntos estudados por mim anos atrás, talvez o maior beneficiado seja eu mesmo, pela oportunidade que tenho de meditar e aprofundar os ensinamentos. Nesse contexto, animei-me a realizar um projeto antigo, que era estudar a língua hebraica, o que tem me trazido importantes informações, as quais também partilho aqui com vocês, porque são importantes para o conhecimento de todos os crentes em Deus, todos os cristãos e, em especial, os seguidores da fé católica. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, o que se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, mas é sempre oportuno refletirmos sobre o que significa verdadeiramente a Páscoa, para além dessas repetidas saudações.
Na tradição do catolicismo brasileiro, impera um misticismo muito forte em torno da paixão de Cristo, pelo Brasil afora, sabe-se de incontáveis encenações dos fatos relacionados com os eventos finais da missão histórica de Cristo, alguns mais e outros menos divulgados, mas sempre com aquela mesma receita emotiva, de modo a despertar pena de Jesus e ódio dos judeus. Num comentário que fiz há poucos dias, procurei apresentar uma versão menos convencional dos fatos relacionados com a “traição” de Judas, outro personagem que se tornou folclórico na mente do nosso povo, com a queima do boneco de pano. Essas práticas empanam o verdadeiro sentido da festa pascal, que é a comemoração da ressurreição de Cristo. Daí ser mais comum haver maior número de pessoas na cerimônia da sexta feira santa do que na vigília pascal. Certamente, ainda levará um tempo considerável para que uma nova catequese seja empreendida e se faça uma releitura dos sublimes acontecimentos rememorados na festa litúrgica do Tríduo Pascal. Por isso, decidi colocar o título deste comentário como “Dia do Senhor” ou “dies dominica”, na nomeclatura latina. Foi a partir da consciência da importância da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, que as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia domínico. Essa mudança caracteriza também a tradição do antigo testamento para o novo testamento. Isso, porém, não aconteceu de imediato, mas foi necessário um tempo de amadurecimento e de evolução da compreensão teológica desses fatos para que, finalmente, a mudança fosse operacionalizada, por volta do século IV. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).
Nesses concílios, foi debatida a questão do cálculo da data da páscoa, para que não coincidisse com a páscoa judaica, considerando que os judeus não aceitavam Jesus como Filho de Deus e Salvador. As igrejas orientais (Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Cairo) tinham maior aproximação com as comunidades judaicas e não queriam celebrar a festa da páscoa do mesmo dia, daí decidiram que seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Mas essa contagem não é assim tão simples e foi sempre ponto de discórdia entre a igreja romana e as igrejas orientais, que ainda hoje celebram a páscoa em datas diferenciadas. Isso sem deixar de mencionar também as discordâncias de outras denominações cristãs, que igualmente divergem das definições do catolicismo romano acerca da definição da data da celebração da páscoa. E visto que o fenômeno geográfico referencial para o seu cálculo é a fase da lua, a data da páscoa continua, nos dias de hoje, seguindo o calendário lunar, gerando incompatibilidade com a sequência das demais datas, que se orientam pelo calendário solar. Daí porque, a cada ano, o dia da páscoa sofre grande variação, sendo necessária, por via de consequência, uma sistemática de arranjamento das demais festividades, para que tudo se encaixe de forma harmoniosa. Contudo, mesmo não havendo coincidência de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.
Com efeito, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estáveis em determinados locais, onde passaram a plantar e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério norte, corresponde à primavera e coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após o frio do inverno, começando a produzir os primeiros frutos da terra, passou a ser festejado como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.
A páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia européia, pois naquela época as terras do lado sul terrestre não eram conhecidas). Como podem verificar, nós celebramos a páscoa européia, a páscoa do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos geográficos no nosso hemisfério, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos fazer a mesma questão que os orientais fizeram acerca da definição da data da páscoa? Haveria um sério risco à unidade do catolicismo. Pois bem, mas isso de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo. Propositalmente, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Após a ressurreição de Cristo, a páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas, da vida natural, da cultura humana, assumindo uma dimensão especial na economia da salvação, usando uma terminologia bem característica dos compêndios de teologia. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.
As primeiras comunidades cristãs não perceberam isso logo e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, essa devia ser a nova referência para as festividades pascais.
Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além,portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.
domingo, 13 de abril de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS - 30 MOEDAS - 13.04.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS – 30 MOEDAS - 13.04.2014
Caros Confrades,
O ciclo litúrgico nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. A celebração desta é antecedida pelo Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santos) e estes são antecedidos pelo Domingo de Ramos, festejado nesta data. Conforme já tive oportunidade de referir-me em outras vezes, precisamos ir além da tradição que recebemos, na qual a memória da Paixão do Senhor se coloca acima da memória da Páscoa do Senhor. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça é na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. É óbvio que ele teve de passar pelo sofrimento extremo e pela morte, isso não foi pouca coisa, mas tudo isso só faz sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).
Conforme alguns Colegas já sabem, eu estou participando de um curso sobre hebraico bíblico e no decorrer do curso, tomamos conhecimento também dos costumes judaicos. O curioso é que os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Quando o evangelho de Mateus, lido hoje, diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (26, 17), lembrei que, na semana passada, a professora falou que estavam nesse período, que são os dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Outra curiosidade que ela informou foi a seguinte: ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo nesse período, apenas o pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Ela disse que a preparação da massa deve demorar, no máximo, 18 segundos, pois a partir daí já começa a fermentar e já não pode mais ser usada. Fez-me lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição. Felizmente, já superamos essa “burocracia” ritual.
Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Lembrei agora de uma matéria que li, faz poucos dias, sobre Santa Gemma Galgani, uma santa italiana que conversava com Jesus. Ela perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano. Os agentes operadores dessa façanha foram os sumos sacerdotes judaicos e Judas, cognominado de Iscariotes, para diferenciar do outro, o Tadeu. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, o traidor; os judeus, os pérfidos judeus, como dizia a antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela vetusta tradição que nos martelou a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, eu escolhi o tema das 30 moedas, para falar um pouco sobre esse personagem sombrio na tradição, Judas Iscariotes, aquele que é enforcado e queimado, não sem antes ser perseguido, escondido, procurado... quem não lembra da noite da procura do Judas, na qual ninguém dormia.
Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só o impacto que isso causa sobre a cultura tradicional: o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que é ISH SICARI, em que sicari significa punhal e deu origem ao nome sicário, assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação se refere a um grupo de terroristas judeus que existia dentro de um partido político chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam aquela região do oriente médio e faziam tramas contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes, que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação documental, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos. Eram como um certo “partido” que, antes de galgar o poder, também pregava a liberdade e a igualdade social. Enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que poderia ter apoio popular para isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.
Não podemos esquecer que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que tinha mais conversas com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse um de nós, poderíamos dizer que ele estava sendo enganado. Mas Jesus, sendo Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse.
A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi criada pelos outros onze, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas, sem exceção, tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria mesmo era justificar a história das 30 moedas. Nenhum dos demais evangelistas fala nas 30 moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Somente Mateus fala no arrependimento de Judas e na devolução do dinheiro, com o qual os sacerdotes compraram um campo que serviria de cemitério para os estrangeiros. Aqui podemos encontrar uma outra inconsistência nessa história das moedas inserida no texto por Mateus, além da troca dos nomes dos profetas, que é a seguinte. Segundo os historiadores, naquela época, as 30 moedas corresponderiam ao preço de um escravo. Então, podemos questionar se com o preço de um escravo seria possível adquirir um terreno suficientemente grande para servir como um cemitério? Penso que não. Mas o objetivo de Mateus era mostrar que havia se cumprido a predição do profeta, não estava ele preocupado com valores monetários.
Portanto, observamos que nenhum dos evangelistas considerou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Jesus até fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para incluir o detalhe das 30 moedas, como forma de justificar a sua fama de avaro. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos romanos onde Ele estava. Não quero, com isso, dizer que esta seja a dimensão mais fiel dos acontecimentos, pois esse evangelho apócrifo foi descoberto recentemente e ainda precisa ser melhor estudado. O objetivo dessas referências é apenas trazer subsídios para uma nova reflexão da pessoa e da função de Judas, fora da tradição que o difama e o abomina.
Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos..
Caros Confrades,
O ciclo litúrgico nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. A celebração desta é antecedida pelo Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santos) e estes são antecedidos pelo Domingo de Ramos, festejado nesta data. Conforme já tive oportunidade de referir-me em outras vezes, precisamos ir além da tradição que recebemos, na qual a memória da Paixão do Senhor se coloca acima da memória da Páscoa do Senhor. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça é na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. É óbvio que ele teve de passar pelo sofrimento extremo e pela morte, isso não foi pouca coisa, mas tudo isso só faz sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).
Conforme alguns Colegas já sabem, eu estou participando de um curso sobre hebraico bíblico e no decorrer do curso, tomamos conhecimento também dos costumes judaicos. O curioso é que os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Quando o evangelho de Mateus, lido hoje, diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (26, 17), lembrei que, na semana passada, a professora falou que estavam nesse período, que são os dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Outra curiosidade que ela informou foi a seguinte: ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo nesse período, apenas o pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Ela disse que a preparação da massa deve demorar, no máximo, 18 segundos, pois a partir daí já começa a fermentar e já não pode mais ser usada. Fez-me lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição. Felizmente, já superamos essa “burocracia” ritual.
Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Lembrei agora de uma matéria que li, faz poucos dias, sobre Santa Gemma Galgani, uma santa italiana que conversava com Jesus. Ela perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano. Os agentes operadores dessa façanha foram os sumos sacerdotes judaicos e Judas, cognominado de Iscariotes, para diferenciar do outro, o Tadeu. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, o traidor; os judeus, os pérfidos judeus, como dizia a antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela vetusta tradição que nos martelou a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, eu escolhi o tema das 30 moedas, para falar um pouco sobre esse personagem sombrio na tradição, Judas Iscariotes, aquele que é enforcado e queimado, não sem antes ser perseguido, escondido, procurado... quem não lembra da noite da procura do Judas, na qual ninguém dormia.
Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só o impacto que isso causa sobre a cultura tradicional: o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que é ISH SICARI, em que sicari significa punhal e deu origem ao nome sicário, assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação se refere a um grupo de terroristas judeus que existia dentro de um partido político chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam aquela região do oriente médio e faziam tramas contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes, que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação documental, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos. Eram como um certo “partido” que, antes de galgar o poder, também pregava a liberdade e a igualdade social. Enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que poderia ter apoio popular para isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.
Não podemos esquecer que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que tinha mais conversas com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse um de nós, poderíamos dizer que ele estava sendo enganado. Mas Jesus, sendo Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse.
A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi criada pelos outros onze, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas, sem exceção, tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria mesmo era justificar a história das 30 moedas. Nenhum dos demais evangelistas fala nas 30 moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Somente Mateus fala no arrependimento de Judas e na devolução do dinheiro, com o qual os sacerdotes compraram um campo que serviria de cemitério para os estrangeiros. Aqui podemos encontrar uma outra inconsistência nessa história das moedas inserida no texto por Mateus, além da troca dos nomes dos profetas, que é a seguinte. Segundo os historiadores, naquela época, as 30 moedas corresponderiam ao preço de um escravo. Então, podemos questionar se com o preço de um escravo seria possível adquirir um terreno suficientemente grande para servir como um cemitério? Penso que não. Mas o objetivo de Mateus era mostrar que havia se cumprido a predição do profeta, não estava ele preocupado com valores monetários.
Portanto, observamos que nenhum dos evangelistas considerou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Jesus até fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para incluir o detalhe das 30 moedas, como forma de justificar a sua fama de avaro. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos romanos onde Ele estava. Não quero, com isso, dizer que esta seja a dimensão mais fiel dos acontecimentos, pois esse evangelho apócrifo foi descoberto recentemente e ainda precisa ser melhor estudado. O objetivo dessas referências é apenas trazer subsídios para uma nova reflexão da pessoa e da função de Judas, fora da tradição que o difama e o abomina.
Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos..
domingo, 6 de abril de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - E JESUS CHOROU - 06.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – E JESUS CHOROU – 06.04.2014
Caros Confrades,
Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Mas, dentro dessa temática da ressurreição de Lázaro, eu escolhi tratar um subtema, que mostra o lado humano e emocional de Jesus: o choro diante do túmulo do amigo.
Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder, por exemplo, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), sendo o evento mais comentado a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.
Na segunda leitura, aos cristãos Romanos (8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas já estão preparando os cristãos para a vivência dos mistérios da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência a enxergar em primeiro plano o aspecto do sofrimento, da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.
No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos dos evangelhos dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judéia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com receio da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E sobre tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, ressaltando a humanidade de Jesus, quando diz por duas vezes que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, isso foi até motivo de discussão durante a Idade Média por parte de alguns teólogos radicais que afirmavam que o riso e dança são contrários ao cristianismo, porque Jesus nunca teria feito nada disso.
O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão inconteste que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus, quando ele mandou afastar a pedra da entrada da sepultura: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu.
Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Pois bem, por que estou eu insistindo nisso? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, chamada de arianismo, divulgada pelo bispo Ario. A questão era colocada nesses termos: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Cristo seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um semideus, um demiurgo, uma pessoa especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos a admitiam com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.
Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência, idêntica essência à do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Nicéia, em 325, quando foi elaborado o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.
Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. O caso mais recente é o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.
Caros Confrades,
Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Mas, dentro dessa temática da ressurreição de Lázaro, eu escolhi tratar um subtema, que mostra o lado humano e emocional de Jesus: o choro diante do túmulo do amigo.
Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder, por exemplo, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), sendo o evento mais comentado a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.
Na segunda leitura, aos cristãos Romanos (8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas já estão preparando os cristãos para a vivência dos mistérios da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência a enxergar em primeiro plano o aspecto do sofrimento, da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.
No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos dos evangelhos dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judéia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com receio da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E sobre tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, ressaltando a humanidade de Jesus, quando diz por duas vezes que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, isso foi até motivo de discussão durante a Idade Média por parte de alguns teólogos radicais que afirmavam que o riso e dança são contrários ao cristianismo, porque Jesus nunca teria feito nada disso.
O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão inconteste que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus, quando ele mandou afastar a pedra da entrada da sepultura: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu.
Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Pois bem, por que estou eu insistindo nisso? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, chamada de arianismo, divulgada pelo bispo Ario. A questão era colocada nesses termos: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Cristo seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um semideus, um demiurgo, uma pessoa especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos a admitiam com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.
Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência, idêntica essência à do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Nicéia, em 325, quando foi elaborado o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.
Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. O caso mais recente é o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.
domingo, 30 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - A CURA DO CEGO - 30.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – A CURA DO CEGO – 30.03.2014
Caros Confrades,
Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia traz um outro tema relacionado com a água, assim como foi no domingo passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado da sua deficiência. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.
Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Como já tivemos oportunidade de comentar em outras ocasiões, a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do antigo povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos novéis convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.
Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar. Tratando-se, conforme já anunciamos, de um texto destinado à catequese dos novos cristãos, João descreve o episódio com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.
Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.
Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judeus e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.
Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim... E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34) Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.
Caros Confrades,
Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia traz um outro tema relacionado com a água, assim como foi no domingo passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado da sua deficiência. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.
Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Como já tivemos oportunidade de comentar em outras ocasiões, a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do antigo povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos novéis convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.
Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar. Tratando-se, conforme já anunciamos, de um texto destinado à catequese dos novos cristãos, João descreve o episódio com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.
Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.
Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judeus e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.
Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim... E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34) Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.
domingo, 23 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - A ÁGUA VIVA DO BATISMO - 23.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – A ÁGUA VIVA DO BATISMO– 23.03.2014
Caros Confrades,
Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas em Massa e Meriba, quando a água faltou, e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa pela água viva, que não deixa mais sentir sede. É também um dos raros textos evangélicos nos quais uma mulher exerce um papel de destaque, pois através daquela samaritana, todo o povo da sua cidade acreditou em Jesus.
Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) e Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Depois de alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu benefício e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece de algo não correr do modo como queremos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.
Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque na dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fê-lo incluir no salmo, que também se recita neste domingo: “Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.
Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, ele narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa unicamente joanina não consta nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado de boca em boca inúmeras vezes.
Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande animosidade entre eles. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura mostrar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que, naquela ocasião, muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.
Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação com os samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma mulher samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.
Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana desconfiou disso. Foi quando Jesus se identificou: sou eu. Mas nesse momento, os discípulos se aproximaram e o diálogo terminou.
Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. Ao meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.
Caros Confrades,
Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas em Massa e Meriba, quando a água faltou, e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa pela água viva, que não deixa mais sentir sede. É também um dos raros textos evangélicos nos quais uma mulher exerce um papel de destaque, pois através daquela samaritana, todo o povo da sua cidade acreditou em Jesus.
Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) e Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Depois de alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu benefício e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece de algo não correr do modo como queremos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.
Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque na dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fê-lo incluir no salmo, que também se recita neste domingo: “Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.
Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, ele narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa unicamente joanina não consta nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado de boca em boca inúmeras vezes.
Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande animosidade entre eles. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura mostrar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que, naquela ocasião, muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.
Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação com os samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma mulher samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.
Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana desconfiou disso. Foi quando Jesus se identificou: sou eu. Mas nesse momento, os discípulos se aproximaram e o diálogo terminou.
Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. Ao meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.
domingo, 16 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A LEI E OS PROFETAS - 16.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 16.03.2014
Caros Confrades,
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra e a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho compõem o quadro leitural do domingo.
Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os recentes estudos de hebraico bíblico que estou fazendo, o nome do livro que nós chamamos Gênesis lá se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a idéia de criação. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.
O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldéia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também servem para explicar ao povo hebreu o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. Os judeus continuam espalhados pelo mundo. Além deles, ainda temos em nossos dias o exemplo dos ciganos, que são também originários dali e se transferiram para a Europa, mas continuam a perambular sem um destino de fixação.
Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado a Timóteo essa árdua missão. Na ocasião, Timóteo enfrentava os judeus adversários de Paulo e do cristianismo naquela região grega muito povoada e também muito próspera, pelo comércio. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta a ele dirigida, exorta Timóteo a perseverar na fé assim como ele, Paulo, que também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.
Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.
Importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão”. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei aqui em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.
Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas daquela região geográfica onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora européia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” deveria ser “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.
Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas. E Jesus os recomendou fortemente que nada contassem sobre o que tinham visto, isso seria impossível de controlar em um grupo mais numeroso de assistentes.
Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.
Caros Confrades,
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra e a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho compõem o quadro leitural do domingo.
Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os recentes estudos de hebraico bíblico que estou fazendo, o nome do livro que nós chamamos Gênesis lá se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a idéia de criação. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.
O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldéia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também servem para explicar ao povo hebreu o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. Os judeus continuam espalhados pelo mundo. Além deles, ainda temos em nossos dias o exemplo dos ciganos, que são também originários dali e se transferiram para a Europa, mas continuam a perambular sem um destino de fixação.
Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado a Timóteo essa árdua missão. Na ocasião, Timóteo enfrentava os judeus adversários de Paulo e do cristianismo naquela região grega muito povoada e também muito próspera, pelo comércio. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta a ele dirigida, exorta Timóteo a perseverar na fé assim como ele, Paulo, que também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.
Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.
Importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão”. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei aqui em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.
Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas daquela região geográfica onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora européia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” deveria ser “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.
Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas. E Jesus os recomendou fortemente que nada contassem sobre o que tinham visto, isso seria impossível de controlar em um grupo mais numeroso de assistentes.
Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.
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