domingo, 23 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - ORAÇÃO E HUMILDADE - 23.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – ORAÇÃO E HUMILDADE – 23.10.2016

Caros Leitores,

As leituras da liturgia deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a atitude interior que devemos ter, quando oramos. A oração supõe sempre uma confissão de impotência e um sentimento de humildade. A oração do humilde atravessa as nuvens e não passará despercebida pelo Senhor. Ele é um justo juiz, que consegue sondar os nossos sentimentos mais profundos e é inútil tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência com palavreados sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com os lábios, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo que tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.

Na primeira leitura, extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para lembrar aos hebreus, numa época de mudanças sócio políticas, a fidelidade de Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.” (Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também neste domingo.

A segunda leitura, dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo comenta que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta, quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores, esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo, pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição, os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo, tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes riscos que isso acarretava.

Na leitura do evangelho deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos, nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é clássica: o fariseu orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desdém para o publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano, em atitude de humildade, rezava apenas pedindo perdão. Como em diversas outras ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu para nos ensinar que as ações exteriores não bastam, mas é necessário que essas sejam o reflexo do nosso sentir interior. Os fariseus se consideravam justos e automaticamente salvos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”), mas faziam assim apenas para serem vistos e elogiados pelos outros, isso não correspondia a um sentimento íntimo de piedade e de convicção. Por isso, tal oração não tinha nenhum valor.

Observemos que Jesus não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si próprio, ou seja, na sua falta de humildade. O livro do Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça, não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa justificado; o fariseu, não.

Podemos fazer aqui uma ligação com outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da oferta, mas no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar, por isso, merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não na justiça divina.

Meus amigos, nesse contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta. Essa atitude do fariseu, reprovada por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, quando cumprimos nossos deveres religiosos apenas por obrigação e sem refletir sobre o significado eclesial de nossas atitudes, sobretudo quando tais atos são acompanhados do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. Se eu vou à missa dominical e recebo os sacramentos, mas na vida social não pratico a caridade com os irmãos, meus atos religiosos são vazios de significado. A parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça pessoal, deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.

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domingo, 16 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - ORAR SEMPRE - 16.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM –ORAR SEMPRE – 16.10.2016

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas enfocam o tema da oração perseverante. Orar e orar sempre é o ensinamento de Cristo. No domingo passado, comentamos sobre a importância do agradecimento. Neste domingo, a liturgia fala da importância do pedido em forma de oração, lembrando-nos de que devemos orar sempre e sem cessar. Tal como Jesus ensinou no “Pai Nosso”, na oração devemos, em primeiro lugar, louvar e agradecer, em seguida, formular os nossos pedidos.

É bem verdade que o Pai do céu sabe das nossas necessidades, então, vem a pergunta: por que devemos pedir-lhe algo, que ele já sabe que nos falta? Qual o pai que não está sempre pronto para atender às carências dos seus filhos, mesmo sem que eles peçam? Sendo assim, porque Jesus ensina que o Pai do céu quer que sempre peçamos e de forma insistente? Pode parecer uma incoerência no ensinamento de Jesus, mas a verdade é que, embora Ele saiba das nossas necessidades, Deus quer a nossa colaboração, para que sejamos merecedores. Quando Jesus diz “orai sempre, orai sem cessar”, isso não significa ficar o dia todo de joelhos, com o terço na mão ou com um livro devocional, recitando coleções de preces das mais diversas espécies seguindo formulários já prontos, mas sim que a nossa vida toda deve ser uma oração. Nós estamos orando não apenas quando pronunciamos palavras ou quando as temos no pensamento, mas a nossa oração se expande para as nossas atividades rotineiras, quando através do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos, estamos manifestando aos irmãos elementos concretos da nossa fé, pelo nosso testemunho de vida do evangelho. Esta é a colaboração que Deus espera de nós. Podemos ver isso nos textos litúrgicos deste domingo.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 8-13), lemos o episódio da batalha dos hebreus com os amalecitas, contando com a participação ativa de Moisés, à distância. Enquanto as tropas lutavam, as mãos de Moisés erguidas para o céu carreavam a vitória para os israelitas; quando Moisés abaixava os braços, os amalecitas levavam vantagem. Contudo, pela idade e pelo longo tempo naquela posição, Moisés não conseguia manter os braços levantados e isso punha em risco o resultado da batalha. Então, seus auxiliares Ur e Aarão apoiaram os braços de Moisés, para que ele conseguisse mantê-los erguidos até a vitória final dos israelitas. Excluindo desse episódio o seu conteúdo violento da batalha, podemos descobrir no ato de Moisés levantar os braços uma atitude de oração, que deve ser contínua e persistente. Abaixar os braços significa fraquejar na oração, o que acontece, muitas vezes, na nossa vida de pessoas imperfeitas. Daí a necessidade que Moisés teve de ser ajudado por seus assessores. Isso significa a necessidade que nós temos de buscar apoio e solidariedade na comunidade dos irmãos. O Papa Francisco, no sermão de hoje aos peregrinos em Roma, chamou a atenção para a importância da oração compartilhada. A oração solitária tem seu valor, sem dúvida, mas para ele ser mais fortalecida, precisa de ser realizada com a comunidade. Daí a importância da liturgia, da oração comunitária, da missa, das atividades devocionais realizadas no templo. Nos momentos desta oração eclesial, os nossos braços simbólicos erguidos ao céu, tais como os de Moisés, são ajudados pela comunidade, para que as nossas forças sejam multiplicadas. Nesses momentos, ocorre uma colaboração recíproca: ao mesmo tempo em que os irmãos nos ajudam a manter os “braços erguidos”, cada um de nós também ajuda o outro no mesmo sentido. Sem deixar de reconhecer a importância da oração individual, interior, devemos também reconhecer a importância da oração comunitária, como forma de exercer uma troca recíproca de energias e um ressoar mais forte do nosso brado orante.

Na segunda leitura, prosseguindo com o texto da 2a carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida já há vários domingos, temos hoje o trecho em que o Apóstolo adverte o seu discípulo sobre a leitura orante da Sagrada Escritura: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça.” (2Tim 3, 16) A oração da comunidade sempre deve ter como ponto de referência a Escritura, pois é dela que retiramos os conteúdos mais próprios para compor a nossa oração e os ensinamentos mais eficazes para se transformarem em ações na nossa vida cotidiana. É esse o sentido da liturgia da palavra, que compõe a primeira parte da celebração da missa. Além disso, a Palavra também tem o dom de aconselhar diante de situações problemáticas da vida e de repreender o nosso comportamento, quando ele se distancia daquilo que Deus quer de nós. Por isso, Paulo exorta a Timóteo: “eu te peço com insistência – proclama a palavra” (4,1), insiste, admoesta quer agrade, quer desagrade, usando de toda paciência e doutrina. As Sagradas Escrituras “têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tim 3, 15) Mais do que simplesmente ler a Bíblia, deve-se meditar a Bíblia, compreender a Bíblia, esta é a oração mais produtiva para o direcionamento das nossas práticas cristãs. Eu diria que a leitura do Novo Testamento deve ser preferida, dado o seu conteúdo cristológico mais explícito.

Na leitura do evangelho de Lucas (18, 1-8), Jesus recorre à sua conhecida pedagogia das parábolas para explanar de forma bem didática a sua doutrina sobre a oração. O próprio evangelista diz que o objetivo desta parábola é demonstrar a necessidade de orar sempre e nunca esmorecer. Mas antes de adentrar nesse conteúdo, eu gostaria de destacar a figura do juiz injusto, uma contradição em si mesma. Todos sabemos que o objetivo da função do juiz é distribuir a justiça. Assim pensando, um juiz injusto seria um antijuiz. Dentro das tribulações de cada dia, é bem possível que um juiz cometa injustiças, mas certamente isso não seria intencional, ao menos, não se espera isso de nenhum juiz. Pois bem, mas prescindindo do ofício de julgar típico da sociedade organizada, podemos também considerar que nós, que não somos juízes por profissão, por vezes nos tornamos juízes das ações dos nossos irmãos, quando avaliamos e tiramos conclusões sobre o comportamento das pessoas e podemos até ofendê-las com a falta de equilíbrio nos nossos julgamentos. Se para um juiz profissional a prática de atos injustos acarreta uma autocontradição, assim também para nós, quando nos tornamos juízes inescrupulosos das atitudes do nosso próximo, estamos contradizendo o significado mais profundo da fraternidade, que deve ser a marca registrada do cristão.

Passando agora ao tema da oração sem cessar, através da parábola do juiz injusto, Jesus nos ensina que devemos orar sempre e nunca perder a confiança. A viúva retratada na parábola insistiu por muito tempo com o juiz ímprobo, pedindo que ele lhe fizesse justiça. Por fim, o juiz resolveu atendê-la, ainda que não pelo seu amor à justiça, mas ao menos para livrar-se da importunação. Daí, Jesus conclui: se até um juiz injusto, diante da insistência de uma viúva, acaba por atendê-la, quanto mais o vosso Pai do céu, que é sempre justo, nunca deixará de atender os pedidos dos seus filhos. Ou seja, Jesus destaca nesse contexto o poder da oração para fazer acontecer na nossa vida aquilo do que nós realmente necessitamos. Isso não quer dizer que devamos todos os dias pedir a Deus para acertar sozinho na mega sena, até que um dia Deus vai atender, nem que seja para se livrar da importunação. Não se trata disso, claro. O que devemos pedir na oração é para sermos pessoas melhores, para conseguirmos superar as nossas fraquezas e imperfeições, para sermos sempre fiéis à nossa vocação de cristãos. A oração de quem simplesmente pede a Deus que lhe conceda bens materiais não se enquadra no conceito de orar sempre, que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Para conseguir obter bens materiais o que é preciso é ter disposição para trabalhar com afinco e dedicação na sua labuta profissional e, aí sim, vamos pedir a Deus que abençoe o nosso trabalho, para que os seus frutos sejam férteis e se multipliquem.

Uma prática devocional que é muito corriqueira no meio do nosso povo é “fazer promessas” aos santos para obter isso e aquilo. É uma espécie de “comércio” sagrado: dá-me isso que eu te darei aquilo. Certamente, não é esse o modelo de oração que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Tal como no caso de Moisés com os braços elevados ou no caso da viúva que insistia perante o juiz, o que Deus espera de nós é que façamos a nossa parte. Não se trata de desafiar Deus com uma promessa, pois Deus não precisa de nenhum favor nosso, ao contrário, nós é que precisamos dos favores divinos. Não se trata de fazer o pedido e ficar com os braços cruzados, esperando que um milagre aconteça simplesmente. O milagre vai acontecer se nós fizermos a nossa parte com fé, seriedade, sinceridade e persistência. O milagre vai acontecer na proporção do tamanho da nossa fé, da qual a oração deve ser a fiel expressão.

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domingo, 9 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 28º DOMINGO COMUM - A SOLIDARIEDADE - 09.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – A SOLIDARIEDADE – 09.10.2016

Caros Leitores,

Neste 28º domingo comum, as leituras da liturgia estão sintonizadas com o tema do atual ano da misericórdia, instituído pelo Papa, enfocando a solidariedade com os sofredores. Compadecer-se e emprestar apoio às pessoas que passam por dificuldades ou necessidades é uma das obras de misericórdia ensinadas no catecismo. E, ao mesmo tempo, devemos nos lembrar de agradecer os favores recebidos e sentir a felicidade de poder ser útil aos irmãos, porque a vida de cada dia é uma grande dádiva que Deus nos concede a cada amanhecer.

Na primeira leitura, do segundo livro dos Reis (5, 14-17), lemos o episódio da cura de um estrangeiro, o sírio Naaman. O profeta Eliseu compadeceu-se daquele homem enfermo, que veio de um país distante pedir ajuda e, através do seu dom profético, receitou-lhe um “plano de cura”, demonstrando com isso que Javeh é Deus não apenas dos hebreus, mas também dos povos estrangeiros. A misericórdia de Deus não alcança apenas aqueles que o louvam e lhe oferecem sacrifícios, mas a todas as pessoas de coração sincero. Naaman representa todas as raças e nações que não nasceram sob o signo da aliança com Javeh, ou seja, ele é um exemplo precoce da nossa situação de cristãos, que não somos descendentes dos povos da aliança, no entanto, estamos todos alcançados por ela.

Duas particularidades chamam a nossa atenção no episódio da cura de Naaman. Primeiro, o fato de ele não ter acreditado de início. Na leitura de hoje, não há esse trecho, mas nos versículos anteriores, o autor sagrado narra que Naaman teria se recusado, quando o profeta Eliseu mandou que ele fosse tomar banho sete vezes no rio Jordão. Ora, disse ele, na minha terra há rios de águas mais límpidas e cristalinas, porque tenho eu de tomar banho nesse rio sujo daqui? Foi quando um servo ponderado o repreendeu: se o profeta tivesse mandado fazer algo difícil, tu farias, então por que não fazes isso, que é tão fácil? Naaman, que era uma pessoa sensata, compreendeu e obedeceu. E por que sete banhos? Porque Deus, quando faz sozinho as coisas para nós, ele quer a nossa participação, não entrega o objeto já pronto. Naaman precisou cumprir os sete banhos para, no final, ficar sarado. Se ele não tivesse colaborado com a sua parte integralmente, banhando-se as sete vezes, a cura não teria ocorrido. Nós também precisamos fazer a nossa parte completamente, para ficarmos em condições de receber a misericórdia divina.

A segunda particularidade que destacarei no episódio de Naaman é o seu agradecimento. Tão logo percebeu que estava curado, ele retornou ao profeta Eliseu para agradecer. Na verdade, ele queria pagar pela cura e o profeta recusou-se totalmente a receber qualquer pagamento. Os dons de Deus não estão à venda, não são objeto de comércio. Naaman tinha a mentalidade pagã de que a divindade deve ser agraciada com bens em troca dos favores recebidos. Mas o profeta fê-lo perceber que a cura dele foi uma manifestação da solidariedade de Javeh para com o sofrimento dele, mesmo não sendo ele um dos seus fiéis. Em agradecimento, Naaman levou consigo uma porção da terra de Israel, para que pudesse louvar a Javeh em sua terra distante, fazendo um altar com aquele material. Sem esquecer ainda que o banho miraculoso de Naaman no rio Jordão foi uma antecipação do batismo de Jesus, que ocorreria naquele mesmo rio, séculos depois. Foi como se o profeta Eliseu estivesse antecipando o que seria a pregação futura de João Batista naquele local.

Na segunda leitura, prosseguindo a carta a Timóteo que vem sendo lida nesses últimos domingos, o apóstolo Paulo, sofrendo as agruras da prisão por causa do evangelho, busca a solidariedade do discípulo no seu infortúnio, destacando a fidelidade de Deus, mesmo quando nós somos infiéis a ele (2Tim 2, 13). Certamente, Paulo temia que a prisão dele pudesse arrefecer os ânimos dos cristãos que ele convertera e era necessário que o ânimo de todos não se abatesse. E se ele não podia, naquelas circunstâncias, continuar pregando a palavra, era dever de Timóteo e de todos os fiéis fazê-lo. As orações da comunidade e os relatos do seu testemunho de “suportar qualquer coisa pelos eleitos, para que eles também alcancem a salvação, que está em Cristo Jesus” eram uma demonstração de solidariedade recíproca: do Apóstolo e dos discípulos dele.

Na leitura do evangelho de Lucas (17,11-19), temos aquele conhecido episódio da cura dos dez leprosos, dos quais apenas um retornou para agradecer. E Jesus cobra essa desatenção perante a comunidade que assistiu ao retorno daquele estrangeiro agradecido. Convém recordar que a lepra era, desde tempos remotos e até tempos recentes, uma moléstia segregativa. Os doentes eram obrigados a sair da cidade e viver à distância, às margens das estradas, única forma que tinham para não morrerem de fome, já que também não podiam trabalhar. Na sua caminhada para Jerusalém, Jesus deve ter encontrado vários grupos deles, assim como todos os viajantes encontravam e, em geral, os socorriam com bens materiais. Mas no caso do episódio narrado pelo evangelista, eles queriam do viajante Jesus algo mais valioso do que o alimento: a cura. As notícias sobre o poder de Jesus corriam de boca em boca, impossível não saber de quem se tratava naquela comitiva passante. O evangelista não menciona o nome de nenhum dos dez enfermos curados, nem mesmo daquele que retornou para agradecer, porque o seu intuito era destacar a solidariedade de Jesus para com os sofredores, inclusive com os estrangeiros, pois a misericórdia divina não se destina apenas a um grupo de eleitos, mas a todos os povos. No caso específico, o fato de somente um samaritano ter retornado para agradecer possui um simbolismo especial. Para os hebreus, samaritano era mais do que um estrangeiro, era um inimigo. O destaque que Jesus dá ao samaritano, assim como aos estrangeiros em geral, significa que todas as pessoas de boa vontade, mesmo não pertencendo ao “povo da aliança”, têm garantida a solidariedade divina.

O agradecimento demonstrado pelo leproso samaritano curado, posto em evidência por Jesus, nos proporciona diversas lições. Primeiro, que sempre devemos nos lembrar de agradecer. Não é que Jesus precisasse daquele agradecimento, porque ele sempre fez tudo de forma absolutamente gratuita e às vezes até proibia que as pessoas saíssem falando a respeito dele. Portanto, o elogio pelo agradecimento daquele que retornou, e ao mesmo tempo a crítica pelos que não retornaram, não significa que Jesus quisesse isso, esperasse por isso, mas vem nos ensinar que devemos ser agradecidos com os que nos são solidários. Segundo, tal como no caso de Naaman, Jesus também não curou os dez leprosos imediatamente, mas mandou que antes eles fizessem alguma coisa, no caso, mandou que eles fossem se apresentar ao sacerdote. E, enquanto caminhavam, eles observaram que estavam curados. Novamente aqui está presente a mesma lição de que, para recebermos as graças divinas, nós precisamos fazer a nossa parte e não ficarmos de braços cruzados esperando que as coisas aconteçam automaticamente. Terceiro, Jesus chamou a atenção para os outros nove curados, que eram hebreus e, tal como os fariseus, tinham o coração insensível, eram incapazes de reconhecer os favores recebidos e de saber agradecer por eles. Já o samaritano, que era odiado pelos hebreus, soube demonstrar o reconhecimento que os outros não tiveram. E Jesus louva a fé daquele estrangeiro, pois for por ela que ficou curado. Não só neste caso, mas em diversos outros momentos, Jesus sempre repetiu o mesmo bordão: vai em paz, a tua fé te salvou.

Meus amigos, se nós nos acostumarmos a observar os acontecimentos do dia a dia, iremos enxergar que Deus nos cumula de favores a todo momento, até mesmo sem que nós mereçamos ou peçamos. Deus é sempre solidário conosco, pedindo de nós o mesmo espírito de solidariedade para com os irmãos, especialmente os mais necessitados. Ser solidário significa fornecer ajuda sem nenhum interesse. O exemplo do profeta Eliseu ao recusar o presente oferecido por Naaman nos indica a conduta correta a ser seguida, quando Deus se serve de nós para prestar auxílio a alguém: os dons divinos não são mercadorias, são recebidos de graça e são distribuídos gratuitamente. E a atitude de Jesus, ante aquele samaritano agradecido, prostrado aos pés dele em pose de subserviência, é também significativa e modelar: levanta-te e vai em paz, foi a tua fé que te salvou. Quando nós prestamos a solidariedade a alguém, estamos agindo como intermediários dos dons divinos e aquelas pessoas beneficiadas nada nos devem, nem um favor. Na verdade, nós é que estamos retribuindo, porque fomos antes favorecidos.

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domingo, 2 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - O TAMANHO DA FÉ - 02.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – O TAMANHO DA FÉ – 02.10.2016

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, as leituras litúrgicas abordam o tema da fé e a sua inserção na nossa vida cotidiana, questionando-nos sobre o tamanho da nossa fé (se é que podemos medi-la). A vivência na fé é um exercício reflexivo permanente, dinâmico, sempre em progresso, aumentando cada vez que somos capazes de perceber e compreender a ação de Deus na nossa vida. O resultado da fé é a justiça. O justo vive pela fé. Observando os fatos da vida cotidiana à luz da fé, podemos descobrir a mão de Deus no comando dos acontecimentos, até nos menores detalhes.

Na primeira leitura, retirada do profeta Habacuc (trechos dos cap. 1 e 2), vemos o profeta reclamando de Javeh porque clama e não é atendido. Habacuc tem a ousadia de questionar Javeh: “até quando clamarei sem que me atendas?”, o que é uma atitude incomum no Antigo Testamento, onde a figura de Javeh é mostrada como um Deus irado e vingativo, quase intolerante. Interpelar Javeh dessa forma era uma atitude arriscada. Mas o profeta não tinha dúvidas de que fazia a súplica do modo correto e esperava o resultado, no entanto, nada acontecia. Javeh, então, mostrou a Habacuc uma visão desoladora, da qual ele teve muito medo, e Javeh disse: escreve isso em tábuas, para que fique fácil para o povo ler. E espera, porque ainda nesta geração, essas coisas acontecerão: “Os infiéis morrerão, mas os justos viverão pela sua fé.” A grande catástrofe que estava por vir contra os infiéis era a invasão dos exércitos da Babilônia, a destruição de Jerusalém e a condução do povo hebreu como escravos daquele país. O profeta ficou deveras preocupado, porque pedia a Deus um castigo para o povo infiel, mas não imaginava que Ele fosse tão impiedoso. O próprio Habacuc foi levado como escravo para a Babilônia, algum tempo depois, de acordo com a promessa de Javeh. No entanto, sendo justo, ele sobreviveu e foi libertado, também de acordo com a promessa de Javeh.

Na segunda leitura, sequência da carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida nos domingos anteriores, o Apóstolo exorta o discípulo a permanecer firme na fé, “pois Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e sobriedade.” (2Tim 1,7). Paulo escreveu esta carta enquanto estava preso, aguardando julgamento pelo tribunal romano, por causa da sua fé em Jesus Cristo e convida Timóteo a sofrer com ele. Na carta a Filipenses (1, 21), Paulo também escreveu que “para mim, viver é Cristo e morrer é lucro”, porque ele sabia muito bem que a morte não tiraria a sua vida na fé em Cristo, pelo contrário, morrer pela fé apenas abrevia os sofrimentos e introduz o fiel na vida plena. Paulo escreveu diversas cartas enquanto estava preso e, em todas elas, dá o testemunho de sua fé irrestrita, mesmo antevendo as provações que o aguardavam. Ele compreendia muito bem a palavra de Javeh ao profeta Habacuc: o justo vive pela fé.

Na leitura do evangelho (Lc 17, 5-10), vemos exemplos práticos dados pelo próprio Cristo sobre a avaliação que cada um pode fazer da medida da sua fé. É a conhecida passagem: “'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria. ” (Lc 17, 6) Meus amigos, é hora de cada um de nós baixar a cabeça e refletir sobre o “tamanho” da nossa fé. Talvez seja necessário usar uma grande lupa para podermos observá-la. Um grão de mostarda é menor do que um caroço de arroz cru, do que uma semente de gergelim. É óbvio que se trata de um raciocínio metafórico, porque a fé não pode ser comparada a um objeto físico. Mas se alguém fizer uma comparação entre a sua altura e o tamanho de uma semente dessas, verá uma enorme desproporção. Assim também deverá acontecer quando compararmos a altura do nosso soberba com o tamanho da nossa fé. E imaginemos que essa fé, ainda que minúscula, seria capaz de transportar uma montanha. Nem vamos continuar essa linha de raciocínio...

Refletindo sobre o tema da fé, vale recordar o evangelho de Mateus, cap. 14, onde lemos aquele conhecido episódio em que os discípulos estavam pescando à noite, com um mar agitado, e viram Jesus caminhando sobre as águas. Pedro, como sempre, impetuoso, disse logo: posso ir também? E Jesus disse: vem. Mas logo ele começou a afundar. “E Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt 14, 31). Homens de pouca fé é o que nós também somos. Quantas vezes, nos lamentamos diante de certas ocorrências e até pensamos que Deus se esqueceu de nós. Nesse momento, deve soar no nosso ouvido a advertência de Jesus a Pedro: Homem de pouca fé, por que duvidaste? O justo viverá pela sua fé, ecoa do outro lado a visão do profeta Habacuc.

Acerca da fé, o autor da carta aos Hebreus faz a definição talvez mais perfeita em linguagem humana: “A é uma posse antecipada do que espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem.” (Hb 11,1) Para a teologia cristã, a fé é um estado de espírito no qual a pessoa se envolve irresistivelmente com o objeto de sua crença, convencendo-se da realidade invisível por meio de uma experiência existencial profunda. Em vista de uma melhor compreensão deste fenômeno, ao longo do tempo, os teólogos têm buscado na filosofia um auxílio racional para esclarecer o sentido do enigma que envolve a fé. Os grandes expoentes da filosofia e teologia medievais foram unânimes em afirmar que não existe oposição, mas uma relação de complementaridade entre a fé e a razão. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno, sempre defenderam esse ponto de vista, o que vem servindo de apoio logístico para a doutrina teológica até os dias de hoje.

O Papa Francisco, no ano de 2013, publicou uma encíclica, cujo rascunho fora escrito por Bento XVI, mas que o Papa concluiu e publicou em nome próprio. Trata-se da encíclica “Lumen Fidei” (Luz da Fé). No n.º 7 desse documento, ele admite isso: «Estas considerações sobre a fé - em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição». E no número 32, ele prossegue: “O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias.” A antiga formação seminarística, no curso de filosofia, abordava exatamente essas “contribuições” dos filósofos antigos e medievais para o melhor esclarecimento da fé, pois o curso era baseado na filosofia tomista. Lamentavelmente, o curso seguido pelos seminaristas de hoje já não segue essa perspectiva, em vez disso, carrega forte acento no pensamento filosófico contemporâneo, o qual não fornece base teórica suficiente para o entendimento do pensamento teológico católico, totalmente ainda embasado na filosofia medieval. Por isso, percebe-se claramente a diferença quando se ouve uma homilia de um sacerdote mais antigo, em comparação com os presbíteros mais modernos, em relação ao fundamento filosófico que cada um demonstra (ou não) possuir.

Nos tempos modernos, a tecnologia e o cientificismo tendem a anular a fé ou mostrá-la como atitude de pessoas fracas e sem argumentos. A fé ficou associada à escuridão, adverte o Papa. Mister se faz encontrar o seu verdadeiro sentido. Ora, se na época de Cristo, os discípulos pediram para que Ele lhes aumentasse o tamanho da fé, quando mais devemos pedir isso nos tempos atuais. É útil ter sempre em mente a advertência do profeta Habacuc: o justo viverá por sua fé. Uma maneira didática de obter um aumento da fé é buscar sempre encontrar a mão de Deus nos acontecimentos da nossa vida. Assim, estaremos continuamente aumentando o tamanho da nossa fé.

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domingo, 25 de setembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - RICOS E POBRES - 25.09.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – RICOS E POBRES – 25.09.2016

Caros Leitores,

Nas leituras litúrgicas deste domingo, temos a sequência da mesma temática do domingo anterior: a responsabilidade na administração dos bens materiais. Jesus conta aos fariseus a parábola do rico, que esbanjava com futilidades, fazendo o contraponto com o vizinho pobre, que não tinha nem o básico. Jesus não afirma que o rico deve repartir os seus bens com o pobre e nem diz que o acúmulo da riqueza nas mãos de certas pessoas seja algo intrinsecamente mau, mas adverte que os bens dos mais abastados devem ser postos a serviço dos mais necessitados.

A primeira leitura, retirada do Profeta Amós, contém uma advertência que é muito apropriada para os dias atuais, quando o embate político põe em evidência a disparidade existente entre as classes sociais. Este profeta, que viveu cerca de 800 anos antes de Cristo, era um agricultor, uma pessoa de baixa instrução e experimentou uma situação parecida com a de hoje, em que há grande concentração de riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto a grande maioria da população sofre a falta dos bens essenciais. A diferença é que o governo hebreu não distribuía “bolsas” para melhorar a situação da pobreza e muitos chegaram a ser escravizados, por não terem como pagar as dívidas. Em tempos passados, a inadimplência podia transformar o devedor em escravo do credor, o que era uma situação desesperadora. Daí a grave advertência do Profeta contra “Os que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que cantam ao som das harpas, ou, como Davi, dedilham instrumentos musicais; os que bebem vinho em taças, e se perfumam com os mais finos ungüentos e não se preocupam com a ruína de José. ” (Amós 6, 4-6) O reino de Israel (naquela época, o povo hebreu estava dividido em dois reinos – Israel ao norte e Judá ao sul) passava por um momento de prosperidade, tendo vencido os inimigos e auferido grandes riquezas, no entanto, apenas alguns privilegiados usufruíam disso, em detrimento da maioria da população. Por isso, o Profeta dirige sua ira contra os que dormem em camas de marfim e deitam-se nas almofadas para se banquetear, sem tomar conhecimento da carência dos demais cidadãos. Vemos que Amós não condena a riqueza dos israelitas abastados, o que ele recrimina é a falta de solidariedade com os carentes, aqueles que estavam sendo escravizados por não poderem pagar suas dívidas. Sendo Amós um agricultor, ele conhecia bem a situação dos moradores dos campos. Deus o chamou a profetizar por causa da sua vida justa, mas também por causa do conhecimento que ele possuía sobre a situação dos mais necessitados. Porque sua pregação incomodava as autoridades políticas e religiosas, Amós foi expulso da cidade, não sem antes rogar uma praga no Sumo Sacerdote que o expulsara, além de anunciar a ruína que viria sobre eles.

Na segunda leitura, retirada da primeira carta de Paulo a Timóteo, o Apóstolo continua chamando a atenção do seu discípulo para manter a fidelidade da sua vocação. “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas.(1Tim 6, 12) E acrescenta: “guarda o teu mandato íntegro e sem mancha até a manifestação gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo.(vers. 14) Timóteo fora consagrado bispo por Paulo, para cuidar da igreja de Éfeso, que era uma comunidade muito tensa, por causa da grande força dos pagãos do lugar. Paulo exorta Timóteo a guardar a coerência das suas atitudes, não se deixando levar pelas pressões que viesse a sofrer da parte dos poderosos. Consta na história que Timóteo terminou sendo apedrejado por esses infiéis, por questões religiosas. Fiel a Paulo e a Cristo, ele morreu e não fraquejou na sua fé.

Temos no evangelho de Lucas (16, 19-31) aquela conhecida parábola de Cristo sobre o rico esbanjador frente ao pobre e pestilento mendigo, que esmolava na sua rua. Como de costume, a parábola narrada por Jesus era dirigida aos fariseus e Lucas realça os detalhes, para chamar a atenção dos seus leitores. É interessante observar aqui duas coisas: 1. esta parábola consta apenas no evangelho de Lucas, devendo ter sido colhida numa fonte que os demais evangelistas não conheceram; 2. Jesus não diz o nome do rico, apenas do pobre (Lázaro). É costume mencionar-se o “rico epulão” e isso pode levar alguém a imaginar que este é o nome dele, no entanto, “epulão” significa “comilão”, palavra derivada do verbo latino “epulor” (banquetear-se). São Jerônimo, na sua tradução da vulgata, escreveu que o rico se banqueteava diariamente (dives epulabatur cotidie). Jesus faz um paralelo bem contrastante entre os dois personagens, para chamar a atenção sobre o abismo social que os distanciava. Um deles possuía bens em demasia, enquanto o outro passava fome; o primeiro tinha uma casa luxuosa, o outro era um morador de rua; o primeiro era saudável, alimentava-se bem, já o outro era cheio de úlceras e esquelético de fome. A pedagogia dos contrastes, adotada por Jesus, tinha como objetivo chamar a atenção para a injustiça da riqueza que não é utilizada para atenuar o sofrimento do pobre. Tal como o profeta Amós, muitos séculos antes, Jesus não condenou o rico pelo fato de ele ser rico, mas sim por causa do seu egocentrismo, da sua falta de solidariedade. O pobre desejava pelo menos as migalhas que caíam da sua mesa, mas nem isso lhe davam. (Lc 16, 21) Na época de Jesus, os fariseus eram os ricos do povo, assim como no tempo de Amós, eram os sacerdotes de Israel que faziam parte da classe social mais elevada. Tal como Amós bradava contra o sacerdote Amasias, que terminou por expulsá-lo da cidade, Jesus clamava para que os sacerdotes judeus saíssem da sua redoma de autossuficiência e chegassem mais próximo do povo, que eles dirigiam, deixando-os assim cada vez mais irados. Tanto quanto a pregação de Amós incomodava o rei e os sacerdotes de Israel, também a exortação de Jesus incomodava os doutores da lei do seu tempo. Por fim, nem os ricos do tempo de Amós se converteram, nem tampouco os fariseus, e ambos tiveram como resultado a destruição da cidade pelos inimigos.

Merece uma referência também aqui neste contexto o diálogo “post mortem” de Abraão, junto de quem Lázaro foi morar, com o rico, que padecia no local dos tormentos. O rico fez dois pedidos, ambos recusados: 1. manda que Lázaro molhe o dedo e me refresque a língua; 2. manda que Lázaro vá avisar meus irmãos. Quanto ao primeiro pedido, Jesus disse ser impossível, porque há um grande abismo, intransponível entre eles; quanto ao segundo, Ele diz que os irmãos do rico não acreditariam em Lázaro. Aqui nós podemos fazer as seguintes reflexões: a) o rico não cedeu suas migalhas ao pobre, no entanto, queria que este fosse refrescar a sua língua com uma gota d'água, ele se sentia merecedor, sem ter realizado nenhuma ação meritória; b) o rico demonstrou solidariedade com os irmãos dele e queria que Lázaro fosse avisá-los, porém não teve solidariedade com o mendigo em sua porta; c) os fariseus, assim como aquele rico, não davam ouvidos aos profetas e às escrituras, mas criavam suas próprias regras religiosas, enquanto Jesus estava ali (como se fosse o pobre que veio avisar) e eles não lhe davam qualquer crédito; d) o “lugar dos tormentos” (“in inferno”, segundo o texto latino) não é um mar de fogo com o demônio empunhando um tridente, como aparece nas gravuras medievais, mas era a própria consciência do rico, que ardia em arrependimento.

Podemos ainda avançar nessa linha de raciocínio, para concluir o seguinte: Jesus disse que havia um grande abismo entre o local do gozo e o local dos tormentos, mas quanto o rico pediu para que Lázaro fosse avisar aos irmãos ainda vivos, Jesus não disse que isso era impossível, disse apenas que eles não acreditariam. Esticando um pouco essa interpretação, podemos alvitrar que Jesus não se posicionou contrariamente à possibilidade de comunicação entre as pessoas que estão no mundo do além com os viventes, apenas referiu-se à incredulidade destes. “`Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos'.(Lc 16, 31) Isso é apenas um palpite, porque sabe-se que Lucas não escutou as pregações de Jesus, então não se pode dizer que ele tenha ouvido Cristo dizer isso. Considerando, por outro lado, que os evangelhos foram escritos com base em documentos produzidos na comunidade da época (as fontes esparsas), fica impossível afirmar-se com certeza que tenha sido esta a mensagem de Cristo ou se foi o entendimento da comunidade onde o texto original foi escrito. De qualquer forma, podemos concluir que, para as primeiras comunidades cristãs, não viam como impossível a comunicação com o outro mundo, como posteriormente passou a ser afirmado pela doutrina teológica. A cultura grega, dominante no ambiente em que esse texto foi escrito, via essa comunicação entre o mundo dos mortos com o mundo dos vivos como uma possibilidade.

Mas, voltando ao tema básico da liturgia, a lição que retiramos das leituras deste domingo é o uso responsável e caritativo dos bens que Deus nos dá, a solidariedade com os mais carentes.

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domingo, 18 de setembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - SERVIR A DOIS SENHORES - 18.09.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – SERVIR A DOIS SENHORES – 18.09.2016

Caros Leitores:

As leituras litúrgicas deste 25º domingo comum colocam para a nossa reflexão um tema muito atual para o período eleitoral: a honestidade dos administradores, daqueles que dirigem a sociedade. Em tempo de campanha política, de impeachment e de tensões políticas, a probidade dos parlamentares atuais e futuros é a grande preocupação da sociedade brasileira. No calor do embate de ideias e de ideologias, poucas pessoas possuem instrução e convicção suficientes para uma serena decisão sobre os votos que darão aos candidatos que se apresentam. A maioria popular ainda é seduzida pelo discurso emotivo e prometedor, que em geral não se cumpre.

Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Amós (Am 8, 4-7), o discurso do profeta até parece que se refere ao estereótipo do político profissional dos nossos dias, mais interessados em esfolar os concorrentes e enganar os eleitores. Tudo vale para conseguir maior número de sufrágios, até mesmo eliminar o adversário, conforme se sabe pelos noticiários. No tempo do profeta Amós, ainda não havia o capitalismo nem o comunismo, nem a economia de mercado nem a globalização, mas um sistema social arcaico, baseado na teocracia, e um sistema econômico também arcaico, fundado em grande parte na prática do escambo. Mas lamentavelmente as práticas de corrupção e de engodo da população já existiam, assim como as práticas comerciais escusas de fraudar balanças, diminuir medidas, inflacionar o preço para conseguir lucrar sempre mais. Portanto, desde os tempos do Profeta Amós, cerca de 800 anos antes de Cristo, a cobiça dos governantes e dos comerciantes já era alvo de reprovação pelos arautos de Javeh. Isso mesmo continuou a ocorrer nos séculos seguintes, dominados pela tradição romanista e pelo mercantilismo, que se instalou a partir do Renascimento. As mesmas práticas reprováveis de certos líderes sociais, que frequentemente são noticiadas nos dias de hoje, já ocorriam naqueles tempos. No livro de Amós, o profeta condena a injustiça social e a exploração gananciosa dos mais humildes. Fazendo-se as contas, podemos avaliar há quanto tempo esse tipo de prática vem sendo condenada e apesar disso nunca deixou de ser vergonhosamente replicada.

Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Timóteo (1Tim 2, 1-8), o Apóstolo exorta à comunidade para que reze pelos administradores, pelos governantes, pelos que ocupam altos cargos, pois Deus quer que todos sejam salvos. Verifica-se, nas entrelinhas das palavras de Paulo, que os administradores públicos eram tidos por pessoas inescrupulosas, cuja ação não era agradável a Deus, daí porque era necessário orar por eles, para que cheguem ao conhecimento da verdade e sejam salvos. A preocupação de Paulo com os dirigentes da comunidade se faz sentir na necessidade de que os cristãos que ocupam cargos elevados devem dar exemplo aos não cristãos, para que a sua virtude seja imitada por estes. E para que isso aconteça, é importante a oração da comunidade em seu apoio. Naquela antiga oração que rezávamos após a bênção do Santíssimo Sacramento, havia um trecho que dizia assim, depois de orar pelo Papa, pelos Bispos, pelos administradores eclesiásticos: rezemos por todas as pessoas constituídas em dignidade, para que governem com justiça. E os vários documentos expedidos pelo Magistério da Igreja ao longo dos últimos séculos, desde o Papa Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum, tem dado continuidade a essa missão iniciada por Paulo no sentido de orientar os governantes no caminho da verdadeira justiça social. O Papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio (1967) escreveu uma frase emblemática sobre a situação econômica do final do século XX: o desenvolvimento é o novo nome da paz. A situação das nações em relação ao desenvolvimento de cada uma é o mecanismo de equilíbrio para a manutenção da paz mundial. De um modo indireto, isso quer dizer que a consciência dos administradores públicos, sobretudo dos países mais ricos, será determinante para que todas as nações vivam em paz. E podemos ver diariamente isso, na prática, e constatar o quanto o Papa estava com a razão. As guerras que eclodem em diversas partes do mundo são o contraponto para comprovar a validade dessa doutrina.

No evangelho de Lucas, lemos hoje a conhecida parábola do administrador infiel. Esta parábola contém um forte paradoxo, destacando a pedagogia do contraditório, pois ao mesmo tempo em que Cristo elogia o comportamento do administrador inescrupuloso, Ele está querendo nos dizer: não façam assim. No tempo de Cristo, a parábola se dirigia, como na maioria das vezes, aos fariseus e aos chefes do povo, que agiam de forma perdulária e opressora, transformando a religião judaica num emaranhado de regras e proibições, em que a prática exterior da religião era mais valorizada do que a intencionalidade do crente. No evangelho de Mateus (cap 23), Cristo faz essa mesma advertência com outras palavras, dizendo que os fariseus atam pesadas cargas e as colocam nos ombros do povo, enquanto eles mesmos não ajudam nem com o dedo para aliviar o peso. Noutro contexto, vemos repetida aí a mesma reprovação feita pelo Profeta Amós contra os administradores do tempo dele. E podemos encontrar semelhante atitude de reprovação no episódio em que Jesus expulsa do templo aqueles que vendiam rolinhas e carneiros para o sacrifício, chicoteando-os e quebrando suas bancas. “Ninguém pode servir a dois senhores. Porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, diz o evangelista Lucas (16, 13).

Apesar dessa atitude de reprovação, Jesus utiliza o argumento do raciocínio inverso para elogiar o mau administrador, destacando a sua criatividade e inteligência: os filhos das trevas são mais hábeis nos seus negócios do que os filhos da luz (Lc 16, 8). E diz mais: usai o dinheiro injusto para fazer o bem... pois se não fordes fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? (Lc 16, 9-11). Jesus está contrapondo as coisas da terra (dinheiro injusto) com as coisas do céu (verdadeiro bem). Aquele que possui bens materiais e/ou desfruta de poder social tem em mãos um 'dinheiro injusto', porque toda acumulação de bens nas mãos de alguém é resultado da falta daqueles bens nas mãos de outrem. Contudo, isso não é de todo mau, desde que a administração desses bens “injustos” esteja voltada para a satisfação das necessidades dos irmãos carentes. Este é o grande desafio que se põe para o cristão que administra bens particulares ou públicos. Jesus sabia que a sociedade sempre seria desigual, quando ele disse em João (12, 8): “pobres sempre tereis entre vós”. Ele sabia que mesmo a divulgação da sua doutrina não acabaria com as desigualdades sociais mas, por outro lado, isso não seria empecilho para que os cristãos tivessem em suas mãos a responsabilidade de administrar bens materiais. Daí Ele dizer em Lucas (16, 8) que o dono do negócio elogiou a esperteza do seu administrador. Deus quer que nós tenhamos essa mesma esperteza com os bens injustos para que saibamos utilizá-los com sabedoria e disponibilizá-los em benefício dos pobres da comunidade.

A advertência de que “ninguém pode servir a dois senhores” não significa que existe uma incompatibilidade absoluta entre amar a Deus e administrar bens materiais, mas sim que o amor a Deus não pode competir com o amor desses bens, pois o amor a Deus não pode ter concorrência. A propriedade e a administração de bens materiais não deve nos desviar do amor a Deus, mas sim fazer-nos amá-lo ainda mais e isso ocorre quando os bens possuídos são postos a serviço da caridade e do amor ao próximo. Aquele cujo Deus é a riqueza ou o poder, este sim estará desvirtuando os bens recebidos e colocando-os a serviço do próprio egoísmo, tal como fez o mau administrador. Podemos dizer, em resumo, que a diferença entre o bom e o mau administrador está sintetizada naquele critério que Jesus já ensinara aos apóstolos e a todos nós, através da palavra do evangelista Mateus (6, 21): “porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Se o nosso tesouro estiver em Deus, o nosso coração não se apegará ao dinheiro injusto, mas nós saberemos administrá-lo para fazer amigos que nos receberão, depois, na morada eterna.

Que assim saibamos compreender a esperteza dos filhos deste mundo para conseguirmos colocá-la em prática no exercício da nossa fé.

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domingo, 4 de setembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - O DESAPEGO - 04.09.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – O DESAPEGO – 04.09.2016

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, a leitura do evangelho proclama a necessidade do desapego dos bens materiais, que deve ser a atitude padrão de quem quer ser seguidor de Cristo. Desapegar não significa desprezar os bens materiais, mas colocá-los no segundo plano, deixando em primeiro plano os bens do espírito. No caso, o desapego não abrange apenas as coisas, os objetos de valor, mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa vida cristã, inclusive as relações familiares. Este tema está presente também nas outras leituras: do livro da Sabedoria e da carta de Paulo a Filêmon.

Na primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (9, 13-18), o autor destaca uma doutrina que muito se assemelha com a teoria de Platão, quando ele contrapõe o mundo da matéria e o mundo das ideias. No versículo 15 do cap 9, lemos: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a mente que pensa.” A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz eco com a narração da criação do homem, de acordo com o Gênesis, quando Deus fez o homem do limo da terra. O peso da matéria corporal impede a alma de alcançar os desígnios profundos de Deus. É o que diz no vers. 16: “Mal podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus?” É curioso como essa doutrina filosófica, conhecida como dualismo, era comum entre os povos daquela época. O dualismo teve uma importância muito grande nos princípios do cristianismo, sendo defendida por vários teólogos cristãos, estudiosos de Platão. Santo Agostinho foi o principal deles e, de início, ele tinha simpatia até pela doutrina da reencarnação, também ensinada por Platão, vindo depois a abandoná-la, pois observou que era incompatível com o cristianismo. Grande parte da catequese católica tradicional foi elaborada com base nessa doutrina, que ainda está presente também no catecismo oficial atual. Contudo, na época contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita mais em separação entre corpo e espírito. A doutrina filosófica contemporânea compreende o homem como um ser integrado de corpo e espírito, de tal maneira que se trata de um corpo espiritualizado e de um espírito corporificado, não fazendo sentido referir-se a um sem incluir também o outro, assim como também não faz sentido falar-se em “separação” entre corpo e espírito, como se fossem duas realidades opostas e incompatíveis. A ressurreição de Cristo e também a assunção de Maria são fatos que demonstram, a título de antecipação, o que ocorre com todos os crentes, por ocasião de sua passagem para o plano da eternidade. Não é o espírito que “se salva”, mas a salvação abrande o ser humano inteiro, incluindo corpo e alma. Não o corpo-matéria, mas o corpo glorioso e desmaterializado, tal como sugere a estampa da efígie de Cristo no Santo Sudário.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação como uma atitude decorrente do desapego cristão. Nesta carta, encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava como fugitivo em Roma, onde o encontrou. Com muita discrição, Paulo não entra em detalhes sobre o provável motivo da fuga, no entanto, apenas a fuga por si mesma já era uma afronta ao patrão. O fato transparecido nas entrelinhas da carta é que Paulo encontrou Onésimo em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do vínculo de Onésimo com Filêmon, de quem Paulo era amigo, este fez questão que Onésimo fosse reconciliar-se com seu antigo senhor, não para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse a má conduta do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. ” E mais adiante, no vers. 17: “se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. ” A carta desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e fez conforme a recomendação deste.

A leitura do evangelho (Lc 14, 25-33), como antecipado, enfoca a atitude de desapego que deve ter o cristão em relação às coisas materiais. Na tradução latina desse texto, a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução oficial. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, o sentido original desta palavra no hebraico (sanê) tem relação com “sentir ciúme”, “não ter a preferência”, ou falando numa expressão positiva, de “amar mais”, ou seja, sentir ciúme se alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a Mim... Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...” Neste caso, a tradução oficial está bem mais conforme o texto hebraico do que com a tradução latina. E é este o sentido mais autêntico da exigência que Cristo faz aos seus seguidores, ou seja, ele não quer dizer que o cristão deve literalmente “odiar” o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas sim não dedicar maior amor aos familiares do que a Ele próprio. Não quer dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. E, em último caso, se as relações familiares ou as relações de amizade forem motivo de afastar o cristão do seu verdadeiro ideal, então o fiel deve fazer a sua escolha radical pela adesão ao ensinamento de Cristo. Esta é a grande dificuldade de se ler a Bíblia nas traduções, sem ter conhecimento do significado dos termos na língua original, ou seja, pode conduzir a conclusões bem divergentes daquele que é o melhor significado da mensagem. Este é o grande problema que ocorre quando o fiel apenas “lê” a Bíblia. Ler não é bastante, é necessário “estudar” a Bíblia, a fim de obter da leitura o melhor aprendizado. Desse modo, num entendimento mais humanizado, a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de pensamento da pobreza de espírito.

Os outros dois exemplos citados pelo evangelista vão também nessa mesma linha de raciocínio. Sobre o homem que queria construir a torre, mas não tinha economias suficientes para levar adiante a pretensão, Cristo quer dizer que devemos nos desapegar também de projetos mirabolantes, que estão mais a serviço da nossa vaidade do que da nossa fé. Qual o objetivo de alguém construir uma torre? Devia ser para tornar-se famoso, para ser conhecido pelas outras pessoas. Mas, até que ponto isso irá contribuir para o bem do próximo, para o serviço da comunidade? Então, os nossos projetos devem estar coerentes com as exigências da nossa fé, não com a nossa vaidade pessoal. Sobre o outro exemplo do rei que vai guerrear com o rival, qual seria o seu objetivo, senão enaltecer o seu egoísmo e o seu orgulho, pensando na vitória sobre o outro? Ora, reconhecer a superioridade do outro é também uma atitude de desapego, de renúncia da própria vaidade. Embora a narrativa sugira que o rei evitou o confronto com receio de ser derrotado, visto que o rival tinha um exército mais numeroso, devemos nos lembrar que Cristo fazia essas preleções para pessoas do povo e usava exemplos simples de casos mais compreensíveis, porém depois ele explicava o verdadeiro significado para os discípulos.

O sentido cristão do desapego, portanto, não é simplesmente largar tudo e ir morar debaixo da ponte. Desapegar-se significa ser pobre de espírito, porque há pessoas extremamente pobres de bens materiais, mas demonstram espírito rico e de exagerada avareza, invejando o que os outros possuem.

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