segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMILIA - 30.12.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 30.12.2012

Caros amigos,

Neste último domingo do ano, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A data não está ligada ao dia 30, mas ao domingo que ocorre entre o Natal e o Ano Novo, recaindo no dia 31 quando o dia de natal cai no domingo, porque o próximo domingo então será o dia 1 de janeiro.

A celebração da Sagrada Família nos leva a refletir sobre a estrutura da organização familiar sob os diversos aspectos, além do religioso, como também o sócio-cultural e o jurídico, e nestes dois últimos aspectos, estamos observando uma mudança bastante significativa neste início de século XXI. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem,uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades que não existiram anteriormente, quais sejam, as famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, com seus filhos adotados, e ainda as famílias de um só: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, condição que torna aceitável também, nesse enlastecimento cultural, as uniões homoafetivas, até já reconhecidas juridicamente como equivalentes à união estável entre homem e mulher. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, está passando por uma reforma substancial, o que caracteriza, sem nenhuma dúvida, aquilo que o Papa João XXIII chamou de 'sinal dos tempos'.

A liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, inclusive com as eventuais vicissitudes que se observam em todos os grupos familiares: o 'pito' que Maria deu em Jesus menino, decorrente da estressante procura por Ele, após o retorno de mais de um dia de caminhada. Um puxão de orelhas na hora certa (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.

Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17). De início, convém chamar a atenção para a diferença entre os dois livros bíblicos do Eclesiástico e do Eclesiastes, que tem nomes muito parecidos. Por isso, para diferenciá-los melhor, costuma-se chamar o Eclesiastes de Qohélet e o Eclesiástico de Sirácide ou Ben Sirac. Este último, o da leitura deste domingo, teve o nome tirado do seu autor, um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreve uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu. Este livro não fazia parte da antiga Torah judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão. Consta que até São Jerônimo, o tradutor oficial da Bíblia-versão vulgata, não estava muito convencido disso, mas depois teria mudado de ideia. Pela força da tradição de seu uso nos templos cristãos desde os albores do cristianismo, foi incluído no cânon católico.

A leitura traz sobretudo conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, além de obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supra culturais.

A segunda leitura, de Paulo a Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta todos os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Em seguida, traz conselhos específicos para os casais e seus filhos: “Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem. ” (Cl 3, 18-21). Até parece que Paulo faz um complemento ou uma atualização da leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.

No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Nos anos anteriores, com certeza, não acontecera nada diferente. Mas naquele ano, quando Jesus completara 12 anos de idade, deu-se o inesperado: ele se desgarrou do grupo e isso não foi percebido pelos seus pais. Como se supõe, José e Maria viajavam a pé e deviam andar em grandes caravanas de pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Desse modo, o grupo viajante era composto de muita gente e as crianças maiores circulavam entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que eles se preocuparam. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram para procurá-lo.

Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade estranha, cheia de estrangeiros, certamente tendo também muita gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), e o que se passava na cabeça e no coração deles? E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, a metrópole em tempos de festa da Páscoa, devia ser assim como ficam as nossa cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor a ideia do que se passa. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino no local mais improvável (a sinagoga), ao invés de se sentirem aliviados, Ele recebeu um puxão de orelhas de Maria: porque você fez isso conosco?

Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria deve ter engolido em seco, porque ela sabia de quem se tratava, mais do que ninguém.

Algo que ficamos aqui a imaginar também é o seguinte: por que Lucas silencia, a partir daqui, sobre a infância de Jesus? Será que Maria não contou mais nada? Será que ele não achou outros fatos relevantes a serem narrados? Será porque daí em diante o menino fora enviado para alguma 'escola' rabínica, como afirmam alguns, referindo-se à comunidade dos essênios? Eu penso que Maria deve ter contado para Lucas outros detalhes, no entanto, a juízo dele, não suficientemente relevantes para o propósito da sua mensagem. Dizer que o Menino estava conversando com os Doutores da Lei, que se admiravam da sua sabedoria, indica que Jesus já estudava as escrituras naquele tempo, ou seja, ele já frequentava alguma escola rabínica. Embora filho de Deus, mas tendo assumido a condição humana, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar. E sabemos que de fato estudou, porque quando ele iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, ele já tinha conhecimento da Lei de Moisés como os doutores do seu tempo. Por isso, penso que Lucas considerou desnecessário dizer que Jesus estudava a Torah, porque assim o faziam os adolescentes que eram preparados nas sinagogas para serem os futuros mestres da lei. Jesus devia fazer parte desse grupo preparatório, aliás, o próprio nome 'sinagoga' sugere isso (syn+agoge=aprender em conjunto). E Lucas faz questão de dizer que, após esse fato, o menino foi obediente em tudo aos seus pais.

Que a Sagrada Família de Nazaré continue inspirando as nossas famílias e oriente também os modelos familiares alternativos, sempre no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Renovados votos de Feliz Ano Novo

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