quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO (A) - 30.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILATE – 30.11.2019

Caros Leitores,

Neste 1º domingo do advento, damos início ao ano litúrgico católico de 2020, antecipando-se ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. No domingo passado, tivemos o último domingo do ano litúrgico de 2019, com a celebração da festa de Cristo Rei. Os anos litúrgicos seguem uma sucessão de três conjuntos de leituras, distinguidos como anos A, B e C, para que as leituras não se repitam todos os anos. O ano de 2019 seguia a série C e o novo ano que se inicia faz parte da série A. Nesta, segue-se preferencialmente o evangelho de Mateus para as leituras dominicais, que são complementadas com uma do Antigo Testamento e uma carta apostólica. Esta antecipação é necessária para que o tempo do Advento, que é dividido em quatro semanas, possa ser integralmente completado antes do Dia de Natal.

A propósito da festa do Natal, é um assunto já bem conhecido por todos que a celebração do dia 25 de dezembro é apenas uma data simbólica, posto que o nascimento de Cristo deve ter ocorrido, com maior probabilidade, no mês de março. Porém, esta celebração do Natal de Jesus em 25 de dezembro já existe desde o século IV, isto é, há mais de 1.600 anos. Foi quando o imperador Constantino, convertido ao cristianismo, instituiu a celebração do nascimento de Jesus nesta data, substituindo uma antiga festa pagã que era comemorada nesta data, qual seja, uma festa romana dedicada ao deus Saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Depois de tantos séculos em que a civilização ocidental associa o Natal de Jesus com o dia 25 de dezembro, não faz mais nenhum sentido propor uma mudança de data, para adequar ao período mais provável. Associado a esse simbolismo, o ano litúrgico se constitui com datas e períodos que rememoram os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como corretas do ponto de vista histórico. Isso em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Nada obstante os esquemas comerciais incorporados ao Natal, desviando o seu verdadeiro sentido, nós cristãos devemos celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão, preparando-nos a vinda do Senhor.

As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5), narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém, em cujo monte está firmemente estabelecida a casa do Senhor: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. O nome “Jerusalém” significa “cidade da paz” e esse simbolismo está contido na visão do Profeta, segundo a qual os seus habitantes “transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate ” (Is 2, 4) Esta visão do profeta Isaías, transportada para os dias de hoje, aplica-se à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o espírito cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós e, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser, como diz o apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos, o tempo de despertar.

Passando, então, à segunda leitura, da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), o Apóstolo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz, porque a salvação está a cada dia mais próxima, coonforme a promessa de Jesus. Ele, com certeza, faz essas recomendações aos Romanos numa época em que as festas da saturnália ainda eram muito populares, com suas orgias, comilanças e licenciosidades, e recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente as pessoas faziam naquelas festas pagãs, as quais são representadas nos dias de hoje com o carnaval. Porém, os cristãos não devem proceder iguais a eles, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos ainda que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora não demonstrassem publicamente.

A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé ocorreu o dilúvio, quando ninguém esperava, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar despertos, porque na hora em que menos se esperar, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem surpreenderá muita gente dormindo. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Na atualidade, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós é que nos dirigiremos ao encontro dele. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada. (Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, como ensinou a catequese tradicional, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações deverá ocorrer em nível individual, não global. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.

Portanto, o ensinamento de Paulo sobre o tempo de despertar não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé em Cristo deve ser renovada a cada dia, e o período do advento é o tempo mais propício para que despertemos a nossa consciência para essa realidade inafastável, que é o fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem da nossa vida em meses e anos nos dá a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. Neste tempo do advento, a liturgia nos leva a fazer esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de vivermos conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar a cada dia a nossa fé na divina promessa.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE CRISTO REI - 23.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 23.11.2019.

Caros Leitores,

O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura do rei perdeu muito a sua força devido a ser um personagem que não faz parte da nossa realidade, não combina com a conjuntura política mundial, pois os reinos são hoje praticamente inexistentes. O conceito do reino, portanto, passa para o campo do simbolismo e da utopia, no sentido do reino da paz e da concórdia, para a construção do qual todos os cristãos somos convocados.

Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, pois os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente de um rei.

Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Jesus. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outras 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Jesus, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles escarnece, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que os apóstolos haviam debandado e, diante da cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos deduzir como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que participaram da execução, tenha se preocupado de prestar atenção ao que os condenados falavam. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - 17.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – ESCATOLOGIA – 17.11.2019

Caros Leitores,

A liturgia deste 33º domingo comum traz, nas leituras, o discurso escatológico, isto é, a liturgia nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos. A parte da teologia que trata desse tema é chamada de escatologia e isso é o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, ou seja, a segunda vinda de Cristo. Numa leitura apressada, parece que Jesus quer nos aterrorizar, falando de catástrofes, guerras, epidemias, que antecederão o final dos tempos. Contudo, é necessário perceber com outra mentalidade a descrição desses acontecimentos, que já foram motivos, no passado e ainda hoje, de deixar muita gente com insônia.

O objetivo não é aterrorizar. Na verdade, as leituras litúrgicas nos convidam a ter vigilância e prudência, como características reais da vida do cristão, crente na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando nem como será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos últimos tempos já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história. Não faltam “profetas” apressados, para apontar, nos fatos sociais ocorridos em diversas ocasiões, outrora como hoje em dia, uma associação com as predições de Cristo sobre o final dos tempos. Com efeito, se observarmos os fatos contemporâneos, até parece que a leitura bíblica está se referindo a eles. Sempre que alguma notícia sobre fatos inesperados ou incompreensíveis é divulgada, os “profetas” e “videntes” tentam identificar neles as catástrofes escatológicas. Porém, o próprio Cristo disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Portanto, qual desses profetas e videntes é mais sabido do que o Filho? Com efeito, quando Jesus falou aquelas coisas terríveis, referia-se historicamente à dominação romana na Palestina, à destruição de Jerusalém, às perseguições dos primeiros cristãos, ou seja, quando o evangelista Lucas escreveu seu evangelho, tais fatos já tinham realmente acontecido. Jesus, porém, havia afirmado: isso não é o fim, ou seja, essas perseguições não irão destruir a sua doutrina nem dizimar seus seguidores.

É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de maus agouros. Na primeira leitura, do profeta Malaquias (Ml 3, 19-20), ele se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda recorrente na nossa cultura religiosa popular. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos científicos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final do impacto com a terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa, e a destruição não ocorreu. Em 1960, eu era criança, e estava apavorado, porque os adultos diziam que “o mundo se acabaria” no dia 13 de maio daquele ano. Nada. Em 2012, algumas pessoas afirmaram que o mundo acabaria no dia 21 de dezembro e citavam complexos cálculos matemáticos para justificar isso, Nada aconteceu. Prevalece, assim, a palavra de Jesus: não é o fim.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já nem queriam mais trabalhar e viviam à toa, apenas aguardando o momento. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de ganhar o meu salário, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus, a quem ele desagradara, o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a doutrina cristã, mesmo tendo recebido toda instrução de Paulo. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes insignificantes, que deturpam a mensagem.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, queimadas, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Nesta época do ano, em diversas partes do mundo, acontecem grandes incêndios, compatíveis com a estação seca e quente. A cidade italiana de Veneza está sofrendo forte inundação, como há muito não ocorria, causada pelo desequilíbrio climático. Muitas pessoas talvez venham a associar esses fatos naturais com a leitura do evangelho, quando na verdade, sabe-se que essas catástrofes estão relacionadas com o mau uso dos recursos naturais pelos países ricos, forçando o desequilíbrio na atmosfera. Essa crença ainda é comum, por causa daquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos de Deus, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem. Mas Jesus continua nos exortando: ainda não é o fim.
Precisamos, portanto, compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso. Convulsões sociais, atentados por motivo religioso, fanatismo e violência incontroláveis, intolerância religiosa noticiada em diversos países do mundo. Esse tipo de conduta também impaca a todos nós, que temos fé e que, muitas vezes, não sabemos respeitar a fé alheia. O Papa Francisco constantemente dá seu testemunho pessoal de vivência da fé em plenitude, sendo alvo de muitas críticas e incompreensões. Ele já está tão habituado a isso que parece não se importar. Pois bem, o exemplo dele deve servir de modelo não apenas para os cristãos, mas para todos os crentes das mais diversas fés, e o seu testemunho só está a confirmar aquilo que Jesus falou no evangelho: isso não é o fim.

Portanto, meus amigos, a narrativa de Cristo nos convida a sermos vigilantes e prudentes, exortando-nos a não nos deixarmos impressionar com as ameaças externas, pois o inimigo pode estar no meio de nós: o nosso orgulho, a nossa falta de misericórdia, a nossa soberba, a intolerância, o desamor. Essas são as reais ameaças que nos perseguem continuamente e é em relação elas que devemos estar sempre vigilantes.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - 10.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A COMUNHÃO DOS SANTOS – 10.11.2019

Caros Leitores,

Neste 32º domingo comum, a liturgia ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como tema a crença na vida eterna ou, como ensina a teologia, a comunhão dos santos. Essa foi uma nova leitura da lei mosaica, trazida por Jesus Cristo, causando polêmica entre os grupos judaicos, porque nem todos acreditavam na eternidade. “O nosso Deus é Deus dos vivos, não dos mortos”, disse Jesus aos saduceus. O culto dos mortos e a comunicação com eles era admitida, embora secretamente, na Grécia antiga, pelos órficos. Na cultura romana, a crença na vida após a morte estava presente nas tradições familiares, com os deuses “lares” e “penates”, que eram cultuados no interior das famílias. Na tradição cristã, observam-se divergências não propriamente na crença na vida eterna, mas na forma de prestar culto aos mortos. O catolicismo tem como sua principal fonte doutrinária sobre esses rituais funerários os dois livros de Macabeus, porém os protestantes consideram esses livros como apócrifos e discordam da doutrina católica.

Primeiro, uma breve explicação histórica. O nome Macabeu era o apelido dado a Judas, filho de Matatias, que foi sucessor daquele no comando do exército rebelde de Israel, no tempo em que o povo hebreu estava dominado pelos selêucidas. Os judeus não eram escravos, mas eram submissos politicamente ao rei Antíoco. O grande problema trazido por essa dependência dizia respeito a dificuldades para a observância da lei de Moisés, por imposição dos dominadores. Matatias organizou um exército formado por pessoas que não concordavam com essa dominação e permaneciam fiéis à lei mosaica, e enfrentou o exército do opressor com tática de guerrilhas, vencendo sucessivamente até retomar Jerusalém e fazer a rededicação do Templo, que havia sido profanado. Com a morte de Matatias, assumiu o comando das tropas o filho dele, de nome Judas, que por suas atitudes sempre firmes e exitosas foi apelidado de “macabeu”, que significa “martelo”. Ele era um martelo que detonava sobre as cabeças dos inimigos. Os dois livros de Macabeus não estão na Bíblia hebraica primitiva, mas seu conteúdo é considerado de grande valor histórico, por relatar um período importante da história de Israel. A Igreja Católica o colocou no seu cânon, tendo sido esse um dos motivos do “protesto” de Lutero, que não os aceitava.

Pois bem, a primeira leitura da liturgia de hoje traz um trecho do segundo livro de Macabeus (7, 1-14), que narra o episódio em que uma mulher e seus sete filhos, que eram fiéis seguidores do judaísmo, foram levados à presença do rei Antíoco, que os obrigava a comer carne de porco, o que era proibido pela lei de Moisés. Todos se recusaram e foram assassinados um após o outro, inclusive a mãe deles. Mas, à parte essas cenas sangrentas, o objetivo da leitura é demonstrar a fé que essa família tinha na vida eterna. Todos deram testemunho perante o rei e seus comparsas sobre a fidelidade à lei de Moisés, preferindo a morte a transgredir a lei, demonstrando a sua crença na vida após a morte. Diz a leitura que o rei e seus cortesãos ficaram admirados com a coragem de um dos filhos da viúva, um adolescente, que ao ser torturado, fez uma emocionante profissão de fé: “E disse, cheio de confiança: 'Do Céu recebi estes membros; por causa de suas leis os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo'. ” (2Mc 1, 11) Não faz parte do trecho lido, mas o redator destaca que a mãe deles os incentivou a cada um, diante da morte iminente, para que se mantivessem firmes na fé, confiantes na promessa da vida eterna. A tradição não guardou os nomes desses heróis do judaísmo, mas o seu exemplo continua edificante. Comer a carne de porco podia parecer algo insignificante, se comparado ao resultado que os esperava, mas a sua firmeza na fé era tamanha que suportaram todos os suplícios, para não violarem a lei. Por falar nisso, ainda hoje, entre os protestantes, algumas agremiações ainda consideram a carne de porco um alimento proibido, em obediência à lei de Moisés. A hermenêutica teológica católica não recomenda essa interpretação restrita e literal dos textos sagrados, devendo o fiel dar preferência à mensagem neles contida.

A segunda leitura é retirada da carta de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2,16-3,5). Conforme os biblistas, a primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das primeiras escritas por Paulo. Naquela cidade, Paulo teve um entrevero com os judeus, por isso, teve de fugir de lá para não sofrer violência deles. Daí por que, na segunda carta, Paulo escreveu assim: “Rezai também para que sejamos livres dos homens maus e perversos pois nem todos têm a fé! Mas o Senhor é fiel; ele vos confirmará e vos guardará do mal.” (2Ts 3, 2-3) Essa polêmica com os judeus de Tessalônica fez com que circulassem por lá boatos sobre uma carta falsa de Paulo, que teria chegado depois. Por esse motivo, a segunda carta aos Tessalonicenses tem sua autoria posta em dúvida por alguns estudiosos protestantes, porém entre os teólogos católicos, tais dúvidas não são relevantes. A grande questão se situa no fato de que, na primeira carta, Paulo falava que Cristo estava para voltar, o que fez os tessalonicenses interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só esperando o retorno de Cristo. Na segunda carta, Paulo os tranquiliza dizendo que a vinda de Cristo não seria assim de surpresa, porém antecedida por muitos sinais. Os dissidentes encontram nessas duas passagens motivos para duvidar da sua autenticidade, como se Paulo estivesse ensinando doutrinas diferentes. A meu ver, essa polêmica é resultado da interpretação puramente literal dos textos, sem a necessária contextualização histórica. A relação com o tema litúrgico está justamente na exortação de Paulo para que todos perseverem firmes na fé, esperando a nova vinda de Cristo.

Na leitura do evangelista Lucas (20, 27-38), vemos Jesus explicar aos saduceus a doutrina da ressurreição, sobre a qual eles duvidavam e colocavam questões. Os saduceus eram os judeus da aristocracia, aqueles que ocupavam os cargos políticos mais elevados, inclusive como membros do Sinédrio. Apoiavam os romanos e preocupavam-se mais com a política do que com a religião. Diferentemente dos fariseus, que sempre tentavam colocar Jesus em dificuldades, os saduceus foram interrogá-lo sobre a doutrina da ressurreição, porque compreendiam a vida eterna da mesma forma como a vida atual. Jesus vai, então, explicar que após a morte “os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento (27, 35)“, isto é, a vida futura não pode ser comparada com as relações da vida terrena. E faz lembrar a eles, que assim como os fariseus, também cumpriam à risca a lei de Moisés, que a doutrina da ressurreição já está presente na Torah, basta eles entenderem: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de 'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. ” (Lc 27, 37) Ou seja, o Deus de Israel não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em Javeh porque ressuscitaram. Embora não tenha utilizado essa palavra, no entanto, Moisés já ensinara sobre a ressurreição. Portanto, o que Jesus estava dizendo era algo que já estava contido na lei mosaica, bastando uma leitura mais atenta e com a mente mais aberta.

Meus amigos, essa doutrina da vida eterna, da ressurreição, da comunhão dos santos é um dos pontos chaves do cristianismo. Paulo foi muito enfático em 1Cor 15, 14, quando afirmou que se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. A ressurreição de Cristo é a chave para a nossa crença na vida eterna. No Antigo Testamento, a vida futura era apenas presumida, por conta da aliança e da promessa de Javeh, motivo pelo qual os judeus acreditavam que os seus Patriarcas permaneciam vivos, embora sem saber muito bem como isso acontecia. Mas no Novo Testamento, com a ressurreição de Cristo, essa crença é confirmada por inúmeros fatos e testemunhos do seu aparecimento e da catequese que ele continuou a ministrar aos apóstolos, até o dia de Pentecostes. A partir da ressurreição de Cristo, a crença na vida eterna não é apenas uma presunção, mas uma verdade que inclui uma certeza de que aqueles que forem fiéis ao Evangelho também ressuscitarão. Daí porque os livros de Macabeus são postos no rol dos livros canônicos, por uma questão de coerência doutrinária. Na liturgia deste domingo, essas leituras são colocadas em conjunto para mostrar a compatibilidade entre elas acerca desse polêmico tema. Porém, devemos estar atentos à exortação de Jesus aos saduceus: na vida eterna, as relações pessoais serão de outra ordem, para isso, não servem de parâmetros as regras sociais de convivência entre as pessoas. Lá, todos serão iguais a anjos (Lc 27, 36), por esse motivo a doutrina do espiritismo não se coaduna com a doutrina católica sobre a vida eterna, por fazer uma simples transferência dos modos relacionais na vida terrena e na vida espiritual.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE TODOS OS SANTOS - 03.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 03.11.2019

Caros Leitores,

Neste domingo, celebramos a memória litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1 para hoje, conforme o calendário oficial das festas religiosas. O evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.

Pude observar que, na missa de hoje, aqui na Paróquia, sendo o final de semana do dia de finados, o templo estava lotado de uma forma não muito comum, numa demonstração da valorização da fé religiosa na comunhão dos santos, através da comemoração dos fiéis defuntos. Tradicionalmente, também os cemitérios são superlotados nesse dia, pois ainda é um costume muito forte na nossa cultura, quase uma obrigação. No meu modo de entender, esse grande afluxo de pessoas que acorrem à celebração do dia de finados está diretamente ligado com a imagem da imensa multidão, descrita no Apocalipse de João, lido na liturgia de hoje, tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João coloca os 144 mil assinalados, representantes simbólicos das doze tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo devia ser seguida apenas por aqueles que eram herdeiros da promessa, os judeus, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã ganhou mesmo foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada por todos os povos e nações”. Por fim, Paulo conseguiu introduzir, com sucesso, o cristianismo no cerne da cidade então capital do mundo, capital do Império Romano. De lá, estendeu-se por toda a Europa e chegou até nós.

Em certo trecho lido hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: “quem são essas pessoas?” João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados de Canindé e Juazeiro do Norte, fato notório em cada ano. Fico imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico, com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. Todos sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração deverá ser inenarrável. Eu creio, sinceramente, que o Papa Francisco ainda celebrará essa cerimônia memorável. Aguardemos.

Meus amigos, a imagem joanina da grande multidão nos reporta imediatamente para as romarias nordestinas, uma forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos: a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs presentes nos diversos lugares do planeta, vamos concluir que incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, vamos compreender que não houve exagero na profecia de João, pois dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa verdade de fé é descrita na teologia como a dialética do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a “justificação” do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação vai muito além da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, a palavra bem aventurados diz-se 'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está nas mãos de Deus, “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança, a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade. Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da santidade é aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar da autêntica santidade.

É importante refletir sobre o conceito de santidade, porque há um compreensão distorcida desse termo, entendendo que apenas aqueles fiéis que foram canonizados pela Igreja podem ser chamados com o nome de santos. Aqueles são, sem dúvida, porém eles estão ali como exemplos para nós, como modelos de vida cristã, cujas virtudes foram oficialmente reconhecidas. A festa litúrgica de Todos os Santos não significa uma forma de homenagear todos os canonizados, por não ser possível reservar um dia do ano para cada um. Na verdade, o contexto teológico se refere à “comunhão dos santos”, uma verdade de fé que une os fiéis cristãos que nos antecederam e nos deixaram o exemplo de sua fé a nós, que ainda estamos a caminho. Todos fazemos parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. Todos somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se desviaram do caminho, não estão segregados desse chamamento. Aproveitemos a data para repensar o nosso conceito de santidade.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - 27.10.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – ORAÇÃO E CONDUTA – 27.10.2019

Caros Leitores,

As leituras da liturgia deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a coerência que deve existir entre o nosso interior e a nossa conduta, principalmente quando oramos. A oração supõe sempre uma confissão de impotência e um sentimento de humildade. A oração do humilde atravessa as nuvens e não passará despercebida pelo Senhor. Ele é um justo juiz, que consegue sondar os nossos sentimentos mais profundos e é inútil tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência com palavreados sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com os lábios, da boca para fora, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo que tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.

Na primeira leitura, extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para ensinar aos hebreus, numa época de mudanças sócio políticas, a fidelidade de Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.” (Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também neste domingo.

A segunda leitura, dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo se despede dizendo que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta, quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores, esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo, pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição, os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo, tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes riscos que isso acarretava.

Na leitura do evangelho deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos, nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é clássica, pois foi reproduzida em inúmeras obras de arte: o fariseu orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desdém para o publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano, em atitude de humildade, rezava apenas pedindo perdão. Como em diversas outras ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu para nos ensinar que as ações exteriores não bastam, mas é necessário que essas sejam o reflexo do nosso sentir interior. Os fariseus se consideravam justos e automaticamente salvos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”), mas faziam assim talvez por medo do castigo divino ou apenas para serem vistos e elogiados pelos outros, ou seja, isso não correspondia a um sentimento íntimo de piedade e de convicção. Por isso, tal oração não tinha nenhum valor.

Observemos que Jesus não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si próprio, ou seja, na sua falta de humildade, sua autosuficiência. O livro do Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça, não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa justificado; o fariseu, não.

Podemos fazer aqui uma ligação com outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da oferta, mas no seu egoísmo e no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não na justiça divina.

Meus amigos, nesse contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta, não demonstram ser solidários. Essa atitude do fariseu, reprovada por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, quando cumprimos nossos deveres religiosos apenas por obrigação e sem refletir sobre o significado eclesial de nossas atitudes, sobretudo quando tais atos são acompanhados do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. Se eu vou à missa dominical e recebo os sacramentos, mas na vida social não pratico a caridade com os irmãos, meus atos religiosos são vazios de significado. A parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça pessoal, deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29° DOMINGO COMUM - 20.10.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM –ORAR SEM CESSAR – 20.10.2019

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas enfocam o tema da oração perseverante. Orar e orar sempre é o ensinamento de Jesus Cristo. No domingo passado, comentamos sobre a importância do agradecimento. Neste domingo, a liturgia fala da importância do pedido em forma de oração, lembrando-nos de que devemos orar sempre e sem cessar. O recebimento ficará ao desígnio do Pai, que sabe das nossas necessidades e a demora no atendimento não deve nos arrefecer a fé. Tal como Jesus ensinou no “Pai Nosso”, na oração devemos, em primeiro lugar, louvar e agradecer, em seguida, formular os nossos pedidos.

Todos acreditamos que o Pai do céu sabe das nossas necessidades, então, vem a pergunta: por que devemos pedir-lhe algo, pois ele já sabe que nos falta? Qual o pai que não está sempre pronto para atender às carências dos seus filhos, mesmo sem que eles peçam? Sendo assim, porque Jesus ensina que o Pai do céu quer que sempre peçamos e de forma insistente? Pode parecer uma incoerência no ensinamento de Jesus, mas a verdade é que, embora Deus saiba das nossas necessidades, Ele quer a nossa colaboração, para que sejamos merecedores. Quando Jesus diz “orai sempre, orai sem cessar”, isso não significa ficar o dia todo de joelhos, com o terço na mão ou com um livro devocional, recitando coleções de preces das mais diversas espécies seguindo formulários já prontos, mas sim que todos os atos da nossa vida toda devem ser uma constante oração. Nós estamos orando não apenas quando pronunciamos palavras ou quando as temos no pensamento, mas a nossa oração se expande para as nossas atividades rotineiras, quando através do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos, estamos manifestando aos irmãos elementos concretos da nossa fé, pelo nosso testemunho de vida do evangelho. Esta é a colaboração que Deus espera de nós. Podemos ver isso nos textos litúrgicos deste domingo.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 8-13), lemos o episódio da batalha dos hebreus com os amalecitas, contando com a participação ativa de Moisés, à distância. Enquanto as tropas lutavam, as mãos de Moisés erguidas para o céu carreavam a vitória para os israelitas; quando Moisés abaixava os braços, os amalecitas levavam vantagem. Contudo, pela idade e pelo longo tempo naquela posição, Moisés não conseguia manter os braços levantados por muito tempo e isso punha em risco o resultado da batalha. Então, seus auxiliares Ur e Aarão apoiaram os braços de Moisés, para que ele conseguisse mantê-los erguidos até a vitória final dos israelitas. Excluindo desse episódio o seu conteúdo violento da batalha, podemos descobrir no ato de Moisés levantar os braços uma atitude de oração, que deve ser contínua e persistente. Abaixar os braços significa fraquejar na oração, o que acontece, muitas vezes, na nossa vida de pessoas imperfeitas. Daí a necessidade que Moisés teve de ser ajudado por seus assessores. Isso significa a necessidade que nós temos de buscar apoio e solidariedade na comunidade dos irmãos. O Papa Francisco, num sermão aos peregrinos em Roma, chamou a atenção para a importância da oração compartilhada. A oração solitária tem seu valor, sem dúvida, mas para ele ser mais fortalecida, precisa de ser realizada com a comunidade. Daí a importância da liturgia, da oração comunitária, da missa, das atividades devocionais realizadas no templo. Nos momentos desta oração eclesial, os nossos braços simbólicos erguidos ao céu, tais como os de Moisés, são ajudados pela comunidade, para que as nossas forças sejam multiplicadas. Nesses momentos, ocorre uma colaboração recíproca: ao mesmo tempo em que os irmãos nos ajudam a manter os “braços erguidos”, cada um de nós também ajuda o outro no mesmo sentido. Sem deixar de reconhecer a importância da oração individual, interior, devemos também reconhecer a importância da oração comunitária, como forma de exercer uma troca recíproca de energias e um ressoar mais forte do nosso brado orante.

Na segunda leitura, prosseguindo com o texto da 2a carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida já há vários domingos, temos hoje o trecho em que o Apóstolo adverte o seu discípulo sobre a leitura orante da Sagrada Escritura: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça.” (2Tim 3, 16) A oração da comunidade sempre deve ter como ponto de referência a Escritura, pois é dela que retiramos os conteúdos mais próprios para compor a nossa oração e os ensinamentos mais eficazes para se transformarem em ações na nossa vida cotidiana. É esse o sentido da liturgia da palavra, que compõe a primeira parte da celebração da missa. Além disso, a Palavra também tem o dom de aconselhar diante de situações problemáticas da vida e de repreender o nosso comportamento, quando ele se distancia daquilo que Deus quer de nós. Por isso, Paulo exorta a Timóteo: “eu te peço com insistência – proclama a palavra” (4,1), insiste, admoesta quer agrade, quer desagrade, usando de toda paciência e doutrina. As Sagradas Escrituras “têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tim 3, 15) Não devemos, contudo, entender essa exortação como a simples leitura da Bíblia ou decorar trechos para ficar repetindo mecanicamente. Mais do que simplesmente ler a Bíblia, deve-se meditar a Bíblia, compreender a Bíblia, esta é a oração mais produtiva para o direcionamento das nossas práticas cristãs. Eu diria que a leitura do Novo Testamento deve ser preferida, dado o seu conteúdo cristológico mais explícito.

Na leitura do evangelho de Lucas (18, 1-8), Jesus recorre à sua conhecida pedagogia das parábolas para explanar de forma bem didática a sua doutrina sobre a oração. O próprio evangelista diz que o objetivo desta parábola é demonstrar a necessidade de orar sempre e nunca esmorecer. Mas antes de adentrar nesse conteúdo, eu gostaria de destacar a figura do juiz injusto, uma contradição em si mesma. Todos sabemos que o objetivo da função do juiz é distribuir a justiça. Assim pensando, um juiz injusto seria um antijuiz. Dentro das tribulações de cada dia, é bem possível que um juiz cometa injustiças, mas certamente isso não seria intencional, ao menos, não se espera isso de nenhum juiz. Pois bem, mas prescindindo do ofício de julgar típico da sociedade organizada, podemos também considerar que nós, que não somos juízes por profissão, por vezes nos tornamos juízes das ações dos nossos irmãos, quando avaliamos e tiramos conclusões sobre o comportamento das pessoas e podemos até ofendê-las com a falta de equilíbrio nos nossos julgamentos. Se para um juiz profissional a prática de atos injustos acarreta uma autocontradição, assim também para nós, quando nos tornamos juízes inescrupulosos das atitudes do nosso próximo, estamos contradizendo o significado mais profundo da fraternidade, que deve ser a marca registrada do cristão.

Passando agora ao tema da oração sem cessar, através da parábola do juiz injusto, Jesus nos ensina que devemos orar sempre e nunca perder a confiança. A viúva retratada na parábola insistiu por muito tempo com o juiz ímprobo, pedindo que ele lhe fizesse justiça. Por fim, o juiz resolveu atendê-la, ainda que não pelo seu amor à justiça, mas ao menos para livrar-se da importunação. Daí, Jesus conclui: se até um juiz injusto, diante da insistência de uma viúva, acaba por atendê-la, quanto mais o vosso Pai do céu, que é sempre justo, nunca deixará de atender os pedidos dos seus filhos. Ou seja, Jesus destaca nesse contexto o poder da oração para fazer acontecer na nossa vida aquilo do que nós realmente necessitamos. Isso não quer dizer que devamos todos os dias pedir a Deus para acertar sozinho na mega sena, até que um dia Deus vai atender, nem que seja para se livrar da importunação. Não se trata disso, claro. O que devemos pedir na oração é para sermos pessoas melhores, para conseguirmos superar as nossas fraquezas e imperfeições, para sermos sempre fiéis à nossa vocação de cristãos. A oração de quem simplesmente pede a Deus que lhe conceda bens materiais não se enquadra no conceito de orar sempre, que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Para conseguir obter bens materiais o que é preciso é ter disposição para trabalhar com afinco e dedicação na sua labuta profissional e, aí sim, vamos pedir a Deus que abençoe o nosso trabalho, para que os seus frutos sejam férteis e se multipliquem.

Uma prática devocional que é muito corriqueira no meio do nosso povo é “fazer promessas” aos santos para obter isso e aquilo. É uma espécie de “comércio” sagrado: dá-me isso que eu te darei aquilo. Certamente, não é esse o modelo de oração que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Tal como no caso de Moisés com os braços elevados ou no caso da viúva que insistia perante o juiz, o que Deus espera de nós é que façamos a nossa parte. Não se trata de desafiar ou chantagear Deus com uma promessa, pois Deus não precisa de nenhum favor nosso, ao contrário, nós é que precisamos dos favores divinos. Não se trata de fazer o pedido e ficar com os braços cruzados, esperando que um milagre aconteça simplesmente. O milagre vai acontecer se nós fizermos a nossa parte com fé, seriedade, sinceridade e persistência. O milagre vai acontecer na proporção do tamanho da nossa fé, da qual a oração deve ser a fiel expressão.

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