COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO
COMUM – ORAÇÃO E CONDUTA – 27.10.2019
Caros Leitores,
As leituras da liturgia deste 30º
domingo comum nos levam a meditar sobre a coerência que deve existir
entre o nosso interior e a nossa conduta, principalmente quando
oramos. A oração supõe sempre uma confissão de impotência e um
sentimento de humildade. A oração do humilde atravessa as nuvens e
não passará despercebida pelo Senhor. Ele é um justo juiz, que
consegue sondar os nossos sentimentos mais profundos e é inútil
tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência com palavreados
sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com os lábios, da
boca para fora, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo
que tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.
Na primeira leitura, extraída do livro
do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o
justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa
de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja
autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para ensinar aos
hebreus, numa época de mudanças sócio políticas, a fidelidade de
Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria
divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto
legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de
Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não
podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos
povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os
antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de
atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da
sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A
prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá
repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça
justiça aos justos e execute o julgamento.”
(Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas
perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com
coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá
encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus
compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas,
lido também neste domingo.
A segunda leitura, dando continuidade
ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos
anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo se
despede dizendo que combateu o bom combate, terminou a carreira e
guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele
agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu
sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé
e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória
a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com
tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o
tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta,
quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores,
esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo,
pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos
cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma
e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a
persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo
imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos
seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico
imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor,
e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa
de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os
historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição,
os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo,
tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes
riscos que isso acarretava.
Na leitura do evangelho deste domingo,
dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito
conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração
do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De
acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em
mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos,
nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é
clássica, pois foi reproduzida em inúmeras obras de arte: o fariseu
orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios e, ao mesmo tempo,
lançando um ar de desdém para o publicano, pecador público, que
estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano, em atitude de
humildade, rezava apenas pedindo perdão. Como em diversas outras
ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu para nos ensinar que as
ações exteriores não bastam, mas é necessário que essas sejam o
reflexo do nosso sentir interior. Os fariseus se consideravam justos
e automaticamente salvos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo
duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”), mas
faziam assim talvez por medo do castigo divino ou apenas para serem
vistos e elogiados pelos outros, ou seja, isso não correspondia a um
sentimento íntimo de piedade e de convicção. Por isso, tal oração
não tinha nenhum valor.
Observemos que Jesus não diz que o
fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser
cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si
próprio, ou seja, na sua falta de humildade, sua autosuficiência. O
livro do Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia
que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas
súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma
elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça,
não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que
julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o
seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a
salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa
justificado; o fariseu, não.
Podemos fazer aqui uma ligação com
outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta
do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas
pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que
tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais
do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o
fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna.
Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus
não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o
modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o
dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da
oferta, mas no seu egoísmo e no autojulgamento, isto é, no fato de
ele se considerar merecedor da salvação, confiando-se na sua
própria justiça e não na justiça divina.
Meus amigos, nesse contexto, devemos
nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10,
12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O
autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos
dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação
garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos
sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso
como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática
de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta,
não demonstram ser solidários. Essa atitude do fariseu, reprovada
por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na
nossa prática de cristãos, quando cumprimos nossos deveres
religiosos apenas por obrigação e sem refletir sobre o significado
eclesial de nossas atitudes, sobretudo quando tais atos são
acompanhados do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual
inconscientemente nos comparamos. Se eu vou à missa dominical e
recebo os sacramentos, mas na vida social não pratico a caridade com
os irmãos, meus atos religiosos são vazios de significado. A
parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de
exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre
cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros,
valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes,
censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos
surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna
exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para
que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso
próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso,
ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de
criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça pessoal,
deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.
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