COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO
COMUM – RICOS E POBRES – 29.09.2019
Caros Leitores,
Nas leituras litúrgicas deste domingo,
encontramos uma sequência da mesma temática do domingo anterior: a
responsabilidade na administração dos bens materiais. A imagem
anterior foi a do infiel administrador com sua elogiável esperteza.
Agora, Jesus usa a imagem do rico esbanjador, contando aos fariseus a
parábola do homem, em que casa abundavam futilidades, fazendo o
contraponto com o vizinho pobre, que não tinha nem o básico para
viver. Mas Jesus não afirma que o rico deveria repartir os seus bens
com o pobre vizinho e nem diz que o acúmulo da riqueza nas mãos de
algumas pessoas seja algo intrinsecamente mau. Contudo, adverte que
os bens dos mais abastados devem ser postos a serviço dos mais
necessitados, pois eles são apenas administradores da riqueza.
A primeira leitura, retirada do Profeta
Amós, contém uma advertência que é muito apropriada para os dias
atuais, quando a polarização do embate político põe em evidência
a disparidade existente entre as classes sociais. Este profeta, que
viveu cerca de 800 anos antes de Cristo, era um agricultor, uma
pessoa de baixa instrução e experimentou uma situação parecida
com a de hoje, em que há grande concentração de riqueza nas mãos
de uns poucos, enquanto a grande maioria da população sofre a falta
dos bens essenciais. A diferença é que o governo hebreu não
distribuía “bolsas” para melhorar a situação da pobreza e
muitos chegaram a ser escravizados, por não
terem
como
pagar as dívidas. Em tempos passados, a inadimplência podia
transformar
o devedor em
escravo do credor, o que era uma situação
desesperadora. Daí a grave advertência do Profeta contra “Os
que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo
cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que cantam ao som das
harpas, ou, como Davi, dedilham instrumentos musicais; os que bebem
vinho em taças, e se perfumam com os mais finos ungüentos e não se
preocupam com a ruína de José.
” (Amós 6, 4-6) O reino de Israel (naquela época, o povo hebreu
estava dividido em dois reinos – Israel ao norte e Judá ao sul)
passava por um momento de prosperidade, tendo vencido os inimigos e
auferido grandes riquezas, no entanto, apenas alguns privilegiados
usufruíam disso, em detrimento da maioria da população. Por isso,
o Profeta dirige sua ira contra os que dormem em camas de marfim e
deitam-se nas almofadas para se banquetear, sem tomar conhecimento da
carência dos demais cidadãos. Vemos que Amós não condena a
riqueza dos israelitas abastados, o que ele recrimina é a falta de
solidariedade com os carentes, com aqueles que estavam sendo
escravizados por não poderem pagar suas dívidas. Sendo Amós um
agricultor, ele conhecia bem a situação dos camponeses. Deus o
chamou a profetizar por causa da sua vida justa, mas também por
causa do conhecimento que ele possuía sobre a situação dos mais
necessitados. Porque sua pregação incomodava as autoridades
políticas e religiosas, Amós foi expulso da cidade, não sem antes
rogar uma praga no Sumo Sacerdote que o expulsara, além de anunciar
a ruína que viria sobre eles.
Na
segunda leitura, retirada da primeira carta de Paulo a Timóteo, o
Apóstolo continua chamando a atenção do seu
discípulo para
manter a fidelidade da sua vocação. “Combate
o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste
chamado e pela qual fizeste tua nobre profissão de fé diante de
muitas testemunhas.
” (1Tim
6, 12)
E acrescenta: “guarda
o teu mandato íntegro e sem mancha até a
manifestação gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo.
” (vers.
14) Timóteo
fora consagrado bispo por Paulo, para cuidar da igreja de Éfeso, que
era uma comunidade cheia
de muitas
tensões,
por causa da grande força dos pagãos do lugar. Paulo exorta Timóteo
a guardar a coerência das suas atitudes, não se deixando levar
pelas pressões que viesse a sofrer da parte dos poderosos. Consta na
história que Timóteo terminou sendo apedrejado por esses infiéis,
por questões religiosas. Fiel a Paulo e a Cristo, ele morreu
e não
fraquejou na sua fé.
Temos
no evangelho de Lucas (16, 19-31) aquela conhecida parábola de
Cristo sobre o rico esbanjador frente ao pobre e pestilento mendigo,
que esmolava na sua rua. Como de costume, a parábola narrada por
Jesus era dirigida aos fariseus e Lucas realça os detalhes, para
chamar a atenção dos seus leitores. É interessante observar aqui
duas coisas: 1. esta parábola consta apenas no evangelho de Lucas,
devendo ter sido colhida numa fonte que os demais evangelistas não
conheceram; 2. Jesus não diz o nome do rico, apenas do pobre
(Lázaro). É costume mencionar-se o “rico epulão” e isso pode
levar alguém a imaginar que este é o nome dele, no entanto,
“epulão” significa “comilão”, palavra derivada do verbo
latino “epulor” (banquetear-se). São Jerônimo, na sua tradução
da vulgata, escreveu que o rico se banqueteava diariamente (dives
epulabatur cotidie). Jesus faz um paralelo bem contrastante entre os
dois personagens, para chamar a atenção sobre o abismo social que
os distanciava. Um deles possuía bens em demasia, enquanto o outro
passava fome; o primeiro tinha uma casa luxuosa, o outro era um
morador de rua; o primeiro era saudável, alimentava-se bem, já o
outro era cheio de úlceras e esquelético de fome. A pedagogia dos
contrastes, adotada por Jesus, tinha como objetivo chamar a atenção
para a injustiça da riqueza que não é utilizada para atenuar o
sofrimento do pobre. Tal como o profeta Amós, muitos séculos antes,
Jesus não condenou o rico pelo fato de ele ser rico, mas sim por
causa do seu egocentrismo, da sua falta de solidariedade. O pobre
desejava pelo menos as migalhas que caíam da sua mesa, mas nem isso
lhe davam. (Lc 16, 21) Na época de Jesus, os fariseus eram os ricos
do povo, assim como no tempo de Amós, eram os sacerdotes de Israel
que faziam parte da classe social mais elevada. Tal como Amós
bradava contra o sacerdote Amasias, que terminou por expulsá-lo da
cidade, Jesus clamava para que os sacerdotes judeus saíssem da sua
redoma de autossuficiência e chegassem mais próximo do povo, que
eles dirigiam, deixando-os assim cada vez mais irados. Tanto quanto a
pregação de Amós incomodava o rei e os sacerdotes de Israel,
também a exortação de Jesus incomodava os doutores da lei do seu
tempo. Por fim, nem os ricos do tempo de Amós se converteram, nem
tampouco os fariseus, e ambos tiveram como resultado a destruição
da cidade pelos inimigos.
Merece
uma referência também aqui neste contexto o diálogo “post
mortem” de Abraão, junto de quem Lázaro foi
morar,
com o rico, que padecia no local dos tormentos. O rico fez dois
pedidos, ambos recusados: 1. manda que Lázaro molhe o dedo e me
refresque a língua; 2. manda que Lázaro vá avisar meus irmãos.
Quanto ao primeiro pedido, Jesus disse ser impossível, porque há um
grande abismo, intransponível entre
eles;
quanto ao segundo, Ele diz que os irmãos do rico não acreditariam
em Lázaro. Aqui nós podemos fazer as seguintes reflexões: a)
o
rico não cedeu suas migalhas ao pobre, no entanto, queria que este
fosse refrescar a sua língua com uma gota d'água,
ele se sentia merecedor, sem ter realizado nenhuma ação meritória;
b) o rico demonstrou solidariedade com os irmãos dele e queria que
Lázaro fosse avisá-los, porém não teve solidariedade com o
mendigo em sua porta; c) os fariseus, assim como aquele rico, não
davam ouvidos aos profetas e às escrituras, mas criavam suas
próprias regras religiosas, enquanto Jesus estava ali (como se fosse
Lázero
que veio avisar) e eles não lhe davam qualquer crédito; d) o “lugar
dos tormentos” (“inferno”,
segundo o texto latino)
não é um mar de fogo com o demônio empunhando um tridente, como
aparece nas gravuras medievais, mas era a própria consciência do
rico, que ardia em arrependimento.
Podemos
ainda avançar nessa linha de raciocínio, para concluir o seguinte:
Jesus disse que havia um grande abismo entre o local do gozo e o
local dos tormentos, mas quanto o rico pediu para que Lázaro fosse
avisar aos irmãos ainda vivos, Jesus não disse que isso era
impossível, disse apenas que eles não acreditariam. Esticando um
pouco essa interpretação, podemos alvitrar que Jesus não se
posicionou contrariamente à possibilidade de comunicação entre as
pessoas que estão no mundo do além com os viventes, apenas
referiu-se à incredulidade destes. “`Se
não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos'.”
(Lc
16, 31) Isso
é apenas um palpite, porque sabe-se que Lucas não escutou as
pregações de Jesus, então
não
se pode dizer que ele tenha ouvido Cristo
dizer isso.
Considerando, por outro lado, que os evangelhos foram escritos com
base em documentos produzidos
na comunidade da
época (as fontes esparsas), fica impossível afirmar-se com certeza
que tenha sido esta a mensagem de Cristo ou se foi o entendimento da
comunidade onde o texto original foi escrito. De qualquer forma,
podemos concluir que as primeiras comunidades cristãs não viam como
impossível a
comunicação com o outro mundo,
como posteriormente passou a ser afirmado pela doutrina teológica. A
cultura grega, dominante no ambiente em que esse texto foi escrito,
via essa comunicação entre o mundo dos mortos com o mundo dos vivos
como uma possibilidade. Os
filósofos órficos faziam “sessões secretas” onde, segundo
eles, isso acontecia.
Mas,
voltando ao tema básico da liturgia, a lição que retiramos das
leituras deste domingo é o uso responsável e caritativo dos bens
que Deus nos dá, ou seja, a solidariedade com os mais carentes.
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