COMENTÁRIO
LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI –
23.11.2019.
Caros Leitores,
O
34º domingo comum encerra o ano litúrgico com a celebração da
festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história,
esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no
período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num
momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão
do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia
triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação
por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A
intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não
tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina
com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com
atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de
Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos,
ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o
mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura
do rei perdeu muito a sua força devido a ser um personagem que não
faz parte da nossa realidade, não combina com a conjuntura política
mundial, pois os reinos são hoje praticamente inexistentes. O
conceito do reino, portanto, passa para o campo do simbolismo e da
utopia, no sentido do reino da paz e da concórdia, para a construção
do qual todos os cristãos somos convocados.
Passando
às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um
trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a
unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos
representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais
emblemáticas do Antigo Testamento,
juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, pois
os
dois fizeram
histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a
missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão
esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com
efeito, tanto
José,
esposo de Maria, quanto
ela própria eram
da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias
nasceria
de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família
de Davi. Portanto, essa leitura do
segundo livro de Samuel relaciona a realeza de
Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do
mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos
teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela
época, em que a realeza era a forma de governo dominante,
praticamente a única existente. E dentro da regra da
hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era
necessário demonstrar que era descendente de um rei.
Logo
nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava
demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo
familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento
das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa,
quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de
Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão
até chegar a Jesus. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi
até o cativeiro da Babilônia, outras 14, e do final do cativeiro
até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas,
isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das
letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14
como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com
w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no
hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será
D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz
parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.
Temos
na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20),
na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade
de Cristo. “Ele
é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação,
pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra,
as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e
poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.”
(2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos
qualificativos,
ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo,
embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as
coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da
ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de
Cristo, sem
citá-la.
Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de
Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o
tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de
Cristo na sua origem terrena.
O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no
plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque
Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar
consigo todos os seres.”
(2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra
“rei”,
Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para
realçar a Sua
personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a
figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós,
criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente
aplicada na teologia e na catequese.
No
evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos
eventos relativos à paixão de Jesus, quando Ele dialoga com os
ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles escarnece,
desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois
condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu
arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo
é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e
foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma
curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de
imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato,
existiu. Sabemos que os apóstolos haviam debandado e, diante da
cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à
distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse
diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e
Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem
mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que
modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas,
sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos
intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros
escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio,
podemos deduzir como probabilidade que tal diálogo tenha sido
escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o
segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que
participaram da execução, tenha se preocupado de prestar atenção
ao que os condenados falavam. E se João tivesse prestado atenção
nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito
provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram
despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa
capacidade que as mães têm para perceber mensagens até
subliminares no comportamento dos filhos.
Meus
amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à
figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o
soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da
fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem
de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu
trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer
todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É
disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar
exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas
vivências cotidianas.
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