COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM
AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 03.11.2019
Caros Leitores,
Neste domingo, celebramos a memória
litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1
para hoje, conforme o calendário oficial das festas religiosas. O
evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no
famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte
a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que
ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas
coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e
respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade.
Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana
dos nossos dias.
Pude observar que, na missa de hoje,
aqui na Paróquia, sendo o final de semana do dia de finados, o
templo estava lotado de uma forma não muito comum, numa demonstração
da valorização da fé religiosa na comunhão dos santos, através
da comemoração dos fiéis defuntos. Tradicionalmente, também os
cemitérios são superlotados nesse dia, pois ainda é um costume
muito forte na nossa cultura, quase uma obrigação. No meu modo de
entender, esse grande afluxo de pessoas que acorrem à celebração
do dia de finados está diretamente ligado com a imagem da imensa
multidão, descrita no Apocalipse de João, lido na liturgia de hoje,
tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João
coloca os 144 mil assinalados, representantes simbólicos das doze
tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo
dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo
devia ser seguida apenas por aqueles que eram herdeiros da promessa,
os judeus, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo
pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã
ganhou mesmo foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada
por todos os povos e nações”. Por fim, Paulo conseguiu
introduzir, com sucesso, o cristianismo no cerne da cidade então
capital do mundo, capital do Império Romano. De lá, estendeu-se por
toda a Europa e chegou até nós.
Em certo trecho lido hoje do Apocalipse
(Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: “quem
são essas pessoas?” João não soube responder e o próprio ancião
completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e
alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser
esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da
seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados de
Canindé e Juazeiro do Norte, fato notório em cada ano. Fico
imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro
quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do
Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico,
com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. Todos
sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero,
independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico.
Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração
deverá ser inenarrável. Eu creio, sinceramente, que o Papa
Francisco ainda celebrará essa cerimônia memorável. Aguardemos.
Meus amigos, a imagem joanina da grande
multidão nos reporta imediatamente para as romarias nordestinas, uma
forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos:
a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé.
Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau
de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem
que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa
e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João
fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não
estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já
seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se
acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs
presentes nos diversos lugares do planeta, vamos concluir que
incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs
separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, vamos
compreender que não houve exagero na profecia de João, pois dentro
de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente
batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.
A segunda leitura, que também é da
autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde
já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em
nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro,
“quando Jesus se manifestar,
seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo
3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser
chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de
modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente
que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde
já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo,
que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada
divina. Essa verdade de
fé
é descrita na teologia como a dialética
do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém,
ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer,
no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim
explica essa doutrina: “A
salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é
mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado,
futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra
infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação
ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo
retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há
também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação
constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa
conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”.
Achei
interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas
cristãs, prega-se a “justificação” do fiel em Cristo, mas o
teólogo explica que o conceito de salvação vai
muito além da
simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no
mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente
com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse
conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da
nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como
encobertas por um véu, como
diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque
agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face;
agora
conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido”
[1Coríntios 13].
A
riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o
famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de
bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer
que somos santos. Em latim, a
palavra
bem aventurados diz-se
'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se
traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do
evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de
bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas
desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo
uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos
de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está
nas mãos de Deus, “Depois
de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os
provou e achou dignos de si.” (Sb
3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque
serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas
suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade
triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a
bem-aventurança,
a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se
de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade.
Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da
santidade é
aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de
algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a
serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário
desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar
da autêntica santidade.
É
importante refletir sobre o conceito de santidade, porque há um
compreensão
distorcida
desse termo, entendendo que apenas aqueles fiéis que foram
canonizados pela
Igreja podem ser chamados com o nome de santos. Aqueles são, sem
dúvida, porém eles estão ali como exemplos para nós, como modelos
de vida cristã, cujas virtudes foram oficialmente reconhecidas. A
festa litúrgica
de Todos os Santos não significa uma forma de homenagear
todos os
canonizados,
por
não ser
possível reservar
um
dia do ano para cada um. Na verdade, o contexto
teológico
se refere à
“comunhão dos santos”, uma verdade de fé que une os fiéis
cristãos que nos antecederam e nos deixaram o exemplo de sua fé a
nós, que ainda estamos a
caminho.
Todos fazemos
parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. Todos
somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se
desviaram do caminho, não estão segregados desse chamamento.
Aproveitemos a
data para
repensar o nosso conceito de santidade.
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