quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - 06.10.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – O TAMANHO DA FÉ – 06.10.2019

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, as leituras litúrgicas abordam o tema da fé e a sua inserção na nossa vida cotidiana, questionando-nos sobre o tamanho da nossa fé (se é que podemos medi-la). A vivência na fé é um exercício reflexivo permanente, dinâmico, sempre em progresso, aumentando cada vez que somos capazes de perceber e compreender a ação de Deus na nossa vida. O resultado da fé é a justiça. O justo vive pela fé. Observando os fatos da vida cotidiana à luz da fé, podemos descobrir a mão de Deus no comando dos acontecimentos, até nos menores detalhes. Sobretudo em tempos sociais conturbados, mais ainda deverá iluminar-nos a nossa fé.

Na primeira leitura, retirada do profeta Habacuc (trechos dos cap. 1 e 2), vemos o profeta reclamando de Javeh porque clama e não é atendido. Habacuc tem a ousadia de questionar Javeh: “até quando clamarei sem que me atendas?”, o que é uma atitude incomum no Antigo Testamento, onde a figura de Javeh é mostrada como um Deus irado e vingativo, quase intolerante. Interpelar Javeh dessa forma era uma atitude arriscada. Mas o profeta não tinha dúvidas de que fazia a súplica do modo correto e esperava o resultado, no entanto, nada acontecia. Javeh, então, mostrou a Habacuc uma visão desoladora, da qual ele teve muito medo, e Javeh disse: escreve isso em tábuas, para que fique fácil para a leitura pelo povo. Naquela época, poucas pessoas dominavam a leitura, era necessário ter uma grande clareza. Escreve e espera, porque ainda nesta geração, essas coisas acontecerão: “Os infiéis morrerão, mas os justos viverão pela sua fé.” A grande catástrofe que estava por vir contra os infiéis era a derrota pra os exércitos da Babilônia, a destruição de Jerusalém e a condução do povo hebreu como escravos daquele país. O profeta ficou deveras preocupado, porque pedia a Deus um castigo para o povo infiel, mas não imaginava que Ele fosse tão impiedoso. O próprio Habacuc foi levado como escravo para a Babilônia, algum tempo depois, de acordo com a promessa de Javeh. No entanto, sendo justo, ele sobreviveu e foi libertado, também de acordo com a promessa de Javeh.

Na segunda leitura, sequência da carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida nos domingos anteriores, o Apóstolo exorta o discípulo a permanecer firme na fé, “pois Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e sobriedade.” (2Tim 1,7). Paulo escreveu esta carta enquanto estava preso, aguardando julgamento pelo tribunal romano, por causa da sua fé em Jesus Cristo e convida Timóteo a sofrer com ele. Na carta a Filipenses (1, 21), Paulo também escreveu que “para mim, viver é Cristo e morrer é lucro”, porque ele sabia muito bem que a morte não tiraria a sua vida na fé em Cristo, pelo contrário, morrer pela fé apenas abrevia os sofrimentos e introduz o fiel na vida plena. Paulo escreveu diversas cartas enquanto estava preso e, em todas elas, dá o testemunho de sua fé irrestrita, mesmo antevendo as provações que o aguardavam. Ele compreendia muito bem a palavra de Javeh ao profeta Habacuc: o justo vive pela fé.

Na leitura do evangelho (Lc 17, 5-10), vemos exemplos práticos dados pelo próprio Cristo sobre a avaliação que cada um pode fazer da medida da sua fé. É a conhecida passagem: “'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria. ” (Lc 17, 6) Meus amigos, é hora de cada um de nós baixar a cabeça e refletir sobre o “tamanho” da nossa fé. Talvez seja necessário usar uma grande lupa para podermos observá-la. Um grão de mostarda é menor do que um caroço de arroz cru, do que uma semente de gergelim. É óbvio que se trata de um raciocínio metafórico, porque a fé não pode ser comparada a um objeto físico. Mas se alguém fizer uma comparação entre a sua altura e o tamanho de uma semente dessas, verá uma enorme desproporção. Assim também deverá acontecer quando compararmos a altura da nossa soberba com o tamanho da nossa fé. E imaginemos que essa fé, ainda que minúscula, seria capaz de transportar uma montanha. Nem vamos continuar essa linha de raciocínio, para não resultar em desânimo, porque nossa fé é mesmo muito pequena.

Refletindo sobre o tema da fé, vale recordar o evangelho de Mateus, cap. 14, onde lemos aquele conhecido episódio em que os discípulos estavam pescando à noite, com um mar agitado, e viram Jesus caminhando sobre as águas. Pedro, como sempre, impetuoso, disse logo: posso ir também? E Jesus disse: Vem. Mas logo ele começou a afundar. “E Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt 14, 31). Homens de pouca fé é o que nós também somos. Quantas vezes, nos lamentamos diante de certas ocorrências e até pensamos que Deus se esqueceu de nós. Nesse momento, deve soar no nosso ouvido a advertência de Jesus a Pedro: Homem de pouca fé, por que duvidaste? O justo viverá pela sua fé, ecoa do outro lado a visão do profeta Habacuc.

Acerca da fé, o autor da carta aos Hebreus faz a definição talvez mais perfeita em linguagem humana: “A é uma posse antecipada do que espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem.” (Hb 11,1) Para a teologia cristã, a fé é um estado de espírito no qual a pessoa se envolve irresistivelmente com o objeto de sua crença, convencendo-se da realidade invisível por meio de uma experiência existencial profunda. Em vista de uma melhor compreensão deste fenômeno, ao longo do tempo, os teólogos têm buscado na filosofia um auxílio racional para esclarecer o sentido do enigma que envolve a fé. Os grandes expoentes da filosofia e teologia medievais foram unânimes em afirmar que não existe oposição, mas uma relação de complementaridade entre a fé e a razão. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno, sempre defenderam esse ponto de vista, o que vem servindo de apoio logístico para a doutrina teológica até os dias de hoje.

O Papa Francisco, no ano de 2013, publicou uma encíclica, cujo rascunho fora escrito por Bento XVI, mas que o Papa concluiu e publicou em nome próprio. Trata-se da encíclica “Lumen Fidei” (Luz da Fé). No n.º 7 desse documento, ele admite isso: «Estas considerações sobre a fé - em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição». E no número 32, ele prossegue: “O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias.” A antiga formação seminarística, no curso de filosofia, abordava exatamente essas “contribuições” dos filósofos antigos e medievais para o melhor esclarecimento da fé, pois o curso era baseado na filosofia tomista. Lamentavelmente, o curso seguido pelos seminaristas de hoje já não segue essa perspectiva, em vez disso, carrega forte acento no pensamento filosófico contemporâneo, o qual não fornece base teórica suficiente para o entendimento do pensamento teológico católico, totalmente ainda embasado na filosofia medieval. Por isso, percebe-se claramente a diferença quando se ouve uma homilia de um sacerdote mais antigo, em comparação com os presbíteros mais modernos, em relação ao fundamento filosófico que cada um demonstra (ou não) possuir.

Nos tempos modernos, a tecnologia e o cientificismo tendem a anular a fé ou mostrá-la como atitude de pessoas fracas e sem argumentos. A fé ficou associada à escuridão, adverte o Papa. Mister se faz encontrar o seu verdadeiro sentido. Ora, se na época de Cristo, os discípulos pediram para que Ele lhes aumentasse o tamanho da fé, quando mais devemos pedir isso nos tempos atuais. É útil ter sempre em mente a advertência do profeta Habacuc: o justo viverá por sua fé. Uma maneira didática de obter um aumento da fé é buscar sempre encontrar a mão de Deus nos acontecimentos da nossa vida. Assim, estaremos continuamente aumentando o tamanho da nossa fé.

Permitam-me os leitores um breve comentário, dirigido especialmente ao ex-seminaristas de Messejana. Falando em cativeiro da Babilônia, no contexto da primeira leitura, vem logo à mente aquela conhecida ária de Giuseppe Verdi “Va Pensiero”, na qual o compositor retrata a situação dos hebreus cativos a chorar e a lamentar-se, lembrando de Sião. O castigo de Javeh foi realmente muito severo e o povo compreendeu o tamanho da sua infidelidade. “Oh mia patria, si bella e perduta... oh membranza si cara e fatal”. Esta bela página musical evoca muitas lembranças e emoções dos Colegas, que embora não estivessem cativos e nem residissem na Babilônia geográfica, de todo modo encontravam-se em autoexílio nas paragens messejanenses, décadas atrás. Va, pensiero, sull'alli dorate, va, ti posa sul Seminario Serafico...

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