COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO
COMUM – A COMUNHÃO DOS SANTOS – 10.11.2019
Caros Leitores,
Neste 32º domingo comum, a liturgia
ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como
tema a crença na vida eterna ou, como ensina a teologia, a comunhão
dos santos. Essa foi uma nova leitura da lei mosaica, trazida por
Jesus Cristo, causando polêmica entre os grupos judaicos, porque nem
todos acreditavam na eternidade. “O nosso Deus é Deus dos vivos,
não dos mortos”, disse Jesus aos saduceus. O culto dos mortos e a
comunicação com eles era admitida, embora secretamente, na Grécia
antiga, pelos órficos. Na cultura romana, a crença na vida após a
morte estava presente nas tradições familiares, com os deuses
“lares” e “penates”, que eram cultuados no interior das
famílias. Na tradição cristã, observam-se divergências não
propriamente na crença na vida eterna, mas na forma de prestar culto
aos mortos. O catolicismo tem como sua principal fonte doutrinária
sobre esses rituais funerários os dois livros de Macabeus, porém os
protestantes consideram esses livros como apócrifos e discordam da
doutrina católica.
Primeiro, uma breve explicação
histórica. O nome Macabeu era o apelido dado a Judas, filho de
Matatias, que foi sucessor daquele no comando do exército rebelde de
Israel, no tempo em que o povo hebreu estava dominado pelos
selêucidas. Os judeus não eram escravos, mas eram submissos
politicamente ao rei Antíoco. O grande problema trazido por essa
dependência dizia respeito a dificuldades para a observância da lei
de Moisés, por imposição dos dominadores. Matatias organizou um
exército formado por pessoas que não concordavam com essa dominação
e permaneciam fiéis à lei mosaica, e enfrentou o exército do
opressor com tática de guerrilhas, vencendo sucessivamente até
retomar Jerusalém e fazer a rededicação do Templo, que havia sido
profanado. Com a morte de Matatias, assumiu o comando das tropas o
filho dele, de nome Judas, que por suas atitudes sempre firmes e
exitosas foi apelidado de “macabeu”, que significa “martelo”.
Ele era um martelo que detonava sobre as cabeças dos inimigos. Os
dois livros de Macabeus não estão na Bíblia hebraica primitiva,
mas seu conteúdo é considerado de grande valor histórico, por
relatar um período importante da história de Israel. A Igreja
Católica o colocou no seu cânon, tendo sido esse um dos motivos do
“protesto” de Lutero, que não os aceitava.
Pois bem, a primeira leitura da
liturgia de hoje traz um trecho do segundo livro de Macabeus (7,
1-14), que narra o episódio em que uma mulher e seus sete filhos,
que eram fiéis seguidores do judaísmo, foram levados à presença
do rei Antíoco, que os obrigava a comer carne de porco, o que era
proibido pela lei de Moisés. Todos se recusaram e foram assassinados
um após o outro, inclusive a mãe deles. Mas, à parte essas cenas
sangrentas, o objetivo da leitura é demonstrar a fé que essa
família tinha na vida eterna. Todos deram testemunho perante o rei e
seus comparsas sobre a fidelidade à lei de Moisés, preferindo a
morte a transgredir a lei, demonstrando a sua crença na vida após a
morte. Diz a leitura que o rei e seus cortesãos ficaram admirados
com a coragem de um dos filhos da viúva, um adolescente, que ao ser
torturado, fez uma emocionante profissão de fé: “E
disse, cheio de confiança: 'Do Céu recebi estes membros; por causa
de suas leis os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo'.
” (2Mc 1, 11) Não faz parte do trecho lido, mas o redator destaca
que a mãe deles os incentivou a cada um, diante da morte iminente,
para que se mantivessem firmes na fé, confiantes na promessa da vida
eterna. A tradição não guardou os nomes desses heróis do
judaísmo, mas o seu exemplo continua edificante. Comer a carne de
porco podia parecer algo insignificante, se comparado ao resultado
que os esperava, mas a sua firmeza na fé era tamanha que suportaram
todos os suplícios, para não violarem a lei. Por falar nisso, ainda
hoje, entre os protestantes, algumas agremiações ainda consideram a
carne de porco um alimento proibido, em obediência à lei de Moisés.
A hermenêutica teológica católica não recomenda essa
interpretação restrita e literal dos textos sagrados, devendo o
fiel dar preferência à mensagem neles contida.
A segunda leitura é retirada da carta
de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2,16-3,5). Conforme os biblistas, a
primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das
primeiras escritas por Paulo. Naquela cidade, Paulo teve um entrevero
com os judeus, por isso, teve de fugir de lá para não sofrer
violência deles. Daí por que, na segunda carta, Paulo escreveu
assim: “Rezai
também para que sejamos livres dos homens maus e perversos pois nem
todos têm a fé! Mas o Senhor é fiel; ele vos confirmará e vos
guardará do mal.”
(2Ts 3, 2-3) Essa polêmica com os judeus de Tessalônica fez com que
circulassem por lá boatos sobre uma carta falsa de Paulo, que teria
chegado depois. Por esse motivo, a segunda carta aos Tessalonicenses
tem sua autoria posta em dúvida por alguns estudiosos protestantes,
porém entre os teólogos católicos, tais dúvidas não são
relevantes. A grande questão se situa no fato de que, na primeira
carta, Paulo falava que Cristo estava para voltar, o que fez os
tessalonicenses interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles
dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só
esperando o retorno de Cristo. Na segunda carta, Paulo os tranquiliza
dizendo que a vinda de Cristo não seria assim de surpresa, porém
antecedida por muitos sinais. Os dissidentes encontram nessas duas
passagens motivos para duvidar da sua autenticidade, como se Paulo
estivesse ensinando doutrinas diferentes. A meu ver, essa polêmica é
resultado da interpretação puramente literal dos textos, sem a
necessária contextualização histórica. A relação com o tema
litúrgico está justamente na exortação de Paulo para que todos
perseverem firmes na fé, esperando a nova vinda de Cristo.
Na leitura do evangelista Lucas (20,
27-38), vemos Jesus explicar aos saduceus a doutrina da ressurreição,
sobre a qual eles duvidavam e colocavam questões. Os saduceus eram
os judeus da aristocracia, aqueles que ocupavam os cargos políticos
mais elevados, inclusive como membros do Sinédrio. Apoiavam os
romanos e preocupavam-se mais com a política do que com a religião.
Diferentemente dos fariseus, que sempre tentavam colocar Jesus em
dificuldades, os saduceus foram interrogá-lo sobre a doutrina da
ressurreição, porque compreendiam a vida eterna da mesma forma como
a vida atual. Jesus vai, então, explicar que após a morte “os
que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de
participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em
casamento (27,
35)“, isto é, a
vida futura não pode ser comparada com as relações da vida
terrena. E faz lembrar a eles, que assim como os fariseus, também
cumpriam à risca a lei de Moisés, que a doutrina da ressurreição
já está presente na Torah, basta eles entenderem: “Que
os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da
sarça, quando chama o Senhor de 'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac
e o Deus de Jacó'.
” (Lc 27, 37) Ou seja, o Deus de Israel não é Deus dos mortos,
mas dos vivos. Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em Javeh porque
ressuscitaram. Embora não tenha utilizado essa palavra, no entanto,
Moisés já ensinara sobre a ressurreição. Portanto, o que Jesus
estava dizendo era algo que já estava contido na lei mosaica,
bastando uma leitura mais atenta e com a mente mais aberta.
Meus amigos, essa doutrina da vida
eterna, da ressurreição, da comunhão dos santos é um dos pontos
chaves do cristianismo. Paulo foi muito enfático em 1Cor 15, 14,
quando afirmou que se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. A
ressurreição de Cristo é a chave para a nossa crença na vida
eterna. No Antigo Testamento, a vida futura era apenas presumida, por
conta da aliança e da promessa de Javeh, motivo pelo qual os judeus
acreditavam que os seus Patriarcas permaneciam vivos, embora sem
saber muito bem como isso acontecia. Mas no Novo Testamento, com a
ressurreição de Cristo, essa crença é confirmada por inúmeros
fatos e testemunhos do seu aparecimento e da catequese que ele
continuou a ministrar aos apóstolos, até o dia de Pentecostes. A
partir da ressurreição de Cristo, a crença na vida eterna não é
apenas uma presunção, mas uma verdade que inclui uma certeza de que
aqueles que forem fiéis ao Evangelho também ressuscitarão. Daí
porque os livros de Macabeus são postos no rol dos livros canônicos,
por uma questão de coerência doutrinária. Na liturgia deste
domingo, essas leituras são colocadas em conjunto para mostrar a
compatibilidade entre elas acerca desse polêmico tema. Porém,
devemos estar atentos à exortação de Jesus aos saduceus: na vida
eterna, as relações pessoais serão de outra ordem, para isso, não
servem de parâmetros as regras sociais de convivência entre as
pessoas. Lá, todos serão iguais a anjos (Lc 27, 36), por esse
motivo a doutrina do espiritismo não se coaduna com a doutrina
católica sobre a vida eterna, por fazer uma simples transferência
dos modos relacionais na vida terrena e na vida espiritual.
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