quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - 10.11.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – A COMUNHÃO DOS SANTOS – 10.11.2019

Caros Leitores,

Neste 32º domingo comum, a liturgia ainda repercute a celebração dos fiéis defuntos, trazendo como tema a crença na vida eterna ou, como ensina a teologia, a comunhão dos santos. Essa foi uma nova leitura da lei mosaica, trazida por Jesus Cristo, causando polêmica entre os grupos judaicos, porque nem todos acreditavam na eternidade. “O nosso Deus é Deus dos vivos, não dos mortos”, disse Jesus aos saduceus. O culto dos mortos e a comunicação com eles era admitida, embora secretamente, na Grécia antiga, pelos órficos. Na cultura romana, a crença na vida após a morte estava presente nas tradições familiares, com os deuses “lares” e “penates”, que eram cultuados no interior das famílias. Na tradição cristã, observam-se divergências não propriamente na crença na vida eterna, mas na forma de prestar culto aos mortos. O catolicismo tem como sua principal fonte doutrinária sobre esses rituais funerários os dois livros de Macabeus, porém os protestantes consideram esses livros como apócrifos e discordam da doutrina católica.

Primeiro, uma breve explicação histórica. O nome Macabeu era o apelido dado a Judas, filho de Matatias, que foi sucessor daquele no comando do exército rebelde de Israel, no tempo em que o povo hebreu estava dominado pelos selêucidas. Os judeus não eram escravos, mas eram submissos politicamente ao rei Antíoco. O grande problema trazido por essa dependência dizia respeito a dificuldades para a observância da lei de Moisés, por imposição dos dominadores. Matatias organizou um exército formado por pessoas que não concordavam com essa dominação e permaneciam fiéis à lei mosaica, e enfrentou o exército do opressor com tática de guerrilhas, vencendo sucessivamente até retomar Jerusalém e fazer a rededicação do Templo, que havia sido profanado. Com a morte de Matatias, assumiu o comando das tropas o filho dele, de nome Judas, que por suas atitudes sempre firmes e exitosas foi apelidado de “macabeu”, que significa “martelo”. Ele era um martelo que detonava sobre as cabeças dos inimigos. Os dois livros de Macabeus não estão na Bíblia hebraica primitiva, mas seu conteúdo é considerado de grande valor histórico, por relatar um período importante da história de Israel. A Igreja Católica o colocou no seu cânon, tendo sido esse um dos motivos do “protesto” de Lutero, que não os aceitava.

Pois bem, a primeira leitura da liturgia de hoje traz um trecho do segundo livro de Macabeus (7, 1-14), que narra o episódio em que uma mulher e seus sete filhos, que eram fiéis seguidores do judaísmo, foram levados à presença do rei Antíoco, que os obrigava a comer carne de porco, o que era proibido pela lei de Moisés. Todos se recusaram e foram assassinados um após o outro, inclusive a mãe deles. Mas, à parte essas cenas sangrentas, o objetivo da leitura é demonstrar a fé que essa família tinha na vida eterna. Todos deram testemunho perante o rei e seus comparsas sobre a fidelidade à lei de Moisés, preferindo a morte a transgredir a lei, demonstrando a sua crença na vida após a morte. Diz a leitura que o rei e seus cortesãos ficaram admirados com a coragem de um dos filhos da viúva, um adolescente, que ao ser torturado, fez uma emocionante profissão de fé: “E disse, cheio de confiança: 'Do Céu recebi estes membros; por causa de suas leis os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo'. ” (2Mc 1, 11) Não faz parte do trecho lido, mas o redator destaca que a mãe deles os incentivou a cada um, diante da morte iminente, para que se mantivessem firmes na fé, confiantes na promessa da vida eterna. A tradição não guardou os nomes desses heróis do judaísmo, mas o seu exemplo continua edificante. Comer a carne de porco podia parecer algo insignificante, se comparado ao resultado que os esperava, mas a sua firmeza na fé era tamanha que suportaram todos os suplícios, para não violarem a lei. Por falar nisso, ainda hoje, entre os protestantes, algumas agremiações ainda consideram a carne de porco um alimento proibido, em obediência à lei de Moisés. A hermenêutica teológica católica não recomenda essa interpretação restrita e literal dos textos sagrados, devendo o fiel dar preferência à mensagem neles contida.

A segunda leitura é retirada da carta de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 2,16-3,5). Conforme os biblistas, a primeira carta aos fiéis de Tessalônica teria sido uma das primeiras escritas por Paulo. Naquela cidade, Paulo teve um entrevero com os judeus, por isso, teve de fugir de lá para não sofrer violência deles. Daí por que, na segunda carta, Paulo escreveu assim: “Rezai também para que sejamos livres dos homens maus e perversos pois nem todos têm a fé! Mas o Senhor é fiel; ele vos confirmará e vos guardará do mal.” (2Ts 3, 2-3) Essa polêmica com os judeus de Tessalônica fez com que circulassem por lá boatos sobre uma carta falsa de Paulo, que teria chegado depois. Por esse motivo, a segunda carta aos Tessalonicenses tem sua autoria posta em dúvida por alguns estudiosos protestantes, porém entre os teólogos católicos, tais dúvidas não são relevantes. A grande questão se situa no fato de que, na primeira carta, Paulo falava que Cristo estava para voltar, o que fez os tessalonicenses interpretarem como se isso fosse ocorrer naqueles dias. Alguns até ficaram sem trabalhar e sem fazer mais nada, só esperando o retorno de Cristo. Na segunda carta, Paulo os tranquiliza dizendo que a vinda de Cristo não seria assim de surpresa, porém antecedida por muitos sinais. Os dissidentes encontram nessas duas passagens motivos para duvidar da sua autenticidade, como se Paulo estivesse ensinando doutrinas diferentes. A meu ver, essa polêmica é resultado da interpretação puramente literal dos textos, sem a necessária contextualização histórica. A relação com o tema litúrgico está justamente na exortação de Paulo para que todos perseverem firmes na fé, esperando a nova vinda de Cristo.

Na leitura do evangelista Lucas (20, 27-38), vemos Jesus explicar aos saduceus a doutrina da ressurreição, sobre a qual eles duvidavam e colocavam questões. Os saduceus eram os judeus da aristocracia, aqueles que ocupavam os cargos políticos mais elevados, inclusive como membros do Sinédrio. Apoiavam os romanos e preocupavam-se mais com a política do que com a religião. Diferentemente dos fariseus, que sempre tentavam colocar Jesus em dificuldades, os saduceus foram interrogá-lo sobre a doutrina da ressurreição, porque compreendiam a vida eterna da mesma forma como a vida atual. Jesus vai, então, explicar que após a morte “os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento (27, 35)“, isto é, a vida futura não pode ser comparada com as relações da vida terrena. E faz lembrar a eles, que assim como os fariseus, também cumpriam à risca a lei de Moisés, que a doutrina da ressurreição já está presente na Torah, basta eles entenderem: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de 'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. ” (Lc 27, 37) Ou seja, o Deus de Israel não é Deus dos mortos, mas dos vivos. Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em Javeh porque ressuscitaram. Embora não tenha utilizado essa palavra, no entanto, Moisés já ensinara sobre a ressurreição. Portanto, o que Jesus estava dizendo era algo que já estava contido na lei mosaica, bastando uma leitura mais atenta e com a mente mais aberta.

Meus amigos, essa doutrina da vida eterna, da ressurreição, da comunhão dos santos é um dos pontos chaves do cristianismo. Paulo foi muito enfático em 1Cor 15, 14, quando afirmou que se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. A ressurreição de Cristo é a chave para a nossa crença na vida eterna. No Antigo Testamento, a vida futura era apenas presumida, por conta da aliança e da promessa de Javeh, motivo pelo qual os judeus acreditavam que os seus Patriarcas permaneciam vivos, embora sem saber muito bem como isso acontecia. Mas no Novo Testamento, com a ressurreição de Cristo, essa crença é confirmada por inúmeros fatos e testemunhos do seu aparecimento e da catequese que ele continuou a ministrar aos apóstolos, até o dia de Pentecostes. A partir da ressurreição de Cristo, a crença na vida eterna não é apenas uma presunção, mas uma verdade que inclui uma certeza de que aqueles que forem fiéis ao Evangelho também ressuscitarão. Daí porque os livros de Macabeus são postos no rol dos livros canônicos, por uma questão de coerência doutrinária. Na liturgia deste domingo, essas leituras são colocadas em conjunto para mostrar a compatibilidade entre elas acerca desse polêmico tema. Porém, devemos estar atentos à exortação de Jesus aos saduceus: na vida eterna, as relações pessoais serão de outra ordem, para isso, não servem de parâmetros as regras sociais de convivência entre as pessoas. Lá, todos serão iguais a anjos (Lc 27, 36), por esse motivo a doutrina do espiritismo não se coaduna com a doutrina católica sobre a vida eterna, por fazer uma simples transferência dos modos relacionais na vida terrena e na vida espiritual.

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