domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - 14.07.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEU PRÓXIMO – 14.07.2019



Neste 15º domingo do tempo comum, temos aquela leitura emblemática do texto de Lucas, conhecido como a parábola do “bom samaritano” e o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais importante: orar a Deus ou ajudar os irmãos? Resposta óbvia: os dois são importantes, claro. Sim, mas o que é preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e simples da lei. A misericórdia é a chave da porta que conduz à salvação, não basta a observância ritual e formalista dos mandamentos da lei.

Na primeira leitura, colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar, porque estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa onerosa, perigosa e demorada, tomando como referência o Mar Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares então conhecidos. Mas não, diz Moisés, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 14) Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é, aquela regra que cada um traz dentro de si mesmo e que a cultura costuma chamar de consciência.

De acordo com a doutrina tradicional, esta lei natural é inscrita em cada pessoa, na sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade, está situada no âmago da razão humana, como sua fonte permanente de inspiração e de avaliação de conduta. No entanto, os filósofos da modernidade passaram a contestar essa noção de lei inata como algo próprio da natureza humana e passaram a afirmar que essas noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto não nos vêm embutidas na razão mesma, de forma inata, mas são aprendidas a partir das vivências e experiências de cada um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra básica de sempre fazer o bem. Se observarmos cuidadosamente o conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-lo e adorá-lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito comum entre os povos contemporâneos. Todos os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim confirmar e cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas vezes. O exemplo mais claro e pedagógico que Jesus deixou de como deve ser o nosso cumprimento da lei se encontra na parábola do “bom samaritano”.

O evangelista Lucas (10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei? Eram os escribas, os sábios instruídos na lei de Moisés, os rabinos, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos da lei dada por Javeh a Moisés, podendo ser eles sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei sabia (mais do que as outras pessoas) o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais fervorosos e formalistas, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio perguntar-lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: me diga o que está na Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei para assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o fariseu ficou desapontado. Em outras palavras, Jesus estava dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se encontra no coração de cada homem, esta lei não passa, não muda, esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos desde as épocas mais antigas e em todos os lugares do mundo, o mandamento de fazer o bem sempre esteve persente em todas as culturas. Não é necessário que os parlamentos a aprovem, pois ela já se mostra evidente e presente por si mesma, reconhecida pela sadia racionalidade.

Pois bem, disso o fariseu já sabia. Mas para o cumprimento pleno da Lei, é preciso amar também o próximo. Daí ele pergunta: e quem é esse próximo, que eu devo amar? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, ambos judeus, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: um judeu igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam se dirigindo ao templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam mesmo com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.

E para completar a ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que fez a coisa certa. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma rixa terrivel com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram intrigados entre si e não se falavam. De propósito, Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei, para que ele tirasse a conclusão: quem desses três, ao seu ver, foi o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha alternativa senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.

Mas, enfim, como é cumprir plenamente a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento formal da lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles deviam ter seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso implicasse no atraso de outras obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a novena, a missa, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se ponderarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - 07.07.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A PAZ E O BEM – 07.07.2019



A liturgia deste 14º domingo do tempo comum tematiza o envio de setenta e dois discipulos de Jesus para saírem de cidade em cidade anunciando o evangelho, curando doentes e expulsando demônios, tendo como único instrumento a paz. Enviados como cordeiros no meio dos lobos, vão sem armamento algum, sem sacola, sem dinheiro, levando apenas a palavra e semeando-a por onde passarem. Esse tema do envio é recorrente na liturgia, pois na verdade ele é sempre atual e ecoa nos nossos ouvidos a cada dia, nas nossas atividades e nos nossos relacionamentos, lembrando-nos do nosso compromisso de cristãos. Por isso, quero destacar neste comentário a saudação que Cristo lhes recomendou: Em qualquer cada onde entrardes, dizei primeiro – A paz esteja nesta casa. O Seráfico Patriarca Francisco também escolheu essa lição da Paz como norma de sua vida e a ela acrescentou o Bem. A saudação franciscana é exatamente o que Cristo encomendou aos setenta e dois que enviou: levar a Paz e fazer ao Bem.

A primeira leitura, colhida no deutero Isaías (Is 66, 10-14), lembra a paz que reinou em Jerusalém, após o retorno dos exilados da Babilônia. “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo, todos vós que choráveis por ela.” Aquela conhecida e belíssima ária de Verdi, que faz parte da nossa juventude, Va Pensiero, é um cântico de lamento dos hebreus no exílio, chorando e lembrando de Jerusalém. “O mia patria, si bella e perduta...” era o lamento dos hebreus sobre Jerusalém destruída. Então, após o retorno dos exilados, diz o profeta Isaías: alegrai-vos todos vós que choráveis por ela. E mais: “Diz o Senhor: 'Eis que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das naçðes como torrente transbordante.” A paz chegará a Jerusalém como um rio caudaloso, levando prosperidade para esta cidade e tornando-a a glória das nações. De, daí até o tempo de Cristo a cidade de Jerusalém se destacou como uma metrópole na região, vindo a sofrer nova derrota somente para os romanos, tempos depois. Esta segunda destruição de Jerusalém foi prevista por Cristo, conforme consta no evangelho de Lucas (19, 43): virá o dia em que os inimigos cavarão um fosso ao redor e sitiarão o local, levando grande angústia para os teus filhos e não deixarão pedra sobre pedra. Foi o preço pago por Jerusalém pelo fato de que os seus habitantes, além de não crerem em Cristo, ainda o crucificaram. Jerusalém não reconheceu o príncipe da paz, então aquele rio caudaloso de que falou o profeta se transformou num fosso mortal, cavado pelos inimigos, que levaram à sua destruição.

Na segunda leitura, de Paulo dos Gálatas, volta o tema da paz como sinônimo da nova criação, aquela que foi redimida pela paixão e morte de Jesus. É quando Paulo, mais uma vez doutrinando contra os judaizantes, ensina que agora, a circuncisão e a incircuncisão já não têm valor, porque o que realmente conta é ser uma nova criatura. Esta nova criatura se faz pelo renascimento no batismo em nome de Cristo “e para todos os que seguirem esta norma, como para o Israel de Deus, paz e misericórdia.” (Gl 6, 16). Vemos que Paulo indica a paz como fruto do batismo, da adesão ao evangelho de Cristo. A antiga aliança foi recuperada pela cruz, de modo que ele diz: “Doravante, que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus.” (Gl 6, 17). E diz mais: “ que eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo.” (Gl 6, 14). Ao ser crucificado, Cristo atraiu para si os pecados de toda a humanidade, de modo que, redimindo-os, trouxe a paz a todas as pessoas de outrora e de hoje, de tal modo que não há mais distinção entre judeu e grego, entre escravo e livre, entre rico e pobre, mas todas as diferenças se diluem na graça do batismo. E o resultado que isso traz para todos é um só: paz e misericórdia.

Na leitura do evangelho, Lucas relata (Lc 10, 1, 12) o envio de setenta e dois discípulos na frente de Jesus, para cidades por onde ele deveria passar depois, a fim de que preparassem o povo para a sua chegada. É curioso notar que Lucas não tenha tido interesse em citar nenhum nome desses setenta e dois enviados nem os nomes das cidades aonde eles foram. Com certeza, não foi nenhum dos doze apóstolos, a quem Jesus estava preparando para a missão futura, pois diz o evangelista (Lc 10,1), que foram escolhidos “outros setenta e dois”.. E também eles não foram a localidades muito distantes, pois o próprio Lucas relata o retorno deles (Lc 10, 17) muito contentes pelas ações miraculosas que tinham realizado: “até os demônios nos obedeceram”, disseram a Jesus.

Mas o que é também interessante nesse relato do envio dos setenta e dois discípulos são as 'regras' ditadas por Jesus para que cumprissem: não levar bolsa, nem sacola, nem sandália e não cumprimentar ninguém pelo caminho. Chegando a uma casa, dirão primeiro: a paz esteja nesta casa. Comerão os alimentos que forem oferecidos e curarão os doentes. E se não forem bem recebidos, deverão sacudir a poeira contra os habitantes. Sobre esta mesma passagem, em Mateus 10, 9, consta que não deverão levar nem ouro, nem prata, nem bens, nem duas túnicas, e manda ressuscitar os mortos, curar os doentes, limpar os leprosos, expulsar os demônios e anunciar que o reino de Deus está próximo. Lendo esses dois textos em paralelo, concluímos que esta é a mensagem de Jesus para nós, os enviados dos tempos de hoje. A diferença está em que não necessitamos sair de cidade em cidade, mas em nossos relacionamentos, em nossos ambientes de família, de trabalho e de lazer, podemos exercer essa missão, do mesmo modo como já o fizeram pessoas abnegadas, missionários do passado, que cumpriam à risca as ordens dadas por Cristo aos setenta e dois.

Pois bem, mas eu queria destacar nesse contexto a saudação que Jesus mandou fazer: a paz esteja nesta casa. Se ali houver um “amigo” da paz, a paz repousará sobre ele; do contrário, retornará para vós. Eu destaquei entre aspas a palavra “amigo” porque é a tradução oficial do texto da CNBB, no entanto, no original latino da vulgata, texto de São Jerônimo, a expressão é “filius pacis”, ou seja, filho da paz. Esta é a mesma expressão do original grego de Lucas: “yios eirenes” (filho da paz). Não sei por qual razão os tradutores da CNBB trocaram de ‘filho da paz’ para 'amigo da paz', pois me parece que ser filho da paz tem um significado muito mais profundo e denso do que apenas amigo da paz. Ser filho de Deus é muito superior a ser apenas amigo de Deus. Penso que seja senso comum na nossa cultura que o status de filho é bem mais elevado do que o de amigo, então fico realmente sem entender o motivo que leva os tradutores e alterarem assim a equivalência das palavras. Nosso Seráfico Patriarca Francisco era, com certeza, um autêntico filho da paz, não apenas amigo desta. Tomando aqui emprestado uma famosa afirmação atribuída a Sócrates, quando lhe perguntaram se ele era um sábio (“sóphos”, em grego), ele negou e disse que se considerava apenas um “philos sophia”, isto é, amigo da sabedoria. Ora, nessa mesma linha de raciocínio, um “sóphos” seria um filho da sabedoria, mas na sua humildade, Sócrates se considerava apenas um amigo da sabedoria. Podemos ver, assim, que não apenas na nossa cultura brasileira, a relação entre os conceitos de “filho” e “amigo” atribui um valor muito superior ao filho do que ao amigo. Fica difícil mesmo entender o objetivo dos nossos liturgistas oficiais, quando preparam as traduções dos textos das leituras.

Então, seguindo a norma dada por Cristo, se naquela casa morar um filho da paz, a paz recairá sobre ele; se não houver, a paz retornará para o seu emissor. A lição que devemos tirar dessa ordem de Cristo é que nós devemos ser esses filhos da paz. Quando o irmão que sofre alguma perturbação nos procura, então devemos ser esse filho da paz, que recebe a paz quando ela é emitida e também transmite a paz, quando a outra pessoa dela necessita. Para sermos distribuidores da paz, é necessário sermos filhos da paz, ou seja, é necessário que a paz habite em nós, pois só podemos distribuir aquilo que possuímos e para possuir a paz, devemos haurir seus fluidos nos ensinamentos do príncipe da paz, que é Jesus. Assim, aquele rio de paz que o profeta Isaías previu para correr em Jerusalém, após o retorno dos exilados, invadirá também o nosso coração e a paz banhará todo o nosso ser. Isso significa ser filho da paz. Isso significa que, assumindo o nosso batismo, nos tornamos novas criaturas e, como diz São Paulo aos Gálatas, para todos os que seguirem essa norma, o resultado será paz e misericórdia.

Que o Senhor nos dê a sua paz. Que o Seráfico Patriarca Francisco nos dê a sua Paz e o seu Bem.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE SS PEDRO E PAULO - 30.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – A CRUZ E A ESPADA – 30.06.2019

Caros Confrades:

A liturgia do 13º domingo comum cede lugar para a festa dos santos Pedro e Paulo, os fundadores do cristianismo em Roma. Ambos foram martirizados no tempo do imperador Nero e ambos tiveram fundamental importância na igreja primitiva, Pedro exerceu forte liderança entre os judeus, enquanto Paulo conquistou o mundo greco-romano. Ambos deram seus testemunhos de fé e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre até as últimas consequências: Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o solo americano.

Pedro foi o primeiro bispo de Roma e, com isso, tornou-se a autoridade maior para todas as igrejas católicas ocidentais, porém essa liderança nunca foi aceita pelas igrejas católicas ortodoxas orientais, que possuem, cada uma, seu próprio Patriarca. A Igreja Siríaca de Antioquia, por exemplo, reclama a sua prioridade, porque Pedro foi bispo daquela comunidade antes de deslocar-se para Roma. Além desta, há catorze outras igrejas católicas ortodoxas, que não reconhecem a autoridade do Bispo de Roma. A Igreja Ortodoxa da Armênia se considera a primeira igreja cristã oficialmente reconhecida pelo Estado, no ano 301, enquanto que o cristianismo só foi reconhecido em Roma vinte anos depois. Ou seja, a liderança do Bispo de Roma se restringe mesmo ao catolicismo ocidental. Os Papas, desde o final do Concílio Vaticano II, retomaram um processo de diálogo com os irmãos orientais, após quase mil anos de afastamento. O papa Francisco vem seguindo os passos dos pontífices anteriores, buscando reintegrar as comunidades orientais e ocidentais católicas, com boa aceitação por parte das autoridades das outras igrejas. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.

As leituras litúrgicas recordam fatos extraordinários atinentes à vida pessoal dos apóstolos Pedro e Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra, nos Atos dos Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da prisão do rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus adversários dos cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e o tamanho da fé que a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, eles se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração que havia entre a comunidade cristã e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertar Pedro da prisão. A oração das nossas comunidades em prol dos seus pastores, assim como o apoio nas iniciativas da paróquia, faz parte da obrigação dos fiéis e demonstra a presença do espírito comunitário cristão.

A narrativa da libertação de Pedro tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9) que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas sonhando. Imaginemos a cena: Pedro dormia preso e acorrentado e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam as mãos se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro seguia o anjo e via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos imaginar a grande festa que aconteceu na comunidade cristã com a chegada de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de Herodes, quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém sabia explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do Senhor não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja primitiva. A libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o valor da oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.

Na segunda leitura, da Carta a Timóteo (2Tm 4, 6-18), o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava concluído, conforme ele mesmo compreendera.

A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém não mencionam o detalhe das “chaves do reino do céu”. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz tal referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Esse trecho foi o que, por volta do século IV, deu origem à doutrina da autoridade superior do bispo de Roma sobre todas as demais igrejas. Sabemos, pela história, que a igreja cristã de Roma foi uma das últimas a serem constituídas. As igrejas de Jerusalém, de Antioquia, de Alexandria, de Constantinopla, de Chipre e diversas igrejas gregas são todas mais antigas do que a de Roma. Então, por que o bispo de Roma deveria ter autoridade sobre essas igrejas mais antigas? Os líderes dessas igrejas orientais nunca entenderam nem aceitaram esse fato, que foi objeto de calorosas discussões em diversos concílios, vindo por fim a provocar o desligamento das igrejas de língua grega com a igreja de língua latina, no ano 1054. Somente após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI começou um movimento de reaproximação da igreja romana com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado pelos papas seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI nomeou como cardeais dois prelados orientais, sendo este um fator de esperança de que os elementos de discórdia sejam um dia superados.

Pois bem, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Jesus com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - 23.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O CRISTO DE DEUS – 23.06.2019



Neste 12º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas destacam a relação entre a cruz e o batismo, através da ação salvífica do Cristo de Deus, como assim Jesus foi definido por Pedro, pela inspiração do Espírito. Falando em particular com os doze apóstolos, depois da confissão de Pedro, Jesus revela-lhes detalhes acerca da sua futura paixão, preparando o espírito deles, para que não percam a fé, quando essas coisas terríveis vierem a acontecer e proibindo-os de falar a respeito de sua verdadeira identidade. Esse testemunho deveria ficar reservado para depois da ressurreição.

A primeira leitura traz um texto do profeta Zacarias, no qual há uma alusão bem explícita e direta à figura do Messias, que será torturado e morto, mas depois, esses mesmos que o matarem, irão chorar sobre o seu cadáver (Zc 12, 10): “hão de chorá-lo, como se chora a perda de um filho único,
e hão de sentir por ele a dor que se sente pela morte de um primogênito”. Este texto é reproduzido na liturgia da Semana Santa, onde se lê que “contemplarão aquele a quem traspassaram”. Trata-se de um prenúncio, com grande antecipação temporal, uma longínqua antecipação do sacrifício de cruz, considerando que a datação deste escrito é do século IV antes de Cristo.

No versículo seguinte (Zc 12, 11), o Profeta faz referência a um dia tão calamitoso quanto aquele em que o Messias irá ser imolado, recordando que “haverá um grande pranto em Jerusalém, como foi o de Adadremon, no campo de Magedo.” O fato referido pelo Profeta é a morte do rei Josias, que pereceu em circunstâncias que poderiam ter sido evitadas, ocasionando grande comoção junto do povo. Com efeito, depois de experimentar vários reis injustos e idólatras, o povo de Israel tinha um rei bom e devotado à sua gente: Josias. Ele foi tentar impedir o trânsito do exército egípcio pelo território de Israel, numa ocasião em que o Faraó travava uma guerra com os babilônios. Sem uma real necessidade, posto que os egípcios não perseguiam os judeus, o rei Josias tentou impedir a passagem do exército do Faraó e terminou morrendo numa batalha desnecessária. Este mártir inocente era a prefiguração do futuro Messias, que também seria inocentemente imolado. Esta primeira leitura, portanto, traz uma alusão direta ao sofrimento pelo qual o Messias teria de passar e também à reação de arrependimento que ocorreria entre aqueles mesmos que lhe causaram os sofrimentos. A começar por Judas e pelos soldados responsáveis pela crucifixão.

Na segunda leitura, continuando a carta de Paulo aos Gálatas (3, 26-29), lemos o ensinamento do apóstolo acerca da consequência mais importante que o batismo nos traz, que é o fato de sermos inseridos em Cristo e, com isso, nos tornamos herdeiros de toda a promessa que Javeh fez aos Patriarcas, desde os tempos antigos. “Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. … Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.” Pelo batismo, nós nos tornamos um em Cristo e isso nos unifica também entre nós, de modo que já não há mais distinção de raça, cor, sexo, origem, classe social, a adesão a Cristo nos torna membros de um só corpo e nos faz todos irmãos. Pelos sofrimentos na cruz, Cristo abriu para nós o acesso à casa do Pai. Pelo batismo, nos revestimos de Cristo e nos tornamos merecedores de sua graça. Observem que o batismo não apenas nos une a Cristo, mas nos reveste dEle, é muito mais profundo. O Papa Francisco, no seu sermão semanal na Casa de Santa Marta, onde ele reside, fez questão de destacar essa importante lição teológica: a porta da Igreja é o batismo, não a ordenação sacerdotal ou episcopal. Trata-se de um puxão de orelhas no clericalismo reinante na Igreja, desde há muito tempo, reforçando o papel fundamental que possuem os leigos no interior da comunidade eclesial. Lamentavelmente, nossos pastores não pensam nem agem nessa direção.

A leitura do evangelho nos mostra Jesus se revelando em particular para os apóstolos. Em Lc 9, 18-21, temos aquela conhecida passagem em que Pedro faz a definição mais perfeita de Jesus, quando responde à interrogação dele próprio sobre “quem vós achais que eu sou?” Pedro se antecipa aos demais e responde com determinação: Tu és o Cristo de Deus. Antes, Jesus havia perguntado o que o povo falava a respeito dele. Talvez algum dos antigos profetas que ressuscitou, era essa a opinião popular a seu respeito. Então, Jesus proibiu expressamente os apóstolos de ficarem falando para o povo quem ele era realmente, pois essa revelação deveria aguardar os acontecimentos futuros. E passa a dissertar sobre os detalhes do seu sofrimento futuro, usando para si mesmo a expressão “filho do Homem”: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia (Lc 9, 22) Por que Jesus fala sobre si mesmo como o Filho do Homem? Aqui há uma explicação interessante. Jesus se serve de uma expressão que era bem conhecida dos judeus, que em hebraico se diz “ben Adam” e que significa genericamente um ser humano, uma pessoa. Fazendo referência ao primeiro homem bíblico, que foi tirado do limo da terra (adam), Jesus usa essa expressão para representar, ao mesmo tempo, a si próprio e a todos os seres humanos, para os quais o seu sofrimento vai servir de redenção. Nesse momento, Jesus está-se referindo diretamente à sua humanidade, assumindo ser ele também um “ben Adam”, isto é, um filho da terra, assim como todos os seres humanos são. Para ilustrar melhor esse conceito, informo aos leitores que o plural dessa expressão significa, em hebraico, humanidade. Por outras palavras, Jesus está declarando que o seu ser humano vai passar por todas essas agruras. O Filho do Homem irá sofrer perseguição pelos chefes do povo, morrerá e depois ressuscitará.

Foram várias as vezes em que os apóstolos ouviram Jesus dizer isto: sofrer, morrer, ressuscitar, mas provavelmente eles só vieram a entender isso depois que esses fatos aconteceram. Judas foi um que ficou esperando, até o último momento, que Jesus fizesse uma grande demonstração de poder e liquidasse todos os inimigos de Israel. Pedro o negou por três vezes, porque não tinha compreendido o alcance daquelas palavras (sofrer, morrer, ressuscitar). João foi outro que se aproveitou do conhecimento que tinha com pessoas do palácio de Pilatos e conseguiu entrar no pretório para tentar ver o que estava acontecendo com Jesus, pois ele também não tinha entendido o sentido daquelas palavras. Aqueles dois discípulos que iam para Emaús eram outros descrentes, sem entender o que havia acontecido. Eles também não entenderam aquelas palavras. Dos demais, não se sabe, porque as reações não ficaram registradas. O certo é que, só após a ressurreição e as seguidas aparições de Jesus no meio deles, foi que começaram a juntar as ideias e compreender o que Ele havia dito. E tudo foi confirmado, depois, em Pentecostes.

E no final deste discurso, Jesus diz ainda palavras mais incompreensíveis para eles: “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9, 24). Se eles já não tinham entendido a primeira parte, esse final era ainda mais enigmático. Quem veio trazer a explicação desse enigma foi Paulo, na epístola aos Gálatas, lida no domingo passado (Gl 2, 20): “Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou.” Quem quer salvar a sua vida, isto é, quem quer viver segundo seus próprios desígnios, sem seguir os ensinamentos de Cristo, vai ao final se perder, se destruir. Mas quem se deixar guiar pelos ensinamentos de Cristo, pode parecer que está perdendo o seu tempo e a sua vida, mas pela fé alcançará a salvação. A vida na carne, a vida material não pode fechar-se sobre si mesma, buscando acumular cada vez mais, possuir cada vez mais, desfrutar cada vez mais, porque quem age assim vai perdê-la. A vida material deve ser vivida na fé e na caridade, crendo no Filho do Homem e seguindo os seus ensinamentos. O cristão não abandona a vida material, a vida na sociedade, não recusa a posse dos bens materiais, mas vive tudo isso, possui tudo isso com espírito de solidariedade, utilizando esses bens a serviço dos irmãos. Isso é possível porque, pelo batismo, nos revestimos de Cristo e assim a nossa vida material se constrói numa vivência de fé, sabendo administrar os bens materiais em vista do bem de todos.

Que a lição de Paulo aos Gálatas possa se transformar no lema da nossa vida cristã.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SS TRINDADE - 16.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 16.06.2019



A liturgia celebra hoje a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético, que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a um novo ciclo.

A fé na Santíssima Trindade é a verdade central do cristianismo, o grande mistério revelado por Jesus, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade era unipessoal apenas, isto é, o Deus dos patriarcas havia se manifestado a Abraão e prometeu-lhe uma grande descendência, mas sequer disse o seu nome. Moisés foi o primeiro que teve a ousadia de perguntar o nome DELE, no episódio dramático do monte Sinai e ouviu como resposta um enigmático EU SOU (ehyeh, em hebraico, evoluindo depois para yhwh -יהוה). Isso era tudo que os hebreus sabiam acerca do Pai. Após vários episódios de submissão do povo hebreu, os profetas começaram a anunciar a vinda de um Messias, o Salvador. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um”. Terminada a sua missão, Jesus prometeu que o Pai enviaria o Paráclito, aquele que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério” significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado somente com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem não se recorda daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito dos sentidos)?

Sob o ponto de vista da teologia católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia, ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por isso, a compreensão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Jesus é filho de Deus, mas não é igual a ele, Jesus seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma única natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates, antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.

A definição oficial foi aprovadas em dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325, os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.

Faz pouco tempo, eu li na internet uma matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, a qual o cristianismo aproveitou. Diversas divisões protestantes negam a Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também. Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus da manutenção) e Shiva (deus da destruição). No antigo Egito, havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades (trios) de três deuses distintos, diferentemente da trindade unitária cristã, em que o Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses, mas são um único Deus. E também não a entendem aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua ingenuidade e petulância, então fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam (entendo para crer, creio para entender). Assim, ele pode finalmente solucionar a sua dúvida.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5), onde o Apóstolo ensina que “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. ” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, antes mesmo da escrita dos evangelhos, quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às outras comunidades.

Em resumo, Jesus é a chave para o conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de Aquino: “A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - 09.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 09.06.2019 – ESPÍRITO DE DEUS



Mais uma vez, o ano litúrgico nos traz a celebração do domingo de Pentecostes. Encerrando o ciclo pascal, a vinda do Espírito confirma as promessas de Cristo aos apóstolos e marca o início oficial da primeira comunidade das pessoas de boa vontade, que acreditam n'Ele e se responsabilizam por levar adiante a sua doutrina. A cidade de Jerusalém foi o cenário dessa extraordinária manifestação. Naquele dia, a cidade estava cheia de visitantes, de peregrinos das mais diversas regiões, para celebrar a festa judaica, chamada Shavuot, ou festa das semanas, na qual os judeus comemoram as primeiras colheitas e as oferecem ao Senhor. A vinda do Espírito Santo aconteceu em meio a uma das peregrinações judaicas mais importantes do ano. O escritor de Atos dos Apóstolos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes, em resumo, habitantes de todo o mundo judaico e grego, desde o Oriente Médio, passando pelo norte da África, até a ilha de Creta. A presença de pessoas de diversas nacionalidades naquele dia demonstra o objetivo de Jesus acerca da universalidade da sua mensagem.

É interessante observarmos de que modo Deus conduziu a história da nossa redenção, fazendo coincidir as duas datas mais importantes da economia da salvação com as festas religiosas judaicas já existentes, de modo a deixar bem caracterizada a passagem do Antigo para o Novo Testamento. Assim é que temos a Páscoa cristã na data da Parasceve, a páscoa judaica, e o Pentecostes na data da Shavuot, a festa das semanas. Esses eventos confirmam o ensinamento de Jesus, quando disse que não veio mudar a lei, mas cumpri-la com perfeição. A celebração de Pentecostes vem substituir a festa das semanas, marcando assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Com a vinda do Espírito, naquela tarde de festa, causando um grande barulho, o fato chamou a atenção dos visitantes, que acorreram ao local para verem o que acontecera, sendo ali o início oficial a Igreja de Cristo, com aquela memorável pregação de Pedro, que está narrada em Atos 2,2. Ali foi uma espécie de aula magna para convidados especiais, representando os povos de diversas nações e que, pela ação do Espírito, eles ouviram a pregação de Pedro no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. A leitura do texto diz que os apóstolos passaram a falar em línguas diversas, mas na minha opinião, eles falavam a língua comum deles, o aramaico. O resultado, conduzido pela ação do Espírito, fazia com que os ouvintes, mesmo sendo povos falantes de outros idiomas, conseguiam ouvir e compreender a pregação de Pedro como se ele estivesse falando em suas próprias línguas. Foi esse o milagre operado pelo Paráclito, naquele dia memorável.

A presença do Espírito é que dá vida e sustentação à ação da Igreja de Cristo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu só naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs, falando coletivamente, e em cada cristão, falando subjetivamente. Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e “presidindo” os trabalhos, seguindo na frente (esse é o sentido original do verbo latino praesum=presidir, ir na frente). Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.

Ma mesma carta a Coríntios (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica de maneira bem didática essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através da analogia com o corpo humano: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre oportuno recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Mais do que pregar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, que produz muito mais efeito do que certas pregações de palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.

Há um pequeno trecho do evangelho de hoje (Jo 14, 16), que eu considero bastante significativo: “...e eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor, para que permaneça sempre convosco.” Nesta frase, eu destaco a expressão “outro defensor”. Em grego, temos “allon parákliton”, que São Jerônimo traduziu em latim para “alium paraclitum”. Primeiramente, consideremos a palavra “parákliton”. Essa palavra, em grego, deriva do verbo “parakaléô”, que significa 'convidar para ir junto'. Vamos aqui recordar uma praxe comum das culturas antigas grega e romana, na época em que não havia ainda os advogados. Uma pessoa, que fosse chamada para ir a um tribunal, podia chamar um amigo para “ir junto” a fim de ajudar na defesa. Esse é o sentido etimológico de “paráclito”. Então, a tradução simples de “defensor” não diz todo o sentido que a palavra original possui. O paráclito é o que vai com o amigo, que fica ao lado, que dá apoio e também defende, ou seja, é muito mais do que apenas um defensor. Agora, consideremos que o Espírito é o “outro paráclito”. O que podemos concluir daí? Que o primeiro paráclito é o próprio Jesus, que mesmo sem ser convidado, veio para ficar junto, para nos dar apoio e incentivo e também para nos defender. Mas a sua missão foi concluída, e agora virá ou “outro paráclito”, cuja tarefa é dar continuidade em modo permanente à missão do anterior. A missão do “outro paráclito” é perene, por isso diz o evangelista: “para que permaneça sempre convosco”.

Meus amigos, que grande dádiva e que grande conforto é saber que o outro Paráclito vai permanecer para sempre conosco, nos inspirando, nos incentivando, nos defendendo. Na linguagem contemporânea, existe uma palavra inglesa que se usa até sem tradução em português, o termo “coaching”, que tem de certo modo essa tarefa, sob o aspecto profissional. Pois bem, o Espírito é o nosso “coaching” espiritual, que nos acompanha na missão do dia a dia. E a pessoa que é mais assistida, porque é também a que mais necessita desse ajuda, é o nosso Papa Francisco, obstinado por construir uma nova Igreja. Faz poucos dias, a imprensa internacional deu destaque a um discurso do Papa, falando acerca do machismo presente na Igreja e da importância de uma maior participação das mulheres, inclusive em cargos no Vaticano. Ele nomeou, em novembro passado, uma professora italiana para a função de Subsecretária do Dicastério (uma espécie de Ministério) para os leigos e as famílias, sendo a primeira mulher a ocupar esse cargo. Certa vez, numa audiência com freiras, duas religiosas questionaram o Papa perguntando por que a Igreja Católica ainda faz discriminação com as mulheres e não permite que elas sejam diaconisas, como já foram nos primeiros tempos do cristianismo. O Papa, com a sinceridade e a simplicidade que lhe são características, topou imediatamente o desafio e disse mais ou menos assim: aí está uma boa ideia, nós precisamos compreender melhor com era a missão das diaconisas na igreja primitiva, eu vou designar uma Comissão especial para fazer um estudo sobre esse tema. A repercussão foi imediata e recebida com entusiasmo no meio feminino. A nova Igreja, que o Papa Francisco deseja, deverá ter como distintivo uma maior participação das mulheres nas diversas tarefas eclesiásticas. A resistência ainda é muito grande, mas a ação do Espírito consegue vencer todas as barreiras e empecilhos.

Que nós saibamos reconhecer e dar ouvidos às mensagens de apoio e incentivo que o nosso Paráclito está diuturnamente a nos soprar. Apuremos os ouvidos do coração para conseguir isso.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA ASCENSÃO - 02.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO DO SENHOR – 02.06.2019



Celebramos neste domingo a festa da Ascensão do Senhor. Aqueles homens da galileia, mesmo após todo o curso intensivo de três anos e o posterior reforço de 40 dias de catequese, que Jesus fizera com eles, naquele momento final, ainda estavam a perguntar ao mestre: é agora que vais restaurar o reino de Israel? Parece que não haviam entendido muita coisa dos ensinamentos de Jesus. É curioso observar como ainda hoje vemos alguns cristãos fazendo perguntas semelhantes, porque não conseguem entender o significado mais autêntico da mensagem de Cristo.

Na primeira leitura, retirada dos Atos dos Apóstolos (At 1, 1-11), o escritor sagrado narra a subida de Jesus ao céu, após despedir-se dos apóstolos. Coincidentemente, a leitura do evangelho de hoje é retirada do mesmo escritor dos Atos, o médico São Lucas e, se observarmos com atenção os dois textos, veremos que ele comete uma pequena incoerência acerca dos detalhes que cercam a ascensão de Jesus. Em At 1, 4 e 1, 9, ele escreveu: “Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: 'Não vos afasteis de Jerusalém … Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles.” Lucas gosta muito de falar nos detalhes das cenas que descreve, mas desta vez ele (parece) se esqueceu do que havia escrito no evangelho, que é anterior (Lc 24, 50-51): “Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu.” Se fossem escritos de diferentes autorias, esta inconsistência da narrativa seria fácil de explicar, mas visto que são textos do mesmo autor, fica difícil ser compreendida. No entanto, isso importa apenas por uma questão de análise textual, pois na verdade, não altera o conteúdo da mensagem: Ele subiu ao céu depois de passar mais um tempo (40 dias) após a sua morte reforçando a catequese com os seus discípulos, para que eles entendessem melhor a doutrina que iriam pregar.

Aliás, os textos dos evangelhos se prestam mesmo a múltiplas interpretações. Nesse texto, os seguidores do espiritismo interpretam essa narração dos Atos para robustecer a sua tese de que, após a morte, o “espírito” não vai logo para a sua morada eterna, mas ainda passa algum tempo (tempos diferentes, de acordo com as necessidades de cada um) numa situação intermediária, em que já não tem mais corpo material, mas ainda não chegou ao nivel espiritual mais elevado. Por isso, algumas pessoas mais sensitivas são capazes de “ver os espíritos” dos mortos, porque eles ainda estão na situação vacante, ainda não fizeram a viagem definitiva até o outro mundo. Teoricamente, isso significaria que a “missão” daquela pessoa ainda não terminou, assim como a missão de Cristo não teria terminado e por isso a necessidade ficar aparecendo e ensinando aos apóstolos. Na minha opinião, trata-se de uma simples acomodação do texto a uma posição doutrinária diversa da oficial, algo que deve ser uma mera coincidência literária. Eu não creio que cada pessoa tenha uma “missão fechada”, que deva ser sempre obrigatoriamente terminada, sob pena de não poder o ser humano desvincular-se completamente do mundo terreno enquanto não a concluir. Essas teorias reencarnacionistas são muito antigas, anteriores até ao cristianismo e, provavelmente, Cristo as conhecesse. Entre os gregos, havia defensores dessa doutrina, como os pitagóricos e os órficos, embora Aristóteles a rejeitasse. Porém, Cristo nunca se referiu a essa possibilidade nos seus ensinamentos e nem existe referência a isso nas cartas de Paulo, que era o mais entendido de cultura grega dentre os escritores sagrados. Penso que a missão de Cristo era única e o seu exemplo não pode servir de modelo para algo que ele nunca ensinou.

Ainda outro fato que está associado à festa da Ascensão diz respeito a um trecho conclusivo do escritor sagrado Lucas, quando ele escreveu (At 1, 11): “Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 'Homens da Galiléia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu.” Entra em ação, outra vez, o detalhismo de Lucas, percebam: dois homens vestidos de branco. Ele nem diz que são dois anjos, mas por terem saído das nuvens e estarem trajando branco, a tradição entendeu sempre que são dois anjos. Mas o que eu quero chamar a atenção também é para o outro detalhe: “Ele virá do mesmo modo como o vistes subir.” Por causa deste detalhe, muitos pintores da arte sacra têm mostrado Jesus, com um semblante resplandescente, descendo do céu para julgar a humanidade, no final dos tempos. Contudo, de acordo com as interpretações mais recentes dos biblistas, essa descrição deve ser entendida metaforicamente, não do modo restrito como está escrito. Esta descrição corresponde ao modo como os primeiros cristãos entendiam a mensagem de Jesus, quando Ele disse que retornaria para julgar a todos. Por causa dessa compreensão do fato e por causa dessa descrição de Lucas, muitos cristãos dos primeiros tempos viviam na expectativa de ver Jesus voltando já naquela época. São Paulo até adverte os cristãos de Tessalônica (II Tes 2, 1-12) para que ninguém queira adivinhar o dia em que o Senhor voltará. Isso porque alguns cristãos primitivos, achando que Jesus estava quase para vir, deixaram até seus trabalhos e ficavam o dia todo ociosos só esperando a volta de Jesus. Havia, dentre alguns, esse entendimento de que Ele estava para retornar em breve e muito provavelmente o evangelista Lucas transferiu essa ideia para o seu texto. A interpretação em que eu acredito é de que cada fiel vai encontrar-se com o Julgador por ocasião da sua passagem do nível material para o espiritual, não havendo um determinado dia, no qual todos os vivos e mortos fariam tal apresentação. Apesar disso, a forma tradicional de interpretar essa passagem de Lucas (como um dia determinado para todos) ainda é amplamente majoritária.

No domingo de hoje, celebra-se também o dia mundial das comunicações, um fenômeno super importante do mundo moderno. Em nenhuma outra época, foi tão fácil e tão disponível, das mais variadas maneiras, a comunicação, sobretudo aquela que se faz através dos canais eletrônicos. O próprio Papa utiliza as redes sociais e incentiva os cristãos a utilizarem os meios eletrônicos de comunicação para o serviço da evangelização. As cerimônias religiosas transmitidas pela TV e pela internet são muito bem recebidas no mundo todo. Ou seja, a Igreja enquanto instituição vem usando os modernos canais de comunicação a serviço da evangelização, nos mais diversos modelos de transmissão. Ainda do ponto de vista institucional, temos os “padres cantores”, os canais de TV específicos para a divulgação de temas religiosos, das mais variadas comunidades religiosas, desde aquelas que oferecem um serviço de boa qualidade, até aquelas que tem um intuito comercial maior do que propriamente o interesse de evangelizar. Sinceramente, tenho dúvidas se se pode denominar isso de evangelização, no sentido da missão que Jesus confiou aos seus discípulos: ide pelo mundo e ensinai o que eu vos ensinei. Essa apropriação indevida (a meu ver) dos canais de comunicação para outros interesses, contudo, não justifica a total supressão da divulgação da mensagem religiosa por esses meios. Afinal, será o conhecimento e o discernimento de cada cristão que deverá saber separar o joio do trigo, por isso, a forma tradicional de evangelizar, através da pregação da palavra e dos ofícios religiosos presenciais não pode ser substituída pelas formas eletrônicas, as quais são válidas, mas devem ser utilizadas parcimoniosamente.

A festa da Ascensão do Senhor prepara a festa de Pentecostes, que será celebrada no próximo domingo. Ao se despedir dos discípulos, Jesus pediu que eles não se afastassem de Jerusalém, para que recebessem a “visita” do enviado especial do Pai, o Paráclito, que iria confirmar tudo e abrir-lhes as mentes para o seu correto entendimento. A segunda leitura, de Paulo aos Efésios, contém uma invocação do Apóstolos aos fiéis daquele tempo, que pode muito bem ser aplicada a nós, nesse momento, sem quaisquer adaptações do texto (Ef 1, 18-19): Que ele [o Espírito] abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente. O mesmo Espírito que veio confirmar e esclarecer os ensinamentos de Cristo aos apóstolos deve continuar a sua atuação no nosso meio, para que possamos exercitar a amizade e a fraternidade através dos recursos técnicos que temos à nossa disposição.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - 26.05.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – PRIMEIRO CONCÍLIO – 26.05.2019



Nas leituras deste 6º domingo da Páscoa, Jesus começa a se despedir dos seus apóstolos, pois terminou a sua missão e chegou a hora de ele retornar. Então, ele diz: eu rogarei e o Pai enviará outro Paráclito, que permanecerá convosco para sempre. Constata-se aqui, mais uma vez, Jesus revelando a Trindade Santa aos apóstolos. Merece também uma referência, na leitura dos Atos dos Apóstolos, ao primeiro Concílio da Igreja, realizado em Jerusalém, onde foi discutida uma das primeiras questões doutrinárias que dividiu os cristãos: como fica a observância da Lei de Moisés diante dos ensinamentos de Cristo? Deve ser mantida ou está superada? Ora, mas Jesus disse que não veio abolir a lei, e sim cumpri-la com prefeição… assim pode ser delineada a questão dos cristãos judaizantes perante os cristãos vindos do paganismo, querendo manter a obrigatoriedade da circuncisão como condição para a salvação.

Percebe-se, assim, uma preocupação da comunidade cristã de Antioquia, conforme está descrita nos Atos (15, 1-2), primeira leitura de hoje. Paulo e Barnabé haviam fundado a igreja daquela cidade e, ao passar por lá algum tempo depois, souberan da polêmica que se instalara entre os convertidos judeus e os convertidos pagãos. Alguns judeus vindos do norte afirmavam que “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés”. Paulo e Barnabé enfrentaram aquela dificuldade e argumentaram com os dissidentes, porém sem convencê-los. A situação se tornou tão delicada que os dois preferiram levar o caso para ser decidido pelo colegiado dos Apóstolos em Jerusalém, para que não ficasse apenas no entendimento deles dois. Assim deu-se o primeiro Concílio da Igreja, para a apreciação e decisão sobre questões cruciais da doutrina, que se encontrava em processo de maturação. Muitos outros Concílios se sucederam ao longo dos séculos, sempre para tratar de questões cruciais. Naquela ocasião, a resposta foi enviada através dos porta vozes Judas e Silas, em nome da comunidade hierosolimitana: “Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.” (Atos 15, 28-29)

Esta frase necessita de uma análise gramatical mais detalhada, pois a tradução pode parecer confusa. Conferindo os textos originais grego e latino dos Atos, percebe-se que são apenas duas as exigências da Lei de Moisés que permanecem para os judeus e pagãos convertidos: 1. abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos, seja por meio de sangramento ou de sufocação, e 2. abster-se das uniões ilegítimas. Isto é, o objetivo é manter a unidade do culto cristão, que não deve ser misturado com os cultos dos deuses pagãos, esse foi o grande problema enfrentado por Moisés no passado hebraico. Em relação às uniões ilegítimas, São Jerônimo usa o termo latino “fornicatione”, que é a tradução do grego “pornéias”. Essa palavra é habitualmente relacionada com o adultério, então essa seria a segunda regra a ser mantida. Com relação à circuncisão, não deveria ser mais obrigatória, porque esse ritual de purificação individual foi totalmente superado com o sacrifício de Cristo e foi substituído pelo batismo, então a circuncisão tornou-se obsoleta nesse contexto. Aliás, sabe-se que a exigência da circuncisão, no tempo dos hebreus, tinha também como finalidade facilitar o ato humano procriador, pois com a expectativa que se fazia do nascimento do Messias, todos deviam colaborar para isso. Após a vinda de Cristo, isso também não faz mais sentido de ser mantido como obrigatório. E assim o Concílio de Jerusalém solucionou a questão dos judaizantes, referendando o ensinamento de Paulo e Barnabé.

Sabiamente, o Concílio de Jerusalém entendeu que não devia exigir dos novos cristãos nada além do necessário, ou seja, do essencial. E afirmou isso de uma forma que se tornou clássica: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não foi uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo. Essa forma de enfrentar e decidir as questões sensíveis acerca da doutrina é chamada, no vocabulário teológico, de “magistério de Igreja”, tornando-se uma das fontes da teologia, ao lado da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa foi uma grande polêmica levantada por Lutero, no século XVI, pois ele entendia que a teologia devia ter como única fonte a Bíblia (princípio da “scriptura sola”) e ainda hoje é um dos pontos de divergência mais cruciais entre os teólogos católicos e protestantes. Para os protestantes, não há tradição nem magistério.

Na segunda leitura, do Apocalipse (21, 10-14), o apóstolo João faz um interessante trocadilho com o numero doze, em relação à cidade de Jerusalém, conforme a visão que teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de junto de Deus, imagem da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra preciosíssima e estava cercada com uma alta muralha, que possuía doze portas, cada uma com o nome de uma das tribos de Israel. E esta muralha se assentava sobre doze alicerces e em cada um destes estava escrito um nome dos doze apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa imagem João nos apresenta, comparando a Jerusalém antiga com a nova, transmitindo a ideia de que a lei antiga prevalecia, simbolizada esta com as doze portas com os nomes dos filhos de Jacó, no entanto, estas portas estavam construídas sobre uma muralha dotada de doze alicerces, estes representados pelos doze apóstolos. Os doze apóstolos representam, portanto, a nova aliança, que sustenta a antiga e que lhe confere uma nova funcionalidade. A Igreja de Cristo é o alicerce desta nova aliança.

Nessa ocasião (Ap 21, 22), João faz um comentário muito significativo: não vi um templo na cidade (Nova Jerusalém), pois o seu templo é o próprio Senhor. Essa cidade também não precisa de sol nem de lua para clareá-la, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua luminária é o Cordeiro. Jesus é o novo sol, pelo qual se reflete a luz de Deus. Essa intrigante descrição de João no Apocalipse está coerente com a lição de Cristo que, ao ser interrogado sobre “onde” se deve adorar a Deus, ele disse que os verdadeiros adoradores não precisam ir a um lugar determinado, um local físico, porque Deus deve ser adorado em espírito e em verdade. E onde estiverem dois ou mais reunidos em nome de Cristo, ali está um ambiente adequado para a oração. Infelizmente, ainda há cristãos que imaginam que só se pratica a religião indo à igreja e, ao sairem de lá, esquecem que a sua prática de cristãos deve prosseguir nas ações do dia a dia. Ser cristão não é apenas rezar o terço, assistir à missa, comungar e fazer o sinal da cruz quando passa diante de um templo. A principal exigência que Cristo faz para nós é que vivamos a nossa fé nos nossos relacionamentos, nas nossas atividades laborais, na vida privada e pública. Essa cisão entre a devoção e a vivência da fé é a característica mais presente na catequese do passado e a mais difícil de ser superada na religiosidade popular. A vinculação a um local físico é a grande marca do catolicismo devocionista, tão bem representado nas romarias e movimentos de massa, mas que (ao meu ver e com todo respeito) não realiza o verdadeiro ensinamento de Cristo.

No evangelho de hoje, o evangelista João (14, 23) diz com simplicidade e clareza o que Jesus requer de seus seguidores: “'Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.” E prossegue explicando isso: “E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […] o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.” (14, 24-26). Guardar a palavra não é escondê-la numa gaveta da memória e lembrar-se de vez em quando. O guardador não é um simples custódio, aquele que detém a guarda da coisa, mas deve ser sobretudo o executor, aquele que conhece a palavra e a pratica. É isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é para isso que existe a Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores, sucessores dos apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a comunidade da fé na autêntica guarda da palavra, os alicerces da muralha, de que João fala no Apocalipse. Porém, não apenas os sucessores dos Apóstolos têm essa missão, eles fazem isso como obrigação, por delegação especial. Mas, na prática, todos os cristãos são autênticos guardadores e cumpridores do ensinamento de Cristo.

O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem trabalhado com grande esforço para tentar reverter essa prática religiosa antiquada e ainda muito forte, no meio religioso popular, estimulada e mantida pela catequese tradicional e por uma estrutura organizacional arcaica, porém muito conveniente para a hierarquia eclesiástica, pois agrada aos católicos tradicionalistas, que ainda são poderosos em nossas comunidades. Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as nossas autoridades eclesiais e todos nós, para sermos fiéis guardadores da palavra como Cristo ensinou, não daquele modo que a influência externa do poder sociopolítico a transformou e que precisa ser mudado.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA PÁSCOA - 18.05.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – MANDATUM NOVUM 18.05.2019



Na liturgia deste 5º domingo da Páscoa, o apóstolo João nos traz um tema que é central para todo o cristianismo: o novo mandamento de Jesus – amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O povo hebreu já conhecia os mandamentos da Lei desde Moisés, mas João ensina que Jesus veio aperfeiçoar os antigos mandamentos e resumi-los em um só: o mandamento do amor. Com isso, aquela imagem do Javeh vingativo e possessivo, irado e violento, que era transmitida na Torah de Moisés, transmudou-se no Deus Amor, revelado por Jesus, aquele que está sempre pronto para perdoar.

Na primeira leitura, lemos o testemunho de Paulo e Barnabé, em viagem missionária pelas cidades da Capadócia, pregando aos pagãos e voltando anunciar que Deus abrira a porta da fé a eles, já que os judeus recusaram-se a aceitar o Messias. No domingo anterior, vimos como Paulo e Barnabé foram maltratados em Antioquia e proibidos de pregar o nome de Jesus. Então, partiram para pregar a palavra de Cristo aos gentios. E assim, eles viajaram por várias cidades da região da Frigia e Capadócia (Listra, Icônio, Pisídia, Panfília, Perge, Atália) e retornaram a Antioquia, onde anunciaram à comunidade de cristãos como os pagãos tinham sido receptivos à pregação do evangelho e tinham-se engajado com entusiasmo, produzindo bons frutos. Estas cidades situam-se, geograficamente, na região que hoje corresponde ao território da Turquia, sendo as mais famosas Antioquia da Síria (hoje chama-se Antakya) e Antioquia da Pisídia. Este território, atualmente, é vinculado à Igreja Católica Ortodoxa Siríaca, com sede em Damasco. Esta última cidade, Antioquia da Pisídia, é a mesma referida na leitura dos Atos do domingo anterior, onde Paulo e Barnabé foram perseguidos e expulsos. Esta foi também a primeira viagem missionária de Paulo, houve ainda outras duas, nas quais ele chegou a pregar o cristianismo em outras comunidades gregas, aventurando-se até em Roma.

É importante lembrar que nem sempre Paulo e Barnabé eram bem recebidos quando chegavam para a sua pregação, no entanto, eles eram insistentes. Em Listra, por exemplo, na primeira vez em que estiveram lá, pelos milagres que realizavam, eles foram confundidos como personificações de Júpiter, o deus principal da religião do lugar, e até chegaram a ser homenageados por isso. Quando Paulo e Barnabé perceberam que os listrenses estavam entendendo tudo errado do que eles pregaram, afastaram-se das homenagens e foram explicar. Então, os judeus de Antioquia haviam chegado à cidade em perseguição à dupla e começaram a espalhar boatos contra eles. A população os perseguiu e os apedrejou, arrastando-os até fora da cidade. Para eles, Paulo havia sido dado como morto, talvez tivesse desmaiado, perdido os sentidos, pois depois se recuperou. Mas, apesar das perseguições, eles conseguiram obter muitas adesões nestas cidades. E conforme está escrito em Atos 14, 23, eles fundavam as comunidades, designavam presbíteros (ou sejam, ordenavam sacerdotes os lideres da comunidade) e seguiam adiante para continuar sua missão em outras cidades.

A segunda leitura, do livro do Apocalipse (21, 1-5), contém uma das passagens bíblicas mais conhecidas e interpretadas: a imagem da Nova Jerusalém, que desce do céu, de junto de Deus. Isso aconteceu depois que o céu e a terra, assim como o mar, foram destruídos, e apareceu um novo céu e uma nova terra. A Nova Jerusalém era a própria morada de Deus entre os homens. A Nova Jerusalém é interpretada na teologia como a Igreja de Cristo. Ao longo do tempo, esta imagem foi explorada com um certo ar triunfalismo desde os teólogos medievais, dando origem a uma espécie de empoderamento com que os membros da hierarquia eclesiástica se viram durante muito tempo (alguns ainda hoje assim se veem), ou seja, interpretando esta imagem como um tipo de reino temporal ou poder político, nos moldes como isso existia naquela época histórica. Esqueceram, esses cristãos triunfalistas, da exortação de Paulo, contida na primeira leitura de hoje (At 14, 22): 'É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus'. Apesar da nova corrente interpretativa, que passou a ser estimulada a partir do Concílio Vaticano II e, sobretudo a partir da Conferência de Puebla, em 1979 (cujo 40º aniversário está sendo comemorado), acerca da opção preferencial da Igreja pelos pobres, muitos eclesiásticos e leigos ainda continuam a entender a Igreja de Cristo como um reino temporal, muitos Bispos e Padres vivem e agem como verdadeiros monarcas em seus territórios, em total oposição com o que Cristo ensinou. Um exemplo disso é o modo como certos grupos católicos tradicionalistas desdenham do Papa Francisco, comparando-o com a figura do papa emérito Bento, a quem consideram o papa autêntico. Na verdade, o papa Francisco tenta restaurar o modelo original da Igreja de Cristo: igreja dos pobres para os pobres. E para não ficar apenas no discurso, ele se reúne com os pedintes da Praça de São Pedro oferecendo-lhes almoço e até mandou construir banheiros públicos para uso dos moradores de rua do Vaticano, dando-lhe mais condições humanas e dignidade.

Então, a Nova Jerusalém, que surge dentro do contexto de um novo céu e uma nova terra, a morada de Deus entre os homens, onde Ele enxugará toda lágrima, a morte, a tristeza, a dor desaparecerão, conforme a visão de João em Patmos, sempre cheia de metáforas e enigmas, deve mesmo ser entendida como a imagem da Igreja de Cristo? Eu diria que sim e não. Sim, porque a comunidade fundada por Cristo, a partir da catequese distribuída aos doze apóstolos e, através deles, para todos os crentes em todos os lugares, efetivamente desceu do céu, de junto de Deus, formando um novo céu e uma nova terra. Não, ou ainda não, porque essa comunidade, que forma a Igreja de Cristo, é por enquanto só o prenúncio da “Jerusalém” verdadeira, a morada de Deus na eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, a Nova Jerusalém para onde nós seremos conduzidos, após passarmos pelos muitos sofrimentos, conforme Paulo e Barnabé exortaram os antioquienses (At 14, 22). Quando eu estudava teologia, no Seminário da Prainha, na década de 1970, o Padre Antonio Sidra (que havia sido capuchinho, com o nome de Frei Casemiro de Grajaú), professor de teologia fundamental, dizia uma expressão que é clássica na doutrina: a Igreja realiza o reino de Deus dentro da dialética do “já e ainda não”. Desse modo, à luz da fé, a Nova Jerusalém relatada por João no Apocalipse, já está aqui, porém, de fato, ela ainda não está, pois nós chegaremos lá somente quando passarmos para a dimensão da eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, as promessas que Ele fez e nos deu como garantia o seu sublime sacrifício. Mas esta antecipação é em termos, ou seja, na fé e na esperança, e para alcançá-la, nós precisamos praticar a caridade, o exemplo, a solidariedade, a justiça, a união, a fraternidade... isto é, o novo mandamento que Jesus ensinou e praticou. Como disse o apóstolo Paulo em I Cor 13, 12: agora vemos de maneira confusa, como num espelho embaçado, mas depois o veremos face a face. É isso o já e ainda não, o modo como a Igreja de Cristo prefigura a Nova Jerusalém.

No evangelho de João (13, 31), lemos a conversa que Jesus teve com os apóstolos no final da Santa Ceia, após aquele momento tenso em que Judas se retirou da recinto. Os outros discípulos ficaram atônitos e sem reação. Jesus foi acalmá-los, dizendo: chegou o momento em que o Pai será glorificado e isso logo acontecerá. E acrescentou: “por um pouco de tempo, ainda estou com vocês. Lembrem-se do novo mandamento que vos dei: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.” Aqui está a grande novidade que Jesus veio ensinar aos seus seguidores: o mandamento do amor mútuo, sem reserva. Aquela figura do Javeh odioso e vingativo ficou para trás, ela foi substituída pela figura do Pai amoroso, que não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva. Todo o evangelho de João é um grande testemunho deste amor sem medidas, o qual está presente em todas as narrativas. Diferentemente dos demais evangelhos, em que os fatos são o destaque, nos escritos de João (cartas e evangelho), os fatos são apenas o pretexto para o amor de Deus se manifestar. A própria terminologia usada no texto reflete essa temática, como vemos em Jo 13, 33: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco.” Nenhum dos outros evangelistas utiliza essa linguagem intimista e afetuosa de chamar os apóstolos de “filhinhos”. O evangelho de João transpira o amor de Deus, revelado no amor de Cristo.

Aqui está o nosso desafio cotidiano: cumprir o novo mandamento de Cristo, para assim testemunhar perante a comunidade que vivemos agora o “já e ainda não” da Nova Jerusalém, que é a nossa futura e definitiva morada.

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