COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEU
PRÓXIMO – 14.07.2019
Neste 15º domingo do tempo comum,
temos aquela leitura emblemática do texto de Lucas, conhecido como a
parábola do “bom samaritano” e o tema litúrgico em destaque é
o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade.
O que é mais importante: orar a Deus ou ajudar os irmãos? Resposta
óbvia: os dois são importantes, claro. Sim, mas o que é
preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a
caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e
simples da lei. A misericórdia é a chave da porta que conduz à
salvação, não basta a observância ritual e formalista dos
mandamentos da lei.
Na primeira leitura, colhida do livro
do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está
dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz
ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito
difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece
porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar,
porque estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la.
Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem
outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa
onerosa, perigosa e demorada, tomando como referência o Mar
Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares então conhecidos.
Mas não, diz Moisés, esta
palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração,
para que a possas cumprir. (Dt 30, 14)
Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é,
aquela regra que cada um traz dentro de si mesmo e que a cultura
costuma chamar de consciência.
De acordo com a doutrina tradicional,
esta lei natural é inscrita em cada pessoa, na sua razão como uma
ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade
criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade, está
situada no âmago da razão humana, como sua fonte permanente de
inspiração e de avaliação de conduta. No entanto, os filósofos
da modernidade passaram a contestar essa noção de lei inata como
algo próprio da natureza humana e passaram a afirmar que essas
noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e
do injusto não nos vêm embutidas na razão mesma, de forma inata,
mas são aprendidas a partir das vivências e experiências de cada
um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina
enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela
regra básica de sempre fazer o bem. Se observarmos cuidadosamente o
conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez
ao Seu povo foi honrá-lo e adorá-lo como único Deus, desprezando a
idolatria, que era muito comum entre os povos contemporâneos. Todos
os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei
natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso
testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a
lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim
confirmar e cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas
vezes. O exemplo mais claro e pedagógico que Jesus deixou de como
deve ser o nosso cumprimento da lei se encontra na parábola do “bom
samaritano”.
O evangelista Lucas (10, 25) narra o
diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei?
Eram os escribas, os sábios instruídos na lei de Moisés, os
rabinos, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos da lei dada por
Javeh a Moisés, podendo ser eles sacerdotes ou não. Portanto,
teoricamente, um doutor da lei sabia (mais do que as outras pessoas)
o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus
daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles
doutores da lei mais fervorosos e formalistas, aqueles que se
esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de
qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso
publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da
lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio
perguntar-lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele
respondeu com outra pergunta: me diga o que está na Lei? Ora, o
fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse:
pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que
Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei para assim
poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o
fariseu ficou desapontado. Em outras palavras, Jesus estava dizendo
para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se
encontra no coração de cada homem, esta lei não passa, não muda,
esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os
povos desde as épocas mais antigas e em todos os lugares do mundo, o
mandamento de fazer o bem sempre esteve persente em todas as
culturas. Não é necessário que os parlamentos a aprovem, pois ela
já se mostra evidente e presente por si mesma, reconhecida pela
sadia racionalidade.
Pois bem, disso o fariseu já sabia.
Mas para o cumprimento pleno da Lei, é preciso amar também o
próximo. Daí ele pergunta: e quem é esse próximo, que eu devo
amar? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido,
necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita,
ambos judeus, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na
estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo
da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até
certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não
eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os
sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na
parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo
para o seu interlocutor: um judeu igual a você. Por que motivo o
sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O
evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na
melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam se dirigindo ao
templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa
hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam
mesmo com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse
lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.
E para completar a ironia, Jesus
colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que fez a
coisa certa. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma rixa terrivel com
os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram
intrigados entre si e não se falavam. De propósito, Jesus colocou
um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o
samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele
puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele
(sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar
no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que
teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no
plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei,
para que ele tirasse a conclusão: quem desses três, ao seu ver, foi
o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha alternativa
senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as
orelhas pegando fogo.
Mas, enfim, como é cumprir plenamente
a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o
cumprimento formal da lei com a prática da caridade. Não se pode
dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles
deviam ter seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais
perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão
necessitado, mesmo que isso implicasse no atraso de outras
obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que
não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma
integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a
Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da
religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a
novena, a missa, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal
da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o
compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma
dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a
horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos
exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que
foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te
vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando
deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se ponderarmos
bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de
aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que
leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo
clássico e insuperável do amor ao próximo.
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