COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A PAZ E O
BEM – 07.07.2019
A liturgia deste 14º domingo do tempo
comum tematiza o envio de setenta e dois discipulos de Jesus para
saírem de cidade em cidade anunciando o evangelho, curando doentes e
expulsando demônios, tendo como único instrumento a paz. Enviados
como cordeiros no meio dos lobos, vão sem armamento algum, sem
sacola, sem dinheiro, levando apenas a palavra e semeando-a por onde
passarem. Esse tema do envio é recorrente na liturgia, pois na
verdade ele é sempre atual e ecoa nos nossos ouvidos a cada dia, nas
nossas atividades e nos nossos relacionamentos, lembrando-nos do
nosso compromisso de cristãos. Por isso, quero destacar neste
comentário a saudação que Cristo lhes recomendou: Em qualquer cada
onde entrardes, dizei primeiro – A paz esteja nesta casa. O
Seráfico Patriarca Francisco também escolheu essa lição da Paz
como norma de sua vida e a ela acrescentou o Bem. A saudação
franciscana é exatamente o que Cristo encomendou aos setenta e dois
que enviou: levar a Paz e fazer ao Bem.
A primeira leitura, colhida no deutero
Isaías (Is 66, 10-14), lembra a paz que reinou em Jerusalém, após
o retorno dos exilados da Babilônia. “Alegrai-vos
com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte
em seu júbilo, todos vós que choráveis por ela.”
Aquela conhecida e belíssima ária de Verdi, que faz parte da nossa
juventude, Va Pensiero, é um cântico de lamento dos hebreus no
exílio, chorando e lembrando de Jerusalém. “O mia patria, si
bella e perduta...” era o lamento dos hebreus sobre Jerusalém
destruída. Então, após o retorno dos exilados, diz o profeta
Isaías: alegrai-vos todos vós que choráveis por ela. E mais: “Diz
o Senhor: 'Eis
que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das naçðes
como torrente transbordante.”
A paz chegará a Jerusalém como um rio caudaloso, levando
prosperidade para esta cidade e tornando-a a glória das nações.
De, daí até o tempo de Cristo a cidade de Jerusalém se destacou
como uma metrópole na região, vindo a sofrer nova derrota somente
para os romanos, tempos depois. Esta segunda destruição de
Jerusalém foi prevista por Cristo, conforme consta no evangelho de
Lucas (19, 43): virá o dia em que os inimigos cavarão um fosso ao
redor e sitiarão o local, levando grande angústia para os teus
filhos e não deixarão pedra sobre pedra. Foi o preço pago por
Jerusalém pelo fato de que os seus habitantes, além de não crerem
em Cristo, ainda o crucificaram. Jerusalém não reconheceu o
príncipe da paz, então aquele rio caudaloso de que falou o profeta
se transformou num fosso mortal, cavado pelos inimigos, que levaram à
sua destruição.
Na segunda leitura, de Paulo dos
Gálatas, volta o tema da paz como sinônimo da nova criação,
aquela que foi redimida pela paixão e morte de Jesus. É quando
Paulo, mais uma vez doutrinando contra os judaizantes, ensina que
agora, a circuncisão e a incircuncisão já não têm valor, porque
o que realmente conta é ser uma nova criatura. Esta nova criatura se
faz pelo renascimento no batismo em nome de Cristo “e
para todos os que seguirem esta norma, como para o Israel de Deus,
paz e misericórdia.”
(Gl 6, 16). Vemos que Paulo indica a paz como fruto do batismo, da
adesão ao evangelho de Cristo. A antiga aliança foi recuperada pela
cruz, de modo que ele diz: “Doravante,
que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de
Jesus.” (Gl 6,
17). E diz mais: “ que
eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele,
o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o
mundo.” (Gl 6,
14). Ao ser crucificado, Cristo atraiu para si os pecados de toda a
humanidade, de modo que, redimindo-os, trouxe a paz a todas as
pessoas de outrora e de hoje, de tal modo que não há mais distinção
entre judeu e grego, entre escravo e livre, entre rico e pobre, mas
todas as diferenças se diluem na graça do batismo. E o resultado
que isso traz para todos é um só: paz e misericórdia.
Na leitura do evangelho, Lucas relata
(Lc 10, 1, 12) o envio de setenta e dois discípulos na frente de
Jesus, para cidades por onde ele deveria passar depois, a fim de que
preparassem o povo para a sua chegada. É curioso notar que Lucas não
tenha tido interesse em citar nenhum nome desses setenta e dois
enviados nem os nomes das cidades aonde eles foram. Com certeza, não
foi nenhum dos doze apóstolos, a quem Jesus estava preparando para a
missão futura, pois diz o evangelista (Lc 10,1), que foram
escolhidos “outros setenta e dois”.. E também eles não foram a
localidades muito distantes, pois o próprio Lucas relata o retorno
deles (Lc 10, 17) muito contentes pelas ações miraculosas que
tinham realizado: “até os demônios nos obedeceram”, disseram a
Jesus.
Mas o que é também interessante nesse
relato do envio dos setenta e dois discípulos são as 'regras'
ditadas por Jesus para que cumprissem:
não levar bolsa, nem sacola, nem sandália e não cumprimentar
ninguém pelo caminho. Chegando
a uma casa, dirão primeiro: a paz esteja nesta casa. Comerão os
alimentos que forem oferecidos e curarão os doentes. E se não forem
bem recebidos, deverão sacudir a poeira contra os habitantes. Sobre
esta mesma passagem, em Mateus 10, 9, consta que não deverão levar
nem ouro, nem prata, nem bens, nem duas túnicas, e manda ressuscitar
os mortos, curar os doentes, limpar os leprosos, expulsar os demônios
e anunciar que o reino de Deus está próximo. Lendo esses dois
textos em paralelo, concluímos que esta é a mensagem de Jesus para
nós, os enviados dos tempos de hoje. A diferença está em que não
necessitamos sair de cidade em cidade, mas em nossos relacionamentos,
em nossos ambientes de família, de trabalho e de lazer, podemos
exercer essa missão, do mesmo modo como já o fizeram pessoas
abnegadas, missionários do passado, que cumpriam à risca as ordens
dadas por Cristo aos setenta e dois.
Pois bem, mas eu queria destacar nesse
contexto a saudação que Jesus mandou fazer: a paz esteja nesta
casa. Se ali houver um “amigo” da paz, a paz repousará sobre
ele; do contrário, retornará para vós. Eu destaquei entre aspas a
palavra “amigo” porque é a tradução oficial do texto da CNBB,
no entanto, no original latino da vulgata, texto de São Jerônimo, a
expressão é “filius pacis”, ou seja, filho da paz. Esta é a
mesma expressão do original grego de Lucas: “yios eirenes”
(filho da paz). Não sei por qual razão os tradutores da CNBB
trocaram de ‘filho da paz’ para 'amigo da paz', pois me parece
que ser filho da paz tem um significado muito mais profundo e denso
do que apenas amigo da paz. Ser filho de Deus é muito superior a ser
apenas amigo de Deus. Penso que seja senso comum na nossa cultura que
o status de filho é bem mais elevado do que o de amigo, então fico
realmente sem entender o motivo que leva os tradutores e alterarem
assim a equivalência das palavras. Nosso Seráfico Patriarca
Francisco era, com certeza, um autêntico filho da paz, não apenas
amigo desta. Tomando aqui emprestado uma famosa afirmação atribuída
a Sócrates, quando lhe perguntaram se ele era um sábio (“sóphos”,
em grego), ele negou e disse que se considerava apenas um “philos
sophia”, isto é, amigo da sabedoria. Ora, nessa mesma linha de
raciocínio, um “sóphos” seria um filho da sabedoria, mas na sua
humildade, Sócrates se considerava apenas um amigo da sabedoria.
Podemos ver, assim, que não apenas na nossa cultura brasileira, a
relação entre os conceitos de “filho” e “amigo” atribui um
valor muito superior ao filho do que ao amigo. Fica difícil mesmo
entender o objetivo dos nossos liturgistas oficiais, quando preparam
as traduções dos textos das leituras.
Então, seguindo a norma dada por
Cristo, se naquela casa morar um filho da paz, a paz recairá sobre
ele; se não houver, a paz retornará para o seu emissor. A lição
que devemos tirar dessa ordem de Cristo é que nós devemos ser esses
filhos da paz. Quando o irmão que sofre alguma perturbação nos
procura, então devemos ser esse filho da paz, que recebe a paz
quando ela é emitida e também transmite a paz, quando a outra
pessoa dela necessita. Para sermos distribuidores da paz, é
necessário sermos filhos da paz, ou seja, é necessário que a paz
habite em nós, pois só podemos distribuir aquilo que possuímos e
para possuir a paz, devemos haurir seus fluidos nos ensinamentos do
príncipe da paz, que é Jesus. Assim, aquele rio de paz que o
profeta Isaías previu para correr em Jerusalém, após o retorno dos
exilados, invadirá também o nosso coração e a paz banhará todo o
nosso ser. Isso significa ser filho da paz. Isso significa que,
assumindo o nosso batismo, nos tornamos novas criaturas e, como diz
São Paulo aos Gálatas, para todos os que seguirem essa norma, o
resultado será paz e misericórdia.
Que o Senhor nos dê a sua paz. Que o
Seráfico Patriarca Francisco nos dê a sua Paz e o seu Bem.
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