COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO DO SENHOR –
02.06.2019
Celebramos neste domingo a festa da
Ascensão do Senhor. Aqueles homens da galileia, mesmo após todo o
curso intensivo de três anos e o posterior reforço de 40 dias de
catequese, que Jesus fizera com eles, naquele momento final, ainda
estavam a perguntar ao mestre: é agora que vais restaurar o reino de
Israel? Parece que não haviam entendido muita coisa dos ensinamentos
de Jesus. É curioso observar como ainda hoje vemos alguns cristãos
fazendo perguntas semelhantes, porque não conseguem entender o
significado mais autêntico da mensagem de Cristo.
Na primeira leitura, retirada dos Atos
dos Apóstolos (At 1, 1-11), o escritor sagrado narra a subida de
Jesus ao céu, após despedir-se dos apóstolos. Coincidentemente, a
leitura do evangelho de hoje é retirada do mesmo escritor dos Atos,
o médico São Lucas e, se observarmos com atenção os dois textos,
veremos que ele comete uma pequena incoerência acerca dos detalhes
que cercam a ascensão de Jesus. Em At 1, 4 e 1, 9, ele escreveu:
“Durante
uma refeição, deu-lhes esta ordem: 'Não vos afasteis de Jerusalém
… Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles.”
Lucas gosta muito de falar nos detalhes das cenas que descreve, mas
desta vez ele (parece) se esqueceu do que havia escrito no evangelho,
que é anterior (Lc 24, 50-51): “Então
Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos
e abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado
para o céu.” Se
fossem escritos de diferentes autorias, esta inconsistência da
narrativa seria fácil de explicar, mas visto que são textos do
mesmo autor, fica difícil ser compreendida. No entanto, isso importa
apenas por uma questão de análise textual, pois na verdade, não
altera o conteúdo da mensagem: Ele subiu ao céu depois de passar
mais um tempo (40 dias) após a sua morte reforçando a catequese com
os seus discípulos, para que eles entendessem melhor a doutrina que
iriam pregar.
Aliás, os textos dos evangelhos se
prestam mesmo a múltiplas interpretações. Nesse texto, os
seguidores do espiritismo interpretam essa narração dos Atos para
robustecer a sua tese de que, após a morte, o “espírito” não
vai logo para a sua morada eterna, mas ainda passa algum tempo
(tempos diferentes, de acordo com as necessidades de cada um) numa
situação intermediária, em que já não tem mais corpo material,
mas ainda não chegou ao nivel espiritual mais elevado. Por isso,
algumas pessoas mais sensitivas são capazes de “ver os espíritos”
dos mortos, porque eles ainda estão na situação vacante, ainda não
fizeram a viagem definitiva até o outro mundo. Teoricamente, isso
significaria que a “missão” daquela pessoa ainda não terminou,
assim como a missão de Cristo não teria terminado e por isso a
necessidade ficar aparecendo e ensinando aos apóstolos. Na minha
opinião, trata-se de uma simples acomodação do texto a uma posição
doutrinária diversa da oficial, algo que deve ser uma mera
coincidência literária. Eu não creio que cada pessoa tenha uma
“missão fechada”, que deva ser sempre obrigatoriamente
terminada, sob pena de não poder o ser humano desvincular-se
completamente do mundo terreno enquanto não a concluir. Essas
teorias reencarnacionistas são muito antigas, anteriores até ao
cristianismo e, provavelmente, Cristo as conhecesse. Entre os gregos,
havia defensores dessa doutrina, como os pitagóricos e os órficos,
embora Aristóteles a rejeitasse. Porém, Cristo nunca se referiu a
essa possibilidade nos seus ensinamentos e nem existe referência a
isso nas cartas de Paulo, que era o mais entendido de cultura grega
dentre os escritores sagrados. Penso que a missão de Cristo era
única e o seu exemplo não pode servir de modelo para algo que ele
nunca ensinou.
Ainda outro fato que está associado à
festa da Ascensão diz respeito a um trecho conclusivo do escritor
sagrado Lucas, quando ele escreveu (At 1, 11): “Apareceram
então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 'Homens da
Galiléia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse
Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o
vistes partir para o céu.”
Entra em ação, outra vez, o detalhismo de Lucas, percebam: dois
homens vestidos de branco. Ele nem diz que são dois anjos, mas por
terem saído das nuvens e estarem trajando branco, a tradição
entendeu sempre que são dois anjos. Mas o que eu quero chamar a
atenção também é para o outro detalhe: “Ele virá do mesmo modo
como o vistes subir.” Por causa deste detalhe, muitos pintores da
arte sacra têm mostrado Jesus, com um semblante resplandescente,
descendo do céu para julgar a humanidade, no final dos tempos.
Contudo, de acordo com as interpretações mais recentes dos
biblistas, essa descrição deve ser entendida metaforicamente, não
do modo restrito como está escrito. Esta descrição corresponde ao
modo como os primeiros cristãos entendiam a mensagem de Jesus,
quando Ele disse que retornaria para julgar a todos. Por causa dessa
compreensão do fato e por causa dessa descrição de Lucas, muitos
cristãos dos primeiros tempos viviam na expectativa de ver Jesus
voltando já naquela época. São Paulo até adverte os cristãos de
Tessalônica (II Tes 2, 1-12) para que ninguém queira adivinhar o
dia em que o Senhor voltará. Isso porque alguns cristãos
primitivos, achando que Jesus estava quase para vir, deixaram até
seus trabalhos e ficavam o dia todo ociosos só esperando a volta de
Jesus. Havia, dentre alguns, esse entendimento de que Ele estava para
retornar em breve e muito provavelmente o evangelista Lucas
transferiu essa ideia para o seu texto. A interpretação em que eu
acredito é de que cada fiel vai encontrar-se com o Julgador por
ocasião da sua passagem do nível material para o espiritual, não
havendo um determinado dia, no qual todos os vivos e mortos fariam
tal apresentação. Apesar disso, a forma tradicional de interpretar
essa passagem de Lucas (como um dia determinado para todos) ainda é
amplamente majoritária.
No domingo de hoje, celebra-se também
o dia mundial das comunicações, um fenômeno super importante do
mundo moderno. Em nenhuma outra época, foi tão fácil e tão
disponível, das mais variadas maneiras, a comunicação, sobretudo
aquela que se faz através dos canais eletrônicos. O próprio Papa
utiliza as redes sociais e incentiva os cristãos a utilizarem os
meios eletrônicos de comunicação para o serviço da evangelização.
As cerimônias religiosas
transmitidas pela TV e pela internet são muito bem recebidas no
mundo todo.
Ou seja, a Igreja enquanto instituição vem usando os modernos
canais de comunicação a serviço da evangelização, nos mais
diversos modelos de transmissão. Ainda do ponto de vista
institucional, temos os “padres cantores”, os canais de TV
específicos para a divulgação de temas religiosos, das mais
variadas comunidades religiosas, desde aquelas que oferecem um
serviço de boa qualidade, até aquelas que tem um intuito comercial
maior do
que propriamente o interesse de evangelizar. Sinceramente, tenho
dúvidas se se pode denominar
isso de evangelização, no sentido da missão que Jesus confiou aos
seus discípulos: ide pelo mundo e ensinai o que eu vos ensinei. Essa
apropriação indevida (a meu ver) dos canais de comunicação para
outros interesses, contudo, não justifica a total supressão da
divulgação da mensagem religiosa por esses meios. Afinal, será o
conhecimento e o discernimento de cada cristão que deverá saber
separar o joio do trigo, por isso, a forma tradicional de
evangelizar, através da pregação da palavra e dos ofícios
religiosos presenciais não pode ser substituída pelas formas
eletrônicas, as quais são válidas, mas devem ser utilizadas
parcimoniosamente.
A festa da Ascensão do Senhor prepara
a festa de Pentecostes, que será celebrada no próximo domingo. Ao
se despedir dos discípulos, Jesus pediu que eles não se afastassem
de Jerusalém, para que recebessem a “visita” do enviado especial
do Pai, o Paráclito, que iria confirmar tudo e abrir-lhes as mentes
para o seu correto entendimento. A segunda leitura, de Paulo aos
Efésios, contém uma invocação do Apóstolos aos fiéis daquele
tempo, que pode muito bem ser aplicada a nós, nesse momento, sem
quaisquer adaptações do texto (Ef 1, 18-19): “Que
ele [o
Espírito] abra
o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que
o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na
vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor
de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente.
” O mesmo Espírito que veio confirmar e esclarecer os
ensinamentos de Cristo aos apóstolos deve continuar a sua atuação
no nosso meio, para que possamos exercitar a amizade e a fraternidade
através dos recursos técnicos que temos à nossa disposição.
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