COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O CRISTO
DE DEUS – 23.06.2019
Neste 12º domingo do tempo comum, as
leituras litúrgicas destacam a relação entre a cruz e o batismo,
através da ação salvífica do Cristo de Deus, como assim Jesus foi
definido por Pedro, pela inspiração do Espírito. Falando em
particular com os doze apóstolos, depois da confissão de Pedro,
Jesus revela-lhes detalhes acerca da sua futura paixão, preparando o
espírito deles, para que não percam a fé, quando essas coisas
terríveis vierem a acontecer e proibindo-os de falar a respeito de
sua verdadeira identidade. Esse testemunho deveria ficar reservado
para depois da ressurreição.
A primeira leitura traz um texto do
profeta Zacarias, no qual há uma alusão bem explícita e direta à
figura do Messias, que será torturado e morto, mas depois, esses
mesmos que o matarem, irão chorar sobre o seu cadáver (Zc 12, 10):
“hão de chorá-lo, como se chora a perda de um filho único,
e hão de sentir por ele a dor que se
sente pela morte de um primogênito”. Este texto é reproduzido na
liturgia da Semana Santa, onde se lê que “contemplarão aquele a
quem traspassaram”. Trata-se de um prenúncio, com grande
antecipação temporal, uma longínqua antecipação do sacrifício
de cruz, considerando que a datação deste escrito é do século IV
antes de Cristo.
No versículo seguinte (Zc 12, 11), o
Profeta faz referência a um dia tão calamitoso quanto aquele em que
o Messias irá ser imolado, recordando que “haverá
um grande pranto em Jerusalém, como foi o de Adadremon, no campo de
Magedo.” O fato
referido pelo Profeta é a morte do rei Josias, que pereceu em
circunstâncias que poderiam ter sido evitadas, ocasionando grande
comoção junto do povo. Com efeito, depois de experimentar vários
reis injustos e idólatras, o povo de Israel tinha um rei bom e
devotado à sua gente: Josias. Ele foi tentar impedir o trânsito do
exército egípcio pelo território de Israel, numa ocasião em que o
Faraó travava uma guerra com os babilônios. Sem uma real
necessidade, posto que os egípcios não perseguiam os judeus, o rei
Josias tentou impedir a passagem do exército do Faraó e terminou
morrendo numa batalha desnecessária. Este mártir inocente era a
prefiguração do futuro Messias, que também seria inocentemente
imolado. Esta primeira leitura, portanto, traz uma alusão direta ao
sofrimento pelo qual o Messias teria de passar e também à reação
de arrependimento que ocorreria entre aqueles mesmos que lhe causaram
os sofrimentos. A começar por Judas e pelos soldados responsáveis
pela crucifixão.
Na segunda leitura, continuando a carta
de Paulo aos Gálatas (3, 26-29), lemos o ensinamento do apóstolo
acerca da consequência mais importante que o batismo nos traz, que é
o fato de sermos inseridos em Cristo e, com isso, nos tornamos
herdeiros de toda a promessa que Javeh fez aos Patriarcas, desde os
tempos antigos. “Vós
todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. …
Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros
segundo a promessa.”
Pelo batismo, nós nos tornamos um em Cristo e isso nos unifica
também entre nós, de modo que já não há mais distinção de
raça, cor, sexo, origem, classe social, a adesão a Cristo nos torna
membros de um só corpo e nos faz todos irmãos. Pelos sofrimentos na
cruz, Cristo abriu para nós o acesso à casa do Pai. Pelo batismo,
nos revestimos de Cristo e nos tornamos merecedores de sua graça.
Observem que o batismo não apenas nos une a Cristo, mas nos reveste
dEle, é muito mais profundo. O Papa Francisco, no seu sermão
semanal na Casa de Santa Marta, onde ele reside, fez questão de
destacar essa importante lição teológica: a porta da Igreja é o
batismo, não a ordenação sacerdotal ou episcopal. Trata-se de um
puxão de orelhas no clericalismo reinante na Igreja, desde há muito
tempo, reforçando o papel fundamental que possuem os leigos no
interior da comunidade eclesial. Lamentavelmente, nossos pastores não
pensam nem agem nessa direção.
A leitura do evangelho nos mostra Jesus
se revelando em particular para os apóstolos. Em Lc 9, 18-21, temos
aquela conhecida passagem em que Pedro faz a definição mais
perfeita de Jesus, quando responde à interrogação dele próprio
sobre “quem vós achais que eu sou?” Pedro se antecipa aos demais
e responde com determinação: Tu és o Cristo de Deus. Antes, Jesus
havia perguntado o que o povo falava a respeito dele. Talvez algum
dos antigos profetas que ressuscitou, era essa a opinião popular a
seu respeito. Então, Jesus proibiu expressamente os apóstolos de
ficarem falando para o povo quem ele era realmente, pois essa
revelação deveria aguardar os acontecimentos futuros. E passa a
dissertar sobre os detalhes do seu sofrimento futuro, usando para si
mesmo a expressão “filho do Homem”: “O
Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos
sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve
ser morto e ressuscitar no terceiro dia”
(Lc 9, 22) Por que Jesus fala sobre si mesmo como o Filho do Homem?
Aqui há uma explicação interessante. Jesus se serve de uma
expressão que era bem conhecida dos judeus, que em hebraico se diz
“ben Adam” e que significa genericamente um ser humano, uma
pessoa. Fazendo referência ao primeiro homem bíblico, que foi
tirado do limo da terra (adam), Jesus usa essa expressão para
representar, ao mesmo tempo, a si próprio e a todos os seres
humanos, para os quais o seu sofrimento vai servir de redenção.
Nesse momento, Jesus está-se referindo diretamente à sua
humanidade, assumindo ser ele também um “ben Adam”, isto é, um
filho da terra, assim como todos os seres humanos são. Para ilustrar
melhor esse conceito, informo aos leitores que o plural dessa
expressão significa, em hebraico, humanidade. Por outras palavras,
Jesus está declarando que o seu ser humano vai passar por todas
essas agruras. O Filho do Homem irá sofrer perseguição pelos
chefes do povo, morrerá e depois ressuscitará.
Foram várias as vezes em que os
apóstolos ouviram Jesus dizer isto: sofrer, morrer, ressuscitar, mas
provavelmente eles só vieram a entender isso depois que esses fatos
aconteceram. Judas foi um que ficou esperando, até o último
momento, que Jesus fizesse uma grande demonstração de poder e
liquidasse todos os inimigos de Israel. Pedro o negou por três
vezes, porque não tinha compreendido o alcance daquelas palavras
(sofrer, morrer, ressuscitar). João foi outro que se aproveitou do
conhecimento que tinha com pessoas do palácio de Pilatos e conseguiu
entrar no pretório para tentar ver o que estava acontecendo com
Jesus, pois ele também não tinha entendido o sentido daquelas
palavras. Aqueles dois discípulos que iam para Emaús eram outros
descrentes, sem entender o que havia acontecido. Eles também não
entenderam aquelas palavras. Dos demais, não se sabe, porque as
reações não ficaram registradas. O certo é que, só após a
ressurreição e as seguidas aparições de Jesus no meio deles, foi
que começaram a juntar as ideias e compreender o que Ele havia dito.
E tudo foi confirmado, depois, em Pentecostes.
E no final deste discurso, Jesus diz
ainda palavras mais incompreensíveis para eles: “quem
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por
causa de mim, esse a salvará”
(Lc 9, 24). Se eles já não tinham entendido a primeira parte, esse
final era ainda mais enigmático. Quem veio trazer a explicação
desse enigma foi Paulo, na epístola aos Gálatas, lida no domingo
passado (Gl 2, 20): “Eu
vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida
presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me
amou e por mim se entregou.”
Quem quer salvar a sua vida, isto é, quem quer viver segundo seus
próprios desígnios, sem seguir os ensinamentos de Cristo, vai ao
final se perder, se destruir. Mas quem se deixar guiar pelos
ensinamentos de Cristo, pode parecer que está perdendo o seu tempo e
a sua vida, mas pela fé alcançará a salvação. A vida na carne, a
vida material não pode fechar-se sobre si mesma, buscando acumular
cada vez mais, possuir cada vez mais, desfrutar cada vez mais, porque
quem age assim vai perdê-la. A vida material deve ser vivida na fé
e na caridade, crendo no Filho do Homem e seguindo os seus
ensinamentos. O cristão não abandona a vida material, a vida na
sociedade, não recusa a posse dos bens materiais, mas vive tudo
isso, possui tudo isso com espírito de solidariedade, utilizando
esses bens a serviço dos irmãos. Isso é possível porque, pelo
batismo, nos revestimos de Cristo e assim a nossa vida material se
constrói numa vivência de fé, sabendo administrar os bens
materiais em vista do bem de todos.
Que a lição de Paulo aos Gálatas
possa se transformar no lema da nossa vida cristã.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário