COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – DIVINA
MISERICÓRDIA – 28.04.2019
Neste
segundo domingo da Páscoa, a liturgia celebra o “domingo da
misericórdia”, dia consagrado a essa festa, que é nova no
devocionismo católico, pois só passou a ser prestigiada no final do
pontificado do Papa São João Paulo II. A exaltação da
misericórdia divina é o reconhecimento das revelações
particulares recebidas por Santa Faustina Kowalska, uma freira
polonesa, falecida aos 33 anos, em 1938, e que deixou registradas, no
seu diário, inúmeras visões em que Cristo aparece a ela com raios
fulgindo do coração e pedindo-lhe a divulgação da sua
misericórdia pela humanidade. A própria palavra “misericórdia”
resume outras duas palavras latinas: miserere (ter compaixão) e
cordis (do coração). O Papa Francisco, dirigindo-se aos peregrinos,
no Vaticano, assim definiu essa virtude: “A misericórdia é, antes
de mais nada, a proximidade de Deus ao seu povo. Uma proximidade que
se manifesta principalmente como ajuda e proteção.” Foi em
virtude de sua misericórdia que Deus se fez um de nós, concluiu o
Papa, o que torna esta solenidade totalmente alinhada com as
festividades pascais.
Na primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (At 5, 12-16), lemos diversos testemunhos narrados por
Lucas (autor do texto) da grande adesão de novos cristãos, mediante
a pregação dos Apóstolos e os milagres realizados por eles.
Inicialmente, escondidos e trancados em casa por medo das
perseguições que lhes ocorreram depois da morte de Cristo, no
entanto, após a ressurreição, houve uma transformação no
comportamento deles e no seu modo de agir. Diz o texto que acorriam
multidões das cidades próximas de Jerusalém, para ouvir a pregação
dos Apóstolos e traziam seus doentes para serem curados. Colocavam
os doentes nos locais por onde eles deviam passar e esperavam que ao
menos a sua sombra os alcançasse, porque isso era garantia de cura.
Com efeito, pelos relatos de Atos, os Apóstolos fizeram grande
quantidade de milagres, os quais não foram todos conservados nas
narrações, até porque isso seria impossível, dada a sua profusão.
Os milagres feitos por intermédio dos Apóstolos tinham uma força
probante muito eficiente, porque demonstravam nas pessoas destes o
poder e a divindade de Jesus. O poder de convencimento que os
Apóstolos exerciam eram fortíssimo, ocasionando grande quantidade
de conversões em Jerusalém e nas cidades próximas. Nessa época, a
mensagem ainda era dirigida apenas aos judeus, chegando também aos
gentios somente mais tarde. Diz Lucas (At 2, 41) que, num único dia,
mais de três mil judeus se converteram e receberam o batismo.
Na segunda leitura, lemos um trecho do
Apocalipse de João, na qual ele relata algo que passou, quando
esteve exilado na ilha de Patmos, e declara que alguém, semelhante
ao filho do Homem, afirmou para ele que havia morrido, mas agora está
vivo para sempre, mandando ainda que ele escrevesse a visão que
estava presenciando. O testemunho de João é valiosíssimo, porque
ele convivera com Cristo em vida terrestre e O viu depois de
ressuscitado, por diversas vezes. Associando-se isso ao fato de que
João foi o Apóstolo que teve vida mais longa e, portanto,
acompanhou todo o desenvolvimento do cristianismo nascente, tinha um
conhecimento privilegiado de todos esses fatos e por isso a sua
reflexão tinha aquela grande autoridade de cofundador do
cristianismo. Um outro aspecto interessante do escrito de João é
que podemos perceber ali (Ap 1, 11) um conceito da inspiração dos
livros sagrados: o agiógrafo observa os fatos e os relata, de acordo
com a sua percepção. Não podemos, pois, pensar que a palavra de
Deus escrita, isto é, a Bíblia, tenha sido uma espécie de “ditado”
ou um texto psicografado, como em algumas épocas anteriores assim se
afirmava, para dar maior credibilidade aos textos. A mensagem é
divina, mas a escrita é humana e a palavra de Deus é uma síntese
dessas duas realidades, que nos compete interpretar.
O trecho do evangelho de hoje (Jo 20,
19-31) é o conhecido episódio da incredulidade de Tomé, um dos
textos mais conhecidos do cristianismo antigo, porque ali João usava
a imagem do apóstolo reticente para reforçar na fé os novos
cristãos, ao dizer: bem-aventurados os que creram sem terem visto
Jesus. E observemos que, embora Tomé tivesse dito antes que só
acreditaria se pusesse o dedo nos locais das feridas de Jesus, quando
se viu frente a frente com ele, ficou tão envergonhado de sua falta
de fé que não teve outra iniciativa, senão a de prostrar-se e
confessar soluçante a sua crença: Meu Senhor e meu Deus!. Podemos
imaginar a cena em que Tomé teve sua arrogância inicial de
incrédulo totalmente desmontada pelo chamado de Jesus: vem aqui e
olha essas feridas… põe o dedo… ora, Jesus sabia do que Tomé
havia dito e nem havia falado com ele antes. Desmoronou por completo
a sua dúvida. Jesus teve uma atenção especial com Tomé, porque
ele teve dificuldade de permanecer unido com o grupo, após a morte
de Jesus, assim como aconteceu também com os discípulos que iam
para Emaús, abandonando o grupo. E podemos concluir daí também que
João narrou esse episódio com riqueza de detalhes exatamente
porque, em algumas comunidades primitivas, ainda havia incertezas e
interrogações acerca da humanidade real de Jesus, acerca da sua
paixão e ressurreição, e João fora testemunha ocular de tudo
aquilo, o que lhe garantia uma confiabilidade total nas suas
narrativas. Certamente por isso é que esse episódio da
incredulidade de Tomé foi narrado apenas pelo evangelista João, não
se encontrando nos demais evangelhos. João tinha conhecimento do
fato por experiência própria, por ter sido um dos que estavam
presentes no momento, enquanto os outros autores dos evangelhos
escreveram apenas pelo que ouviram ou leram a respeito. E João ainda
diz mais que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não
foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma
amostra de tudo o que Ele havia feito.
Quero fazer uma referência, neste
contexto, a outro trecho dos Atos dos Apóstolos que foi lido na
liturgia de ontem, sábado, acerca da pregação dos Apóstolos e da
adesão em massa dos judeus ao cristianismo, causando preocupação
aos chefes dos Sacerdotes e aos anciãos do povo. Estes sabiam que
aqueles Apóstolos eram os mesmos que haviam seguido Jesus e sabiam
que eles eram homens de pouca instrução, daí não conseguirem
entender o motivo de eles terem ficado tão sábios e eloquentes da
noite para o dia, fazendo milagres que eles não podiam negar, eles
mesmos presenciaram os fatos. (At 4, 14). Mandaram prendê-los, mas
logo depois os soltaram, com receio de uma reação por parte da
multidão, que os estimava e defendia. E ficaram a discutir sobre o
que fazer para frear o avanço do cristianismo nascente, para que “a
coisa não se espalhe ainda mais entre o povo” (At 4. 17). Então,
chamaram Pedro e João e os proibiram de ensinar e pregar o nome de
Jesus, ameaçando-os. Eles simplesmente disseram que não obedeceriam
aquela ordem e os fariseus não puderam fazer nada, por causa do
grande apoio popular que os Apóstolos tinham.
Observa-se, meus amigos, como foi
impactante o resultado da pedagogia de Cristo usada durante a sua
missão de pregador, quando lemos sobre os fatos ocorridos após a
sua morte. Os fariseus e os sumos sacerdotes fizeram uma manobra
política para conseguir a condenação de Jesus à morte, na
expectativa de que, com isso, seus discípulos se dispersassem e a
coisa se acabasse por ali. Assim já havia acontecido com outros
“revolucionários” e havia dado certo, pensavam eles que com
Jesus seria a mesma coisa. Só que com Jesus a situação foi outra,
porque Ele ressuscitou, isso fez toda a diferença. Desse modo, a
grande massa ao ver os milagres operados pelos Apóstolos, em nome de
Jesus, tiveram a certeza do seu poder e da sua origem divina,
contrariando os prognósticos dos sacerdotes. O resultado disso é
que a adesão à nova fé entre os judeus se apresentou em tal
profusão que os sacerdotes ficaram sem saber o que fazer. Aquela
estratégia imaginada com a sua condenação estava surtindo o efeito
contrário do pretendido, ou seja, Jesus morto (mas ressuscitado), se
tornara ainda mais poderoso do que antes de morrer. Essa é a grande
mágica da loucura da cruz, de que fala o apóstolo Paulo (1 Cor 1,
18): “Porque a palavra da cruz é
loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o
poder de Deus.” Os chefes dos sacerdotes, ao apresentarem Jesus
como um
louco perante a multidão e o submeterem ao máximo suplício,
pensavam que haviam exterminado a sua pregação e a sua influência.
Não demorou nada e aquela suposta loucura estava se transformando em
extraordinário poder, contra o qual os seus algozes não tinham mais
nenhum controle.
Meus amigos, neste segundo domingo
pascal, acompanhemos as homenagens que são feitas à nova devoção
cristã da misericórdia divina, compreendendo que a misericórdia
divina é a nova imagem pela qual se apresenta a face de Jesus
ressuscitado.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário