COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – A CRUZ E A
ESPADA – 30.06.2019
Caros Confrades:
A liturgia do 13º domingo comum cede
lugar para a festa dos santos Pedro e Paulo, os fundadores do
cristianismo em Roma. Ambos foram martirizados no tempo do imperador
Nero e ambos tiveram fundamental importância na igreja primitiva,
Pedro exerceu forte liderança entre os judeus, enquanto Paulo
conquistou o mundo greco-romano. Ambos deram seus testemunhos de fé
e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre até as últimas
consequências: Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé
semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou
intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o
solo americano.
Pedro foi o primeiro bispo de Roma e,
com isso, tornou-se a autoridade maior para todas as igrejas
católicas ocidentais, porém essa liderança nunca foi aceita pelas
igrejas católicas ortodoxas orientais, que possuem, cada uma, seu
próprio Patriarca. A Igreja Siríaca de Antioquia, por exemplo,
reclama a sua prioridade, porque Pedro foi bispo daquela comunidade
antes de deslocar-se para Roma. Além desta, há catorze outras
igrejas católicas ortodoxas, que não reconhecem a autoridade do
Bispo de Roma. A Igreja Ortodoxa da Armênia se considera a primeira
igreja cristã oficialmente reconhecida pelo Estado, no ano 301,
enquanto que o cristianismo só foi reconhecido em Roma vinte anos
depois. Ou seja, a liderança do Bispo de Roma se restringe mesmo ao
catolicismo ocidental. Os Papas, desde o final do Concílio Vaticano
II, retomaram um processo de diálogo com os irmãos orientais, após
quase mil anos de afastamento. O papa Francisco vem seguindo os
passos dos pontífices anteriores, buscando reintegrar as comunidades
orientais e ocidentais católicas, com boa aceitação por parte das
autoridades das outras igrejas. Mas ainda há um longo caminho a ser
percorrido.
As leituras litúrgicas recordam fatos
extraordinários atinentes à vida pessoal dos apóstolos Pedro e
Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra, nos Atos dos
Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da prisão do
rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus adversários dos
cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e o tamanho da fé que
a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes sabia da importância
hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial
de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos
guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro
estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela
ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor
sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da
comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para
todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas
falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, eles se
comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu
estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração
que havia entre a comunidade cristã e Pedro, destacando que a oração
dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para
libertar Pedro da prisão. A oração das nossas comunidades em prol
dos seus pastores, assim como o apoio nas iniciativas da paróquia,
faz parte da obrigação dos fiéis e demonstra a presença do
espírito comunitário cristão.
A narrativa da libertação de Pedro
tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos
filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes
iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo
do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9)
que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele
estava apenas sonhando. Imaginemos a cena: Pedro dormia preso e
acorrentado e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou
os soldados que dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam
as mãos se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem
chamou a atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se
sozinhos diante dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro
seguia o anjo e via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era
apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e
livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz
o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos
imaginar a grande festa que aconteceu na comunidade cristã com a
chegada de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de
Herodes, quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém
sabia explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do
Senhor não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja
primitiva. A libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o
valor da oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.
Na segunda leitura, da Carta a Timóteo
(2Tm 4, 6-18), o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só
a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na
salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas
aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive
a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de
hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da
justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para
todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de
Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma
espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu
discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao
chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava
próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse
para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra
circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava
concluído, conforme ele mesmo compreendera.
A leitura do evangelho de Mateus (Mt
16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual
ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de
“pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de
fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com
efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com
Pedro, porém não mencionam o detalhe das “chaves do reino do
céu”. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz
tal referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus.
(Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o
poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é
um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt
adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão
contra ela. Esse trecho foi o que, por volta do século IV, deu
origem à doutrina da autoridade superior do bispo de Roma sobre
todas as demais igrejas. Sabemos, pela história, que a igreja cristã
de Roma foi uma das últimas a serem constituídas. As igrejas de
Jerusalém, de Antioquia, de Alexandria, de Constantinopla, de Chipre
e diversas igrejas gregas são todas mais antigas do que a de Roma.
Então, por que o bispo de Roma deveria ter autoridade sobre essas
igrejas mais antigas? Os líderes dessas igrejas orientais nunca
entenderam nem aceitaram esse fato, que foi objeto de calorosas
discussões em diversos concílios, vindo por fim a provocar o
desligamento das igrejas de língua grega com a igreja de língua
latina, no ano 1054. Somente após o Concílio Vaticano II, o Papa
Paulo VI começou um movimento de reaproximação da igreja romana
com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado pelos papas
seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI nomeou como
cardeais dois prelados orientais, sendo este um fator de esperança
de que os elementos de discórdia sejam um dia superados.
Pois bem, podemos concluir que Pedro e
Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um
na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências
doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem
diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa
diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem
se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa
reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e
grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se
destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao
lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de
Jesus com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão
de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época.
Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre
deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que
tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito
nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo
com fidelidade.
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