domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SS TRINDADE - 16.06.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 16.06.2019



A liturgia celebra hoje a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético, que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a um novo ciclo.

A fé na Santíssima Trindade é a verdade central do cristianismo, o grande mistério revelado por Jesus, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade era unipessoal apenas, isto é, o Deus dos patriarcas havia se manifestado a Abraão e prometeu-lhe uma grande descendência, mas sequer disse o seu nome. Moisés foi o primeiro que teve a ousadia de perguntar o nome DELE, no episódio dramático do monte Sinai e ouviu como resposta um enigmático EU SOU (ehyeh, em hebraico, evoluindo depois para yhwh -יהוה). Isso era tudo que os hebreus sabiam acerca do Pai. Após vários episódios de submissão do povo hebreu, os profetas começaram a anunciar a vinda de um Messias, o Salvador. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um”. Terminada a sua missão, Jesus prometeu que o Pai enviaria o Paráclito, aquele que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério” significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado somente com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem não se recorda daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito dos sentidos)?

Sob o ponto de vista da teologia católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia, ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por isso, a compreensão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Jesus é filho de Deus, mas não é igual a ele, Jesus seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma única natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates, antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.

A definição oficial foi aprovadas em dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325, os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.

Faz pouco tempo, eu li na internet uma matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, a qual o cristianismo aproveitou. Diversas divisões protestantes negam a Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também. Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus da manutenção) e Shiva (deus da destruição). No antigo Egito, havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades (trios) de três deuses distintos, diferentemente da trindade unitária cristã, em que o Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses, mas são um único Deus. E também não a entendem aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua ingenuidade e petulância, então fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam (entendo para crer, creio para entender). Assim, ele pode finalmente solucionar a sua dúvida.

Nas leituras litúrgicas de hoje, temos na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5), onde o Apóstolo ensina que “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. ” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, antes mesmo da escrita dos evangelhos, quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às outras comunidades.

Em resumo, Jesus é a chave para o conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de Aquino: “A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

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