COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE -
16.06.2019
A liturgia celebra hoje a festa da
Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético,
que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até
o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a
doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do
Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho
Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo,
retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano
litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a um novo
ciclo.
A fé na Santíssima Trindade é a
verdade central do cristianismo, o grande mistério revelado por
Jesus, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do
Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade
era unipessoal apenas, isto é, o Deus dos patriarcas havia se
manifestado a Abraão e prometeu-lhe uma grande descendência, mas
sequer disse o seu nome. Moisés foi o primeiro que teve a ousadia de
perguntar o nome DELE, no episódio dramático do monte Sinai e ouviu
como resposta um enigmático EU SOU (ehyeh, em hebraico, evoluindo
depois para yhwh -יהוה).
Isso era tudo que os hebreus sabiam acerca do Pai. Após vários
episódios de submissão do povo hebreu, os profetas começaram a
anunciar a vinda de um Messias, o Salvador. Quando veio Jesus, ele
trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um”. Terminada a
sua missão, Jesus prometeu que o Pai enviaria o Paráclito, aquele
que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da
Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que
perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério”
significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado
somente com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em
suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem não se recorda
daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides
suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao
defeito dos sentidos)?
Sob o ponto de vista da teologia
católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem
mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa
aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os
teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia,
ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem
com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras
gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A
revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão
pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o
fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado
e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por
isso, a compreensão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões
nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas
doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a
mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas
doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o
arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de
nome Ario, ensinava que Jesus é filho de Deus, mas não é igual a
ele, Jesus seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que
Cristo tinha apenas uma única natureza, a divina, e a sua humanidade
era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível.
Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os
primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates,
antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.
A definição oficial foi aprovadas em
dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em
325, os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”,
a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que
ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi
depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque
no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do
Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é
também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua
redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o
Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado.
Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no
linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo,
as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho
foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a
mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas
do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas.
Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla
definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o
verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação
de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho
é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra
pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João.
Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse
entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era
conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é
o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa
divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a
nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé
nos dá esta certeza.
Faz pouco tempo, eu li na internet uma
matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi
inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, a qual o
cristianismo aproveitou. Diversas divisões protestantes negam a
Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também.
Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em
diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não
pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que
o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no
hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus
da manutenção) e Shiva (deus da destruição). No antigo Egito,
havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e
Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a
doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades
(trios) de três deuses distintos, diferentemente da trindade
unitária cristã, em que o Pai, Filho e Espírito Santo não são
três deuses, mas são um único Deus. E também não a entendem
aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o
“único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há
contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei
suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender
tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S.
Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando
colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho
percebeu o tamanho da sua ingenuidade e petulância, então fez uma
descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam
(entendo para crer, creio para entender). Assim, ele pode finalmente
solucionar a sua dúvida.
Nas leituras litúrgicas de hoje, temos
na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5),
onde o Apóstolo ensina que “estamos
em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo...
porque
o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado.
” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo,
antes mesmo da escrita dos evangelhos, quando a doutrina da Trindade
ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca
da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito
muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a
interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho
mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem
Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria
condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e
onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes,
idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também,
naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita,
perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas.
Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na
Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para
ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível
esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas
classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da
pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia
às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às
outras comunidades.
Em resumo, Jesus é a chave para o
conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S.
Tomás de Aquino: “A fé católica
consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade,
sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a
pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma
é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo.”
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