COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – A BOCA E O CORAÇÃO
– 03.03.2019
Neste 8º domingo comum, a liturgia
traz para nossa reflexão a relação existente entre o interior e o
exterior da pessoa: a boca fala daquilo que o coração está cheio.
E nós podemos entender com o conceito de “boca” o ser humano
inteiro, porque nós nos comunicamos também com gestos e atitudes,
não apenas com as palavras. Este domingo, que antecede o período
quaresmal, põe em destaque uma vivência comum a todos nós, pois o
nosso falar e o nosso agir estão sempre associados e, já diz o
jargão popular, é mais fácil apanhar um mentiroso do que um
aleijado. Sim, porque uma pessoa, cujas ações e atitudes não
condizem com o seu discurso verbal, é de fato um mentiroso.
Na primeira leitura, retirada do Livro
do Eclesiastes (Eclo 27, 5-8), temos o conselho dos antigos sábios
de Israel: não elogies a ninguém antes de ouvi-lo falar. O título
desse livro na Bíblia hebraica diz-se Qohelet e faz parte do grupo
dos “escritos” (ketuvim), a terceira seção daquela Bíblia, ao
lado dos livros poéticos e dos sapienciais (a primeira seção é a
Torá – a lei; a segunda seção é Naviim – os profetas).
Qohelet significa aquele que reúne a assembleia, aquele que ensina,
o pregador. Então, este livro contém ensinamentos teóricos e
práticos transmitidos ao longo de muitos séculos pelos sábios do
Povo de Israel, cuja leitura era feita nas sinagogas, com o intuito
de mostrar sobretudo aos jovens como deve ser conduzida a vida com
sabedoria. O sábio não precisa ser aquele asceta, figura que surgiu
na Idade Média e mostrava pessoas que haviam abandonado tudo e se
refugiavam nos mosteiros ou mesmo em locais desertos, dedicando-se à
oração e à meditação, e eram tidos como respeitáveis pelo seu
ato de renúncia extrema. O Qohelet é mais modesto, procura ensinar
aos jovens que não é necessário adotar condutas extremas para
alcançar a sabedoria, mas que esta também pode ser encontrada nas
labutas cotidianas. Exercer a própria vida com sabedoria quer dizer
servir-se dos bens materiais e do conforto que o trabalho proporciona
com duas condições básicas: primeira, compreender que tudo isso é
dom de Deus e sempre agradecer por isso; segundo, não ser apegado a
esses bens, de modo que a posse deles não seja motivo de soberba nem
de desprezo dos irmãos. Em outras palavras, a sabedoria seria a
expressão da fé autêntica, aquela fé que não fica presa nas
palavras, mas se estende e se entrelaça com as atitudes. Por isso,
diz o Qohelet, no texto de hoje, assim como o fruto revela a
qualidade da árvore de onde proveio, assim a palavra revela o
coração do homem. Antes de formar sua opinião acerca de alguém,
ouça-o falar. Se a sua palavra for coerente com as ações que ele
realiza, então trata-se de uma pessoa confiável e sábia. O
conselho dos sábios de Israel, escritos na literatura sapiencial,
revela-se como perene e sempre atual, corolários de um saber
existencial que não está atrelado nem a uma determinada religião
nem a uma determinada sociedade, mas à própria natureza da
humanidade.
Coloca-se nessa mesma linha de
raciocínio o ensinamento de Jesus, transmitido pelo evangelista
Lucas (Lc 6, 39-45): a boca fala daquilo que o coração está cheio.
Jesus encarna, na nova aliança, a figura do pregador (qohelet), do
doutrinador por excelência. E diz: todo discípulo bem formado se
igualará ao mestre. Se o mestre for um sábio, o discípulo assim
será também. Se o mestre for um néscio, o discípulo terá o mesmo
destino, porque um cego não pode guiar outro, ambos cairão no
buraco. Jesus usava essa imagem do cego referindo-se aos fariseus
daquele tempo. Eles eram os mestres do povo, mas eram néscios,
soberbos, insensatos, por isso não conseguiam guiar o povo para a
religião verdadeira. Em outra ocasião, Jesus disse (Mt 23, 4):
“Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens.
No entanto, eles próprios não se dispõem a levantar um só dedo
para movê-los.” Eles estavam teoricamente sentados na cadeira de
Moisés, ou seja, eles tinham a autoridade, no entanto, não davam o
exemplo, o agir deles não era coerente com o seu discurso. Por isso,
disse Jesus, façam o que eles dizem, mas não imitem o que eles
fazem. Esta mesma lição se repete no texto do evangelho de Lucas da
liturgia de hoje, através da imagem do cego. O farisaísmo havia
transformado a Lei de Moisés num repertório de regras de conduta,
com mais de 600 enunciados, quase todos proibitivos (não pode isso,
não pode aquilo…), no entanto, os próprios fariseus não cumpriam
esses preceitos, porém exigiam que os judeus os cumprissem. Daí o
recado grosseiro de Jesus: Hipócrita, como é que consegues perceber
o cisco no olho do teu irmão, mas não percebes a catarata no teu
olho? Limpa primeiro o teu olho, para poderes enxergar bem, depois
vai tirar o cisco do olho do irmão. E o evangelista relembra outros
discursos de Jesus com o mesmo teor: a árvore boa produz bons
frutos, a árvore má produz frutos ruins; não se colhem uvas de
espinheiros nem figos de abrolhos. Da mesma forma, uma pessoa de
coração má não poderá dar bons exemplos. Só a pessoa boa retira
bons frutos do bom tesouro do seu coração.
Meus amigos, precisamos ter muito
cuidado para que esse puxão de orelhas de Jesus não venha a ser
aplicado a nós. Sobretudo aquelas pessoas que possuem algum tipo de
liderança, essas mais do que as outras têm a obrigação de dar
bons exemplos. Assim, os pais em relação aos filhos, os professores
em relação aos alunos, os idosos em relação aos jovens, os
líderes de qualquer natureza em relação aos seus liderados. Os
sábios romanos antigos possuíam uma máxima que bem se enquadra
nesse contexto e que dizia assim: Verba movent, exempla trahunt. (As
palavras comovem, os exemplos arrastam). Dizer e não fazer é uma
incoerência interna imperdoável. Ninguém pode arrogar em seu favor
a repreensão que Jesus fez aos fariseus do seu tempo: façam o que
eu digo, mas não o que eu faço. Qualquer líder que assim fizer
será indigno de exercer a liderança. Será um cego guiando outro
cego para caírem ambos no buraco. Ao contrário, deve aplicar-se o
sempre atual ensinamento do Qohelet: a sabedoria consiste na
coerência que deve existir entre o interior e o exterior da pessoa.
Essa é a sabedoria milenar recolhida pelo escritor bíblico e que
tem se mostrado eficaz em todos os tempos.
O apóstolo Paulo, na epístola aos
Coríntios (1Cor 15, 54-48) demonstrou saber que total coerência
entre o ser humano interior e o seu exterior é uma tarefa constante
e difícil, que só estará completa quando este corpo mortal se
revestir da imortalidade e este ser corruptível se revestir da
incorruptibilidade. Aí, então, se cumprirá a palavra da Escritura:
a morte foi vencida pela vitória. Onde está, na Escritura, essa
referência feita por Paulo aos Coríntios? Está no livro de Isaías,
o profeta do exílio e da esperança, cap. 25, 6-8, confortando os
cativos na Babilônia: “O Senhor dos Exércitos dará nesse monte
uma grande festa a todos os povos… e destruirá nesse monte os
vínculos que oprimem todos os povos… e destruirá a morte para
sempre e enxugará as lágrimas de todos os rostos...” A profecia
de Isaías é messiânica e Paulo sabia que essa profecia já havia
se cumprido com Jesus Cristo, através de sua ressurreição,
restando agora a cada um seguidor de Cristo fazer a sua parte, para
também ter acesso aos mesmos benefícios conquistados pela redenção
de Jesus. E assim ele aconselha aos cristãos corintianos: sede
firmes e empenhai-vos cada vez mais na obra do Senhor, cientes de que
os vossos esforços não serão em vão. Esse ensinamento de Paulo
pode ser conectado com outra passagem dele, na carta aos Romanos (7,
12), onde ele confessa a dificuldade que ele próprio tem de colocar
em prática o mandamento de Cristo: “a lei é espiritual, mas eu
sou carnal, sufocado pelo pecado. O querer está em mim, mas não
consigo realizar o bem. Por isso, não faço o bem que quero, mas o
mal, que não quero”. Jesus sabia que não é fácil integrar o
interior com o exterior do homem, mas para isso é que Deus dá a
cada um a sua graça. Paulo, na sua humildade de discípulo de
Cristo, não tem vergonha de confessar que ele também erra. Porém,
a questão não é errar ou acertar, mas ter consciência do erro,
para não repeti-lo, para aprender com ele, para perceber que somente
com o auxílio da graça divina cada um pode evoluir na direção da
sabedoria e da santidade.
Examinemos, portanto, atentamente como
está a coerência entre a nossa boca e o nosso coração e tenhamos
a humildade de admitir que estamos sempre sujeitos a falhas, mas isso
não é de todo ruim, desde que saibamos aprender com elas.
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