domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 8º DOMINGO COMUM - 03.03.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – A BOCA E O CORAÇÃO – 03.03.2019

Neste 8º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão a relação existente entre o interior e o exterior da pessoa: a boca fala daquilo que o coração está cheio. E nós podemos entender com o conceito de “boca” o ser humano inteiro, porque nós nos comunicamos também com gestos e atitudes, não apenas com as palavras. Este domingo, que antecede o período quaresmal, põe em destaque uma vivência comum a todos nós, pois o nosso falar e o nosso agir estão sempre associados e, já diz o jargão popular, é mais fácil apanhar um mentiroso do que um aleijado. Sim, porque uma pessoa, cujas ações e atitudes não condizem com o seu discurso verbal, é de fato um mentiroso.

Na primeira leitura, retirada do Livro do Eclesiastes (Eclo 27, 5-8), temos o conselho dos antigos sábios de Israel: não elogies a ninguém antes de ouvi-lo falar. O título desse livro na Bíblia hebraica diz-se Qohelet e faz parte do grupo dos “escritos” (ketuvim), a terceira seção daquela Bíblia, ao lado dos livros poéticos e dos sapienciais (a primeira seção é a Torá – a lei; a segunda seção é Naviim – os profetas). Qohelet significa aquele que reúne a assembleia, aquele que ensina, o pregador. Então, este livro contém ensinamentos teóricos e práticos transmitidos ao longo de muitos séculos pelos sábios do Povo de Israel, cuja leitura era feita nas sinagogas, com o intuito de mostrar sobretudo aos jovens como deve ser conduzida a vida com sabedoria. O sábio não precisa ser aquele asceta, figura que surgiu na Idade Média e mostrava pessoas que haviam abandonado tudo e se refugiavam nos mosteiros ou mesmo em locais desertos, dedicando-se à oração e à meditação, e eram tidos como respeitáveis pelo seu ato de renúncia extrema. O Qohelet é mais modesto, procura ensinar aos jovens que não é necessário adotar condutas extremas para alcançar a sabedoria, mas que esta também pode ser encontrada nas labutas cotidianas. Exercer a própria vida com sabedoria quer dizer servir-se dos bens materiais e do conforto que o trabalho proporciona com duas condições básicas: primeira, compreender que tudo isso é dom de Deus e sempre agradecer por isso; segundo, não ser apegado a esses bens, de modo que a posse deles não seja motivo de soberba nem de desprezo dos irmãos. Em outras palavras, a sabedoria seria a expressão da fé autêntica, aquela fé que não fica presa nas palavras, mas se estende e se entrelaça com as atitudes. Por isso, diz o Qohelet, no texto de hoje, assim como o fruto revela a qualidade da árvore de onde proveio, assim a palavra revela o coração do homem. Antes de formar sua opinião acerca de alguém, ouça-o falar. Se a sua palavra for coerente com as ações que ele realiza, então trata-se de uma pessoa confiável e sábia. O conselho dos sábios de Israel, escritos na literatura sapiencial, revela-se como perene e sempre atual, corolários de um saber existencial que não está atrelado nem a uma determinada religião nem a uma determinada sociedade, mas à própria natureza da humanidade.

Coloca-se nessa mesma linha de raciocínio o ensinamento de Jesus, transmitido pelo evangelista Lucas (Lc 6, 39-45): a boca fala daquilo que o coração está cheio. Jesus encarna, na nova aliança, a figura do pregador (qohelet), do doutrinador por excelência. E diz: todo discípulo bem formado se igualará ao mestre. Se o mestre for um sábio, o discípulo assim será também. Se o mestre for um néscio, o discípulo terá o mesmo destino, porque um cego não pode guiar outro, ambos cairão no buraco. Jesus usava essa imagem do cego referindo-se aos fariseus daquele tempo. Eles eram os mestres do povo, mas eram néscios, soberbos, insensatos, por isso não conseguiam guiar o povo para a religião verdadeira. Em outra ocasião, Jesus disse (Mt 23, 4): “Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens. No entanto, eles próprios não se dispõem a levantar um só dedo para movê-los.” Eles estavam teoricamente sentados na cadeira de Moisés, ou seja, eles tinham a autoridade, no entanto, não davam o exemplo, o agir deles não era coerente com o seu discurso. Por isso, disse Jesus, façam o que eles dizem, mas não imitem o que eles fazem. Esta mesma lição se repete no texto do evangelho de Lucas da liturgia de hoje, através da imagem do cego. O farisaísmo havia transformado a Lei de Moisés num repertório de regras de conduta, com mais de 600 enunciados, quase todos proibitivos (não pode isso, não pode aquilo…), no entanto, os próprios fariseus não cumpriam esses preceitos, porém exigiam que os judeus os cumprissem. Daí o recado grosseiro de Jesus: Hipócrita, como é que consegues perceber o cisco no olho do teu irmão, mas não percebes a catarata no teu olho? Limpa primeiro o teu olho, para poderes enxergar bem, depois vai tirar o cisco do olho do irmão. E o evangelista relembra outros discursos de Jesus com o mesmo teor: a árvore boa produz bons frutos, a árvore má produz frutos ruins; não se colhem uvas de espinheiros nem figos de abrolhos. Da mesma forma, uma pessoa de coração má não poderá dar bons exemplos. Só a pessoa boa retira bons frutos do bom tesouro do seu coração.

Meus amigos, precisamos ter muito cuidado para que esse puxão de orelhas de Jesus não venha a ser aplicado a nós. Sobretudo aquelas pessoas que possuem algum tipo de liderança, essas mais do que as outras têm a obrigação de dar bons exemplos. Assim, os pais em relação aos filhos, os professores em relação aos alunos, os idosos em relação aos jovens, os líderes de qualquer natureza em relação aos seus liderados. Os sábios romanos antigos possuíam uma máxima que bem se enquadra nesse contexto e que dizia assim: Verba movent, exempla trahunt. (As palavras comovem, os exemplos arrastam). Dizer e não fazer é uma incoerência interna imperdoável. Ninguém pode arrogar em seu favor a repreensão que Jesus fez aos fariseus do seu tempo: façam o que eu digo, mas não o que eu faço. Qualquer líder que assim fizer será indigno de exercer a liderança. Será um cego guiando outro cego para caírem ambos no buraco. Ao contrário, deve aplicar-se o sempre atual ensinamento do Qohelet: a sabedoria consiste na coerência que deve existir entre o interior e o exterior da pessoa. Essa é a sabedoria milenar recolhida pelo escritor bíblico e que tem se mostrado eficaz em todos os tempos.

O apóstolo Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 15, 54-48) demonstrou saber que total coerência entre o ser humano interior e o seu exterior é uma tarefa constante e difícil, que só estará completa quando este corpo mortal se revestir da imortalidade e este ser corruptível se revestir da incorruptibilidade. Aí, então, se cumprirá a palavra da Escritura: a morte foi vencida pela vitória. Onde está, na Escritura, essa referência feita por Paulo aos Coríntios? Está no livro de Isaías, o profeta do exílio e da esperança, cap. 25, 6-8, confortando os cativos na Babilônia: “O Senhor dos Exércitos dará nesse monte uma grande festa a todos os povos… e destruirá nesse monte os vínculos que oprimem todos os povos… e destruirá a morte para sempre e enxugará as lágrimas de todos os rostos...” A profecia de Isaías é messiânica e Paulo sabia que essa profecia já havia se cumprido com Jesus Cristo, através de sua ressurreição, restando agora a cada um seguidor de Cristo fazer a sua parte, para também ter acesso aos mesmos benefícios conquistados pela redenção de Jesus. E assim ele aconselha aos cristãos corintianos: sede firmes e empenhai-vos cada vez mais na obra do Senhor, cientes de que os vossos esforços não serão em vão. Esse ensinamento de Paulo pode ser conectado com outra passagem dele, na carta aos Romanos (7, 12), onde ele confessa a dificuldade que ele próprio tem de colocar em prática o mandamento de Cristo: “a lei é espiritual, mas eu sou carnal, sufocado pelo pecado. O querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Por isso, não faço o bem que quero, mas o mal, que não quero”. Jesus sabia que não é fácil integrar o interior com o exterior do homem, mas para isso é que Deus dá a cada um a sua graça. Paulo, na sua humildade de discípulo de Cristo, não tem vergonha de confessar que ele também erra. Porém, a questão não é errar ou acertar, mas ter consciência do erro, para não repeti-lo, para aprender com ele, para perceber que somente com o auxílio da graça divina cada um pode evoluir na direção da sabedoria e da santidade.

Examinemos, portanto, atentamente como está a coerência entre a nossa boca e o nosso coração e tenhamos a humildade de admitir que estamos sempre sujeitos a falhas, mas isso não é de todo ruim, desde que saibamos aprender com elas.

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