COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – PEDRO NA BERLINDA
– 04.05.2019
Na liturgia deste terceiro domingo da
Páscoa, temos três leituras do Novo Testamento, sendo uma retirada
dos Atos e as outras duas escritas por João: a segunda leitura,
retirada do Apocalipse, e o evangelho. Neste, relembramos o episódio
em que Jesus fez Pedro confessar seu amor por ele três vezes, talvez
como uma forma de compensar a tripla negação que ele fizera naquela
noite em que Jesus foi preso. Vemos ainda, na primeira leitura, o
relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, sobre a pressão recebida
por eles naqueles dias que sucederam a paixão de Cristo, sendo
perseguidos pelos chefes dos sacerdotes e açoitados, para que não
pregassem em nome de Jesus.
Relata o escritor Lucas, em Atos (5,
27), que os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se
apresentarem ao Sumo Sacerdote. O Sinédrio era o tribunal religioso,
onde eram julgados os que infringiam a Lei. Lá, foram interrogados
sobre o porquê de estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido
proibidos de fazer isso. Estavam os sacerdotes muito irritados porque
os Apóstolos punham neles a culpa pela morte de Jesus e ganhavam
muitos seguidores entre os judeus. Mas não podendo manter os
Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular,
limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram, renovando a
proibição. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque
tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, e isso não os
impediu de continuar a sua missão de disseminar o cristianismo em
Jerusalém. Apenas para deixar referenciado, a pena de açoites era
utilizada naquela época para delitos pequenos, aquilo que atualmente
o Direito chama de delitos de menor potencial ofensivo. Por ocasião
do julgamento de Jesus, Pilatos também mandou açoitá-lo, tentando
aplacar os judeus, pois tinha a intenção de libertar Jesus depois
da surra, mas não deu certo a estratégia No caso dos Apóstolos,
deu certo e até funcionou como um incentivo para eles.
A segunda leitura é um trecho do
Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois
o texto relata várias visões que João teve quando estava
desterrado na ilha de Patmos. Numa dessas visões, ele recebeu uma
ordem: o que estás vendo, escreve num livro. Trata-se do texto mais
enigmático da Bíblia, pelo fato de usar uma linguagem
excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas
interpretações. Importa destacar que a literatura apocalíptica foi
um gênero de escrita bastante comum nos primeiros séculos do
cristianismo, embora o livro escrito por João tenha sido o único
incluído na Bíblia. Outro fato importante a ser registrado é que,
embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito
por João antes das cartas e do evangelho, que foram escritas após
ele ter sido libertado da ilha. De acordo com a tradição, após a
morte de Maria, mãe de Jesus, que vivia sob os cuidados de João,
ele foi viver em Éfeso, onde foi bispo daquela comunidade até a sua
morte.
O pequeno trecho do Apocalipse (5,
11-14) lido neste domingo mostra que grande parte da arte sacra
produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de
inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos
da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por
exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro
que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos, esta é uma
descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas,
cada um interpretando à sua maneira. E mais: as imagens dos anciãos
que se prostram e dos quatro seres vivos que diziam amém também
tiveram inúmeras reproduções. Há suposições de estudiosos que
afirmam que o Apocalipse era um texto bem mais longo, do qual foram
retirados alguns trechos mais complexos, de modo que o livro do
Apocalipse, que está na Bíblia, apresenta fragmentos do texto
original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de
sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações.
Trata-se, portanto, de um texto complexo e é assustador observar que
alguns leitores bíblicos banalizam as visões de João com
interpretações fundamentalistas e rasteiras, desconhecendo a
realidade de sua elaboração e preservação.
O texto do evangelho, também de João,
relata a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a
ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da
Galiléia. Eu fico imaginando a emoção de João ao escrever o seu
evangelho, quando já era bastante idoso, com mais de 90 anos,
recordando os fatos de sua juventude, de sua convivência com Jesus.
Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100
d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Pelo fato de
ter sido escrito bem tardiamente, o texto de João traz muitos
aperfeiçoamentos doutrinários, diferente dos outros evangelhos, que
apenas relatam fatos. Além disso, o fato de João ter sido
testemunha ocular dos acontecimentos, enquanto os outros evangelistas
sabiam apenas por ouvir dizer, faz grande diferença. Sem deixar de
mencionar que, na ocasião, os outros evangelhos já eram do
conhecimento das comunidades cristãs e João, certamente, conhecia
os seus textos. Por isso, o evangelho de João é bem mais reflexivo
e teológico.
Pois bem. João relata que alguns dos
discípulos, inclusive ele próprio, estavam na sua faina comum da
pescaria, quando Jesus apareceu. Essa narrativa denota que, após a
ressurreição de Cristo, os Apóstolos retornaram aos seus afazeres
profissionais, pescadores que eram e precisavam trabalhar para ter o
que comer. Então, Jesus foi procurá-los no seu ambiente de
trabalho, para continuar a sua catequese de preparação para a
missão de pregadores, confirmando o que ele havia ensinado antes.
Depois de passarem a noite em tentativas, sem conseguir apanhar
peixes, Jesus apareceu-lhes de manhãzinha e mandou que eles
retornassem e jogassem a rede à direita do barco, ocorrendo aí a
pesca milagrosa. De início, eles não identificaram Jesus. Foi João
que percebeu e disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já
havia fogo aceso, no qual foram assados pães e peixes, que Jesus
repartiu com eles. João não diz que Jesus comeu junto com eles.
Também nessa narrativa podemos observar que Jesus celebrou à beira
mar uma 'missa', repetindo a última ceia, sem fazer uso do vinho,
mas apenas com pães e peixes.
Na sequência dessa refeição, João
passa a relatar o episódio da tripla confissão de Pedro. Jesus
perguntou a Pedro, por três vezes seguida, se este O amava. Pedro,
na terceira vez, já estava sem jeito com a insistência de Jesus,
parecia que Ele não acreditava. Mas o objetivo de João, ao narrar
este fato, parece bastante nítido: através da tríplice pergunta,
Jesus queria resgatar a confiança de Pedro, após ter ele negado por
três vezes, na noite que antecedera a Paixão. Jesus havia predito
que Pedro o negaria por três vezes, antes que o galo cantasse.
Naquela ocasião, Jesus deu a Pedro a chance de desfazer aquele
equívoco e confessar a sua lealdade. A outra finalidade buscada por
João, ao que parece, era a de reforçar a confiança de Cristo na
liderança de Pedro sobre os demais Apóstolos. João foi o grande
baluarte de Pedro durante as pregações, sempre o acompanhava e o
assistia, porque havia entendido que o Mestre tinha expressado a
escolha de Pedro para ser o líder do grupo. A ordem de “apascentar
as ovelhas” foi desse modo entendida por João e assim ele
repassava para as comunidades primitivas o valor dessa liderança
que, naquela época, já era contestada por alguns.
Nos tempos iniciais do cristianismo, o
foco da pregação ainda estava no entorno de Jerusalém, pois os
Apóstolos tiveram como primeira meta a conquista da adesão das
comunidades de judeus. Somente algum tempo depois, com a conversão
de Paulo, teve início a pregação do evangelho nas cidades de
língua grega, onde também ocorria a dominação romana, progredindo
aos poucos até chegar a Roma, a grande capital do império. Depois
de estabelecer comunidades também em Roma, dada a importância
política e estratégica do local, Paulo levou Pedro para ser o lider
dos cristãos romanos. Pedro era, então, bispo em Antioquia, porém
Paulo havia compreendido o desejo de Cristo no mesmo sentido que João
também ensinava, ou seja, que embora fosse ele (João) o discípulo
amado, no entanto, a 'chefia' do grupo fora delegada a Pedro. A prova
de que esse entendimento não era consensual é que, anos mais tarde,
os bispos das cidades gregas não aceitaram submeter-se à autoridade
do Bispo de Roma, surgindo daí o grande cisma do ocidente, em 1054,
quando as igrejas católicas gregas formalmente romperam com a Igreja
Romana. Após mais de 900 anos, em 1964, o Papa Paulo VI teve o
primeiro encontro amistoso com o Patriarca de Constantinopla, dando
início a um processo de negociações para reunificação do
catolicismo, o que vem sendo continuado pelos Pontífices seguintes,
tarefa difícil e ainda não concluída.
Pois bem, meus amigos. Esses
testemunhos de João e de Paulo são muito importantes e nos ajudam a
compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros
séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas
para a reunião das igrejas católicas oriental e ocidental, levadas
a efeito pelos últimos Papas. Em 2013, comemorou-se o aniversário
de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador Constantino
deu a liberdade religiosa dos cristãos. A festa foi realizada em
Constantinopla, com a participação dos representantes do Vaticano,
fato bastante promissor para o avanço da união de toda a
cristandade.
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