domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - 26.05.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – PRIMEIRO CONCÍLIO – 26.05.2019



Nas leituras deste 6º domingo da Páscoa, Jesus começa a se despedir dos seus apóstolos, pois terminou a sua missão e chegou a hora de ele retornar. Então, ele diz: eu rogarei e o Pai enviará outro Paráclito, que permanecerá convosco para sempre. Constata-se aqui, mais uma vez, Jesus revelando a Trindade Santa aos apóstolos. Merece também uma referência, na leitura dos Atos dos Apóstolos, ao primeiro Concílio da Igreja, realizado em Jerusalém, onde foi discutida uma das primeiras questões doutrinárias que dividiu os cristãos: como fica a observância da Lei de Moisés diante dos ensinamentos de Cristo? Deve ser mantida ou está superada? Ora, mas Jesus disse que não veio abolir a lei, e sim cumpri-la com prefeição… assim pode ser delineada a questão dos cristãos judaizantes perante os cristãos vindos do paganismo, querendo manter a obrigatoriedade da circuncisão como condição para a salvação.

Percebe-se, assim, uma preocupação da comunidade cristã de Antioquia, conforme está descrita nos Atos (15, 1-2), primeira leitura de hoje. Paulo e Barnabé haviam fundado a igreja daquela cidade e, ao passar por lá algum tempo depois, souberan da polêmica que se instalara entre os convertidos judeus e os convertidos pagãos. Alguns judeus vindos do norte afirmavam que “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés”. Paulo e Barnabé enfrentaram aquela dificuldade e argumentaram com os dissidentes, porém sem convencê-los. A situação se tornou tão delicada que os dois preferiram levar o caso para ser decidido pelo colegiado dos Apóstolos em Jerusalém, para que não ficasse apenas no entendimento deles dois. Assim deu-se o primeiro Concílio da Igreja, para a apreciação e decisão sobre questões cruciais da doutrina, que se encontrava em processo de maturação. Muitos outros Concílios se sucederam ao longo dos séculos, sempre para tratar de questões cruciais. Naquela ocasião, a resposta foi enviada através dos porta vozes Judas e Silas, em nome da comunidade hierosolimitana: “Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.” (Atos 15, 28-29)

Esta frase necessita de uma análise gramatical mais detalhada, pois a tradução pode parecer confusa. Conferindo os textos originais grego e latino dos Atos, percebe-se que são apenas duas as exigências da Lei de Moisés que permanecem para os judeus e pagãos convertidos: 1. abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos, seja por meio de sangramento ou de sufocação, e 2. abster-se das uniões ilegítimas. Isto é, o objetivo é manter a unidade do culto cristão, que não deve ser misturado com os cultos dos deuses pagãos, esse foi o grande problema enfrentado por Moisés no passado hebraico. Em relação às uniões ilegítimas, São Jerônimo usa o termo latino “fornicatione”, que é a tradução do grego “pornéias”. Essa palavra é habitualmente relacionada com o adultério, então essa seria a segunda regra a ser mantida. Com relação à circuncisão, não deveria ser mais obrigatória, porque esse ritual de purificação individual foi totalmente superado com o sacrifício de Cristo e foi substituído pelo batismo, então a circuncisão tornou-se obsoleta nesse contexto. Aliás, sabe-se que a exigência da circuncisão, no tempo dos hebreus, tinha também como finalidade facilitar o ato humano procriador, pois com a expectativa que se fazia do nascimento do Messias, todos deviam colaborar para isso. Após a vinda de Cristo, isso também não faz mais sentido de ser mantido como obrigatório. E assim o Concílio de Jerusalém solucionou a questão dos judaizantes, referendando o ensinamento de Paulo e Barnabé.

Sabiamente, o Concílio de Jerusalém entendeu que não devia exigir dos novos cristãos nada além do necessário, ou seja, do essencial. E afirmou isso de uma forma que se tornou clássica: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não foi uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo. Essa forma de enfrentar e decidir as questões sensíveis acerca da doutrina é chamada, no vocabulário teológico, de “magistério de Igreja”, tornando-se uma das fontes da teologia, ao lado da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa foi uma grande polêmica levantada por Lutero, no século XVI, pois ele entendia que a teologia devia ter como única fonte a Bíblia (princípio da “scriptura sola”) e ainda hoje é um dos pontos de divergência mais cruciais entre os teólogos católicos e protestantes. Para os protestantes, não há tradição nem magistério.

Na segunda leitura, do Apocalipse (21, 10-14), o apóstolo João faz um interessante trocadilho com o numero doze, em relação à cidade de Jerusalém, conforme a visão que teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de junto de Deus, imagem da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra preciosíssima e estava cercada com uma alta muralha, que possuía doze portas, cada uma com o nome de uma das tribos de Israel. E esta muralha se assentava sobre doze alicerces e em cada um destes estava escrito um nome dos doze apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa imagem João nos apresenta, comparando a Jerusalém antiga com a nova, transmitindo a ideia de que a lei antiga prevalecia, simbolizada esta com as doze portas com os nomes dos filhos de Jacó, no entanto, estas portas estavam construídas sobre uma muralha dotada de doze alicerces, estes representados pelos doze apóstolos. Os doze apóstolos representam, portanto, a nova aliança, que sustenta a antiga e que lhe confere uma nova funcionalidade. A Igreja de Cristo é o alicerce desta nova aliança.

Nessa ocasião (Ap 21, 22), João faz um comentário muito significativo: não vi um templo na cidade (Nova Jerusalém), pois o seu templo é o próprio Senhor. Essa cidade também não precisa de sol nem de lua para clareá-la, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua luminária é o Cordeiro. Jesus é o novo sol, pelo qual se reflete a luz de Deus. Essa intrigante descrição de João no Apocalipse está coerente com a lição de Cristo que, ao ser interrogado sobre “onde” se deve adorar a Deus, ele disse que os verdadeiros adoradores não precisam ir a um lugar determinado, um local físico, porque Deus deve ser adorado em espírito e em verdade. E onde estiverem dois ou mais reunidos em nome de Cristo, ali está um ambiente adequado para a oração. Infelizmente, ainda há cristãos que imaginam que só se pratica a religião indo à igreja e, ao sairem de lá, esquecem que a sua prática de cristãos deve prosseguir nas ações do dia a dia. Ser cristão não é apenas rezar o terço, assistir à missa, comungar e fazer o sinal da cruz quando passa diante de um templo. A principal exigência que Cristo faz para nós é que vivamos a nossa fé nos nossos relacionamentos, nas nossas atividades laborais, na vida privada e pública. Essa cisão entre a devoção e a vivência da fé é a característica mais presente na catequese do passado e a mais difícil de ser superada na religiosidade popular. A vinculação a um local físico é a grande marca do catolicismo devocionista, tão bem representado nas romarias e movimentos de massa, mas que (ao meu ver e com todo respeito) não realiza o verdadeiro ensinamento de Cristo.

No evangelho de hoje, o evangelista João (14, 23) diz com simplicidade e clareza o que Jesus requer de seus seguidores: “'Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.” E prossegue explicando isso: “E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […] o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.” (14, 24-26). Guardar a palavra não é escondê-la numa gaveta da memória e lembrar-se de vez em quando. O guardador não é um simples custódio, aquele que detém a guarda da coisa, mas deve ser sobretudo o executor, aquele que conhece a palavra e a pratica. É isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é para isso que existe a Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores, sucessores dos apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a comunidade da fé na autêntica guarda da palavra, os alicerces da muralha, de que João fala no Apocalipse. Porém, não apenas os sucessores dos Apóstolos têm essa missão, eles fazem isso como obrigação, por delegação especial. Mas, na prática, todos os cristãos são autênticos guardadores e cumpridores do ensinamento de Cristo.

O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem trabalhado com grande esforço para tentar reverter essa prática religiosa antiquada e ainda muito forte, no meio religioso popular, estimulada e mantida pela catequese tradicional e por uma estrutura organizacional arcaica, porém muito conveniente para a hierarquia eclesiástica, pois agrada aos católicos tradicionalistas, que ainda são poderosos em nossas comunidades. Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as nossas autoridades eclesiais e todos nós, para sermos fiéis guardadores da palavra como Cristo ensinou, não daquele modo que a influência externa do poder sociopolítico a transformou e que precisa ser mudado.

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