COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – PRIMEIRO
CONCÍLIO – 26.05.2019
Nas leituras deste 6º domingo da
Páscoa, Jesus começa a se despedir dos seus apóstolos, pois
terminou a sua missão e chegou a hora de ele retornar. Então, ele
diz: eu rogarei e o Pai enviará outro Paráclito, que permanecerá
convosco para sempre. Constata-se aqui, mais uma vez, Jesus revelando
a Trindade Santa aos apóstolos. Merece também uma referência, na
leitura dos Atos dos Apóstolos, ao primeiro Concílio da Igreja,
realizado em Jerusalém, onde foi discutida uma das primeiras
questões doutrinárias que dividiu os cristãos: como fica a
observância da Lei de Moisés diante dos ensinamentos de Cristo?
Deve ser mantida ou está superada? Ora, mas Jesus disse que não
veio abolir a lei, e sim cumpri-la com prefeição… assim pode ser
delineada a questão dos cristãos judaizantes perante os cristãos
vindos do paganismo, querendo manter a obrigatoriedade da circuncisão
como condição para a salvação.
Percebe-se, assim, uma preocupação da
comunidade cristã de Antioquia, conforme está descrita nos Atos
(15, 1-2), primeira leitura de hoje. Paulo e Barnabé haviam fundado
a igreja daquela cidade e, ao passar por lá algum tempo depois,
souberan da polêmica que se instalara entre os convertidos judeus e
os convertidos pagãos. Alguns judeus vindos do norte afirmavam que
“Vós
não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a
Lei de Moisés”. Paulo
e Barnabé enfrentaram aquela dificuldade e argumentaram com os
dissidentes, porém sem convencê-los. A situação se tornou tão
delicada que os dois preferiram levar o caso para ser decidido pelo
colegiado dos Apóstolos em Jerusalém, para que não ficasse apenas
no entendimento deles dois. Assim deu-se o primeiro Concílio da
Igreja, para a apreciação e decisão sobre questões cruciais da
doutrina, que se encontrava em processo de maturação. Muitos outros
Concílios se sucederam ao longo dos séculos, sempre para tratar de
questões cruciais. Naquela ocasião, a resposta foi enviada através
dos porta vozes Judas e Silas, em nome da comunidade hierosolimitana:
“Porque
decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo,
além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas
aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões
ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.”
(Atos 15, 28-29)
Esta frase necessita de uma análise
gramatical mais detalhada, pois a tradução pode parecer confusa.
Conferindo os textos originais grego e latino dos Atos, percebe-se
que são apenas duas as exigências da Lei de Moisés que permanecem
para os judeus e pagãos convertidos: 1. abster-se das carnes
sacrificadas aos ídolos, seja por meio de sangramento ou de
sufocação, e 2. abster-se das uniões ilegítimas. Isto é, o
objetivo é manter a unidade do culto cristão, que não deve ser
misturado com os cultos dos deuses pagãos, esse foi o grande
problema enfrentado por Moisés no passado hebraico. Em relação às
uniões ilegítimas, São Jerônimo usa o termo latino
“fornicatione”, que é a tradução do grego “pornéias”.
Essa palavra é habitualmente relacionada com o adultério, então
essa seria a segunda regra a ser mantida. Com relação à
circuncisão, não deveria ser mais obrigatória, porque esse ritual
de purificação individual foi totalmente superado com o sacrifício
de Cristo e foi substituído pelo batismo, então a circuncisão
tornou-se obsoleta nesse contexto. Aliás, sabe-se que a exigência
da circuncisão, no tempo dos hebreus, tinha também como finalidade
facilitar o ato humano procriador, pois com a expectativa que se
fazia do nascimento do Messias, todos deviam colaborar para isso.
Após a vinda de Cristo, isso também não faz mais sentido de ser
mantido como obrigatório. E assim o Concílio de Jerusalém
solucionou a questão dos judaizantes, referendando o ensinamento de
Paulo e Barnabé.
Sabiamente, o Concílio de Jerusalém
entendeu que não devia exigir dos novos cristãos nada além do
necessário, ou seja, do essencial. E afirmou isso de uma forma que
se tornou clássica: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não
foi uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à
tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo.
Essa forma de enfrentar e decidir as questões sensíveis acerca da
doutrina é chamada, no vocabulário teológico, de “magistério de
Igreja”, tornando-se uma das fontes da teologia, ao lado da Sagrada
Escritura e da Tradição. Essa foi uma grande polêmica levantada
por Lutero, no século XVI, pois ele entendia que a teologia devia
ter como única fonte a Bíblia (princípio da “scriptura sola”)
e ainda hoje é um dos pontos de divergência mais cruciais entre os
teólogos católicos e protestantes. Para os protestantes, não há
tradição nem magistério.
Na segunda leitura, do Apocalipse (21,
10-14), o apóstolo João faz um interessante trocadilho com o numero
doze, em relação à cidade de Jerusalém, conforme a visão que
teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de junto de Deus, imagem
da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra preciosíssima e estava
cercada com uma alta muralha, que possuía doze portas, cada uma com
o nome de uma das tribos de Israel. E esta muralha se assentava sobre
doze alicerces e em cada um destes estava escrito um nome dos doze
apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa imagem João nos apresenta,
comparando a Jerusalém antiga com a nova, transmitindo a ideia de
que a lei antiga prevalecia, simbolizada esta com as doze portas com
os nomes dos filhos de Jacó, no entanto, estas portas estavam
construídas sobre uma muralha dotada de doze alicerces, estes
representados pelos doze apóstolos. Os doze apóstolos representam,
portanto, a nova aliança, que sustenta a antiga e que lhe confere
uma nova funcionalidade. A Igreja de Cristo é o alicerce desta nova
aliança.
Nessa ocasião (Ap 21, 22), João faz
um comentário muito significativo: não vi um templo na cidade (Nova
Jerusalém), pois o seu templo é o próprio Senhor. Essa cidade
também não precisa de sol nem de lua para clareá-la, pois a glória
de Deus é a sua luz e a sua luminária é o Cordeiro. Jesus é o
novo sol, pelo qual se reflete a luz de Deus. Essa intrigante
descrição de João no Apocalipse está coerente com a lição de
Cristo que, ao ser interrogado sobre “onde” se deve adorar a
Deus, ele disse que os verdadeiros adoradores não precisam ir a um
lugar determinado, um local físico, porque Deus deve ser adorado em
espírito e em verdade. E onde estiverem dois ou mais reunidos em
nome de Cristo, ali está um ambiente adequado para a oração.
Infelizmente, ainda há cristãos que imaginam que só se pratica a
religião indo à igreja e, ao sairem de lá, esquecem que a sua
prática de cristãos deve prosseguir nas ações do dia a dia. Ser
cristão não é apenas rezar o terço, assistir à missa, comungar e
fazer o sinal da cruz quando passa diante de um templo. A principal
exigência que Cristo faz para nós é que vivamos a nossa fé nos
nossos relacionamentos, nas nossas atividades laborais, na vida
privada e pública. Essa cisão entre a devoção e a vivência da fé
é a característica mais presente na catequese do passado e a mais
difícil de ser superada na religiosidade popular. A vinculação a
um local físico é a grande marca do catolicismo devocionista, tão
bem representado nas romarias e movimentos de massa, mas que (ao meu
ver e com todo respeito) não realiza o verdadeiro ensinamento de
Cristo.
No evangelho de hoje, o evangelista
João (14, 23) diz com simplicidade e clareza o que Jesus requer de
seus seguidores: “'Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e
nós viremos e faremos nele a nossa morada.”
E prossegue explicando isso: “E
a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […]
o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará
tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.”
(14, 24-26). Guardar a palavra não é escondê-la numa gaveta da
memória e lembrar-se de vez em quando. O guardador não é um
simples custódio, aquele que detém a guarda da coisa, mas deve ser
sobretudo o executor, aquele que conhece a palavra e a pratica. É
isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é para isso que existe a
Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores, sucessores dos
apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a comunidade da fé
na autêntica guarda da palavra, os alicerces da muralha, de que João
fala no Apocalipse. Porém, não apenas os sucessores dos Apóstolos
têm essa missão, eles fazem isso como obrigação, por delegação
especial. Mas, na prática, todos os cristãos são autênticos
guardadores e cumpridores do ensinamento de Cristo.
O Papa Francisco, desde o início de
seu pontificado, tem trabalhado com grande esforço para tentar
reverter essa prática religiosa antiquada e ainda muito forte, no
meio religioso popular, estimulada e mantida pela catequese
tradicional e por uma estrutura organizacional arcaica, porém muito
conveniente para a hierarquia eclesiástica, pois agrada aos
católicos tradicionalistas, que ainda são poderosos em nossas
comunidades. Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as nossas
autoridades eclesiais e todos nós, para sermos fiéis guardadores da
palavra como Cristo ensinou, não daquele modo que a influência
externa do poder sociopolítico a transformou e que precisa ser
mudado.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário