domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - 07.04.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – FALSIDADE X VIRTUDE – 07.04.2019



Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão um episódio narrado pelo evangelista João e bastante conhecido pelo grande público, que é o caso da mulher flagrada em adultério e que deveria ser apedrejada, destacando a sabedoria de Jesus para atropelar o preconceito e a hipocrisia dos fariseus. A prudente e corajosa atitude de Jesus, enfrentando os mestres da Lei e o povo por eles insuflado, além de demonstrar a infinita misericórdia divina, passou-lhes no rosto que certas tradições legalistas não significam cumprimento do mandamento de Deus; além do que, ao que se sabe, muitas vezes, tais acusações eram forjadas e fundadas em testemunhos de pessoas sem escrúpulo, subornadas para tal fim. Em suma, falsidade travestida de virtude.

Na primeira leitura, o projeta Isaias (43, 18) nos dirige um recado bem apropriado para esse tempo quaresmal de renovação espiritual: “'Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis? ” Pois é, será que não somos capazes de reconhecer as coisas novas que Deus nos faz constantemente? O grande acesso a diversos meios de comunicação, antes resumido ao jornal, ao rádio e à TV, possibilita uma visão muito mais ampla e detalhada da realidade, sob os mais diversos aspectos (inclusive, os falaciosos divulgados como “fake news”, que também precisam ser habilmente reconhecidos), favorecendo a uma melhor análise da realidade social. A consciência da cidadania e o exercício responsável dela faz parte da nossa vida de cristãos, independente da opção partidária que cada um possa ter. O acompanhamento dos fatos sociais e a equilibrada análise deles é uma das formas mais concretas da vivência da nossa fé em Jesus Cristo. Esse tema de Isaías foi utilizado também por Paulo naquela polêmica levantada pelos cristãos judaizantes, que queriam restabelecer a obrigação da circuncisão como complemento do batismo, ao que Paulo argumentou: deixem de olhar o passado e mirem os fatos futuros, em Cristo, Deus fez novas todas as coisas.

Na segunda leitura, da carta aos Filipenses (3, 8-14), Paulo prossegue nessa mesma linha de raciocínio, acerca das novidades, quando ele diz que perdeu tudo por causa de Cristo. O que Paulo sacrificou para aderir plenamente à missão que Cristo lhe confiou não consistiu apenas em bens e benefícios, mas no abandono de si mesmo pela causa do evangelho. Ele não tinha mais família, nem casa, nem emprego, nem salário, sua vida era viajando de um lugar para outro, a pregar o evangelho, converter pessoas e constituir novas comunidades. Paulo foi o verdadeiro herói da difusão do cristianismo na Europa, desde as comunidades gregas até Roma. A própria comunidade de Roma foi fundada por Paulo, aquela onde Pedro foi exercer sua missão episcopal posteriormente, transformando-a na Diocese base do cristianismo mundial. Pedro era antes o chefe da igreja de Antioquia, onde pela primeira vez os seguidores de Cristo foram chamados de cristãos, vindo a transferir-se para Roma a convite de Paulo, tendo em vista a grande adesão de gentios ali conseguida em resposta à sua pregação do evangelho. Paulo diz que considera lixo tudo aquilo que ele sacrificou, comparado à glória de estar unido a Cristo, em comunhão com seus sofrimentos, tornando-se semelhante a Ele na sua morte. No mesmo sentido da mensagem de Isaías, na primeira leitura, Paulo também afirma que “Uma coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus. ”(Fl 3, 13) Veremos como, de forma indireta, essa temática do esquecer o passado e olhar para a frente está também presente na leitura do evangelho.

No evangelho (Jo 8, 1-11), o apóstolo João mostra a sabedoria de Jesus ao resolver magistralmente uma autêntica enrascada em que lhe colocaram os fariseus e os mestres da lei, que estavam sempre à procura de apanhá-lo em contradição. Antes de abordar o conhecido episódio da mulher adúltera, detenhamo-nos em alguns detalhes da leitura, que são também significativos. Diz João, no início deste capítulo 8, que Jesus havia ido ao monte das Oliveiras para orar e, voltando de lá, foi direto para o templo. É interessante observarmos essa informação, porque João está testemunhando que Jesus ia frequentemente orar no monte das Oliveira, por isso Judas sabia que o encontraria lá, quando acompanhou os soldados. Essa oração noturna de Jesus, por diversas vezes referenciada nos evangelhos, inspirou os monges medievais para os ofícios divinos durante as madrugadas, costume que perdurou entre nós até os anos 60, tendo sido abandonado após as modificações litúrgicas decorrentes do Concílio Vaticano II. João diz mais que Jesus saiu de lá ainda na madrugada e foi direto para o templo, onde já encontrou pessoas, que queriam escutá-lo. Foi quando chegaram os fariseus, arrastando a mulher apanhada em adultério.

Outro ponto acessório a destacar no contexto deste episódio é o da discriminação que pesava sobre a mulher na sociedade patriarcal, muito forte e presente em todos os povos daquela época (e ainda persistente na sociedade atual), associada à hipocrisia masculina. A mulher, se fosse flagrada em adultério, deveria ser apedrejada até a morte, conforme a lei de Moisés, todavia, todos sabemos que uma mulher não pode adulterar sozinha, para isso ela devia ter uma companhia masculina. Jesus, na sua perspicácia, foi direto ao ponto crucial da problemática: se a mulher foi flagrada em adultério, o seu parceiro também o foi e bem provavelmente era um dos que estavam ali com pedras na mão, sem deixar ainda de observar que, certamente, aqueles acusadores ali agrupados já tinham também cometido adultério e estavam impunes. Quanta desfaçatez e quanta hipocrisia, quantas mulheres aquele grupo já teria apedrejado, valendo-se da cobertura que a sociedade dava para a conduta masculina. O evangelista não registrou o nome daquela mulher e, ao que eu saiba, a tradição também não traz essa informação, mas certamente, ela era uma daquelas mulheres piedosas, que acompanharam o trajeto de Cristo a caminho do calvário e choraram por Ele.

A estratégia dos fariseus e mestres da lei era poderosa e eles pensavam que haviam colocado Jesus contra a parede, deixando-o numa situação sem saída, qualquer que fosse a sua resposta. “Moisés, na lei, mandou apedrejar essas mulheres, que dizes tu?” Ora, se Jesus concordasse com isso, sua pregação sobre o amor e o perdão estaria desmoralizada e a sua palavra se tornaria sem qualquer valor, levando a sua legião de seguidores ao descrédito e inviabilizando o seu projeto do novo reino de amor. Se discordasse, seria pior ainda, pois estaria infringindo a lei de Moisés na presença de dezenas de testemunhas, e isso seria suficiente para ele ser acusado de delito legal e ser condenado no pretório. Uma cilada tão bem arquitetada só podia ser resolvida de modo favorável por alguém que possuía uma mente especial, mesmo prescindindo da natureza divina de Cristo. Ele não se abalou com a indisfarçável má-fé dos fariseus e serenamente passou a escrever no chão com o dedo. O evangelho silencia a respeito das palavras que Ele estava escrevendo. Embora a tradição afirme que seriam os pecados dos que estavam ali presentes, na minha opinião, Jesus não escrevia nada propriamente, ele fez aquele gesto como uma contra-estratégia para provocar os fariseus. Obviamente, eles não foram lá perto tentar ler o que ele escrevia, mas ficaram intimidados, curiosos. Certamente, tiveram até medo de olhar ou perguntar, pois talvez a sua intimidade estivesse ali exposta, pois embora duvidando da divindade de Jesus, eles sabiam da sua fama de realizar milagres e de ter um poder sobrenatural. Então, apenas insistiram na pergunta: o que dizes sobre isso?

Jesus percebeu nessa insistência deles um sinal de indecisão e fraqueza, a arrogância deles havia se transformado em temor e aquela pergunta reiterada foi forçada por Jesus, que já a esperava. A resposta não poderia ter sido mais magistral: façamos o seguinte: quem de vocês aí nunca cometeu nenhuma infração, pode começar a jogar pedra, porque só tem moral para reclamar dos pecados alheios aquele que não os tem. Então, diz o evangelista, Jesus se inclinou novamente e voltou a rabiscar no chão, enquanto eles foram se retirando um a um, a começar pelos mais velhos. A pobre mulher, tremendo e temendo pelo que poderia ocorrer, foi a única que não correu, bem que poderia ter fugido quando os seus acusadores se afastaram. Mas não, ela esperou pelo perdão de Cristo, ali naquele momento, ela passou por uma profunda conversão, e foi o que Jesus percebeu quando lhe disse: vai e não tornes a pecar. Isto é, esquece o passado, olha pra frente, daqui em diante farei novas todas as coisas na tua vida. O perdão de Jesus fez daquela mulher uma discípula fiel e deixou ainda mais furiosos os fariseus dissimulados. Estes nunca conseguiram compreender as “coisas novas” e o seu apego ao passado foi a sua derrota até o fim.

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