COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – FALSIDADE X
VIRTUDE – 07.04.2019
Neste 5º domingo da quaresma, a
liturgia traz para nossa reflexão um episódio narrado pelo
evangelista João e bastante conhecido pelo grande público, que é o
caso da mulher flagrada em adultério e que deveria ser apedrejada,
destacando a sabedoria de Jesus para atropelar o preconceito e a
hipocrisia dos fariseus. A prudente e corajosa atitude de Jesus,
enfrentando os mestres da Lei e o povo por eles insuflado, além de
demonstrar a infinita misericórdia divina, passou-lhes no rosto que
certas tradições legalistas não significam cumprimento do
mandamento de Deus; além do que, ao que se sabe, muitas vezes, tais
acusações eram forjadas e fundadas em testemunhos de pessoas sem
escrúpulo, subornadas para tal fim. Em suma, falsidade travestida de
virtude.
Na primeira leitura, o projeta Isaias
(43, 18) nos dirige um recado bem apropriado para esse tempo
quaresmal de renovação espiritual: “'Não
relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que
eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as
reconheceis? ”
Pois é, será que não somos capazes de reconhecer as coisas novas
que Deus nos faz constantemente? O grande acesso a diversos meios de
comunicação, antes resumido ao jornal, ao rádio e à TV,
possibilita uma visão muito mais ampla e detalhada da realidade, sob
os mais diversos aspectos (inclusive, os falaciosos divulgados como
“fake news”, que também precisam ser habilmente reconhecidos),
favorecendo a uma melhor análise da realidade social. A consciência
da cidadania e o exercício responsável dela faz parte da nossa vida
de cristãos, independente da opção partidária que cada um possa
ter. O acompanhamento dos fatos sociais e a equilibrada análise
deles é uma das formas mais concretas da vivência da nossa fé em
Jesus Cristo. Esse tema de Isaías foi utilizado também por Paulo
naquela polêmica levantada pelos cristãos judaizantes, que queriam
restabelecer a obrigação da circuncisão como complemento do
batismo, ao que Paulo argumentou: deixem de olhar o passado e mirem
os fatos futuros, em Cristo, Deus fez novas todas as coisas.
Na segunda leitura, da carta aos
Filipenses (3, 8-14), Paulo prossegue nessa mesma linha de
raciocínio, acerca das novidades, quando ele diz que perdeu tudo por
causa de Cristo. O que Paulo sacrificou para aderir plenamente à
missão que Cristo lhe confiou não consistiu apenas em bens e
benefícios, mas no abandono de si mesmo pela causa do evangelho. Ele
não tinha mais família, nem casa, nem emprego, nem salário, sua
vida era viajando de um lugar para outro, a pregar o evangelho,
converter pessoas e constituir novas comunidades. Paulo foi o
verdadeiro herói da difusão do cristianismo na Europa, desde as
comunidades gregas até Roma. A própria comunidade de Roma foi
fundada por Paulo, aquela onde Pedro foi exercer sua missão
episcopal posteriormente, transformando-a na Diocese base do
cristianismo mundial. Pedro era antes o chefe da igreja de Antioquia,
onde pela primeira vez os seguidores de Cristo foram chamados de
cristãos, vindo a transferir-se para Roma a convite de Paulo, tendo
em vista a grande adesão de gentios ali conseguida em resposta à
sua pregação do evangelho. Paulo diz que considera lixo tudo aquilo
que ele sacrificou, comparado à glória de estar unido a Cristo, em
comunhão com seus sofrimentos, tornando-se semelhante a Ele na sua
morte. No mesmo sentido da mensagem de Isaías, na primeira leitura,
Paulo também afirma que “Uma
coisa, porém, eu faço: esquecendo o que fica para trás, eu me
lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao
prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus.
”(Fl 3, 13) Veremos como, de forma indireta, essa temática do
esquecer o passado e olhar para a frente está também presente na
leitura do evangelho.
No evangelho (Jo 8, 1-11), o apóstolo
João mostra a sabedoria de Jesus ao resolver magistralmente uma
autêntica enrascada em que lhe colocaram os fariseus e os mestres da
lei, que estavam sempre à procura de apanhá-lo em contradição.
Antes de abordar o conhecido episódio da mulher adúltera,
detenhamo-nos em alguns detalhes da leitura, que são também
significativos. Diz João, no início deste capítulo 8, que Jesus
havia ido ao monte das Oliveiras para orar e, voltando de lá, foi
direto para o templo. É interessante observarmos essa informação,
porque João está testemunhando que Jesus ia frequentemente orar no
monte das Oliveira, por isso Judas sabia que o encontraria lá,
quando acompanhou os soldados. Essa oração noturna de Jesus, por
diversas vezes referenciada nos evangelhos, inspirou os monges
medievais para os ofícios divinos durante as madrugadas, costume que
perdurou entre nós até os anos 60, tendo sido abandonado após as
modificações litúrgicas decorrentes do Concílio Vaticano II. João
diz mais que Jesus saiu de lá ainda na madrugada e foi direto para o
templo, onde já encontrou pessoas, que queriam escutá-lo. Foi
quando chegaram os fariseus, arrastando a mulher apanhada em
adultério.
Outro ponto acessório a destacar no
contexto deste episódio é o da discriminação que pesava sobre a
mulher na sociedade patriarcal, muito forte e presente em todos os
povos daquela época (e ainda persistente na sociedade atual),
associada à hipocrisia masculina. A mulher, se fosse flagrada em
adultério, deveria ser apedrejada até a morte, conforme a lei de
Moisés, todavia, todos sabemos que uma mulher não pode adulterar
sozinha, para isso ela devia ter uma companhia masculina. Jesus, na
sua perspicácia, foi direto ao ponto crucial da problemática: se a
mulher foi flagrada em adultério, o seu parceiro também o foi e bem
provavelmente era um dos que estavam ali com pedras na mão, sem
deixar ainda de observar que, certamente, aqueles acusadores ali
agrupados já tinham também cometido adultério e estavam impunes.
Quanta desfaçatez e quanta hipocrisia, quantas mulheres aquele grupo
já teria apedrejado, valendo-se da cobertura que a sociedade dava
para a conduta masculina. O evangelista não registrou o nome daquela
mulher e, ao que eu saiba, a tradição também não traz essa
informação, mas certamente, ela era uma daquelas mulheres piedosas,
que acompanharam o trajeto de Cristo a caminho do calvário e
choraram por Ele.
A estratégia dos fariseus e mestres da
lei era poderosa e eles pensavam que haviam colocado Jesus contra a
parede, deixando-o numa situação sem saída, qualquer que fosse a
sua resposta. “Moisés, na lei, mandou apedrejar essas mulheres,
que dizes tu?” Ora, se Jesus concordasse com isso, sua pregação
sobre o amor e o perdão estaria desmoralizada e a sua palavra se
tornaria sem qualquer valor, levando a sua legião de seguidores ao
descrédito e inviabilizando o seu projeto do novo reino de amor. Se
discordasse, seria pior ainda, pois estaria infringindo a lei de
Moisés na presença de dezenas de testemunhas, e isso seria
suficiente para ele ser acusado de delito legal e ser condenado no
pretório. Uma cilada tão bem arquitetada só podia ser resolvida de
modo favorável por alguém que possuía uma mente especial, mesmo
prescindindo da natureza divina de Cristo. Ele não se abalou com a
indisfarçável má-fé dos fariseus e serenamente passou a escrever
no chão com o dedo. O evangelho silencia a respeito das palavras que
Ele estava escrevendo. Embora a tradição afirme que seriam os
pecados dos que estavam ali presentes, na minha opinião, Jesus não
escrevia nada propriamente, ele fez aquele gesto como uma
contra-estratégia para provocar os fariseus. Obviamente, eles não
foram lá perto tentar ler o que ele escrevia, mas ficaram
intimidados, curiosos. Certamente, tiveram até medo de olhar ou
perguntar, pois talvez a sua intimidade estivesse ali exposta, pois
embora duvidando da divindade de Jesus, eles sabiam da sua fama de
realizar milagres e de ter um poder sobrenatural. Então, apenas
insistiram na pergunta: o que dizes sobre isso?
Jesus percebeu nessa insistência deles
um sinal de indecisão e fraqueza, a arrogância deles havia se
transformado em temor e aquela pergunta reiterada foi forçada por
Jesus, que já a esperava. A resposta não poderia ter sido mais
magistral: façamos o seguinte: quem de vocês aí nunca cometeu
nenhuma infração, pode começar a jogar pedra, porque só tem moral
para reclamar dos pecados alheios aquele que não os tem. Então, diz
o evangelista, Jesus se inclinou novamente e voltou a rabiscar no
chão, enquanto eles foram se retirando um a um, a começar pelos
mais velhos. A pobre mulher, tremendo e temendo pelo que poderia
ocorrer, foi a única que não correu, bem que poderia ter fugido
quando os seus acusadores se afastaram. Mas não, ela esperou pelo
perdão de Cristo, ali naquele momento, ela passou por uma profunda
conversão, e foi o que Jesus percebeu quando lhe disse: vai e não
tornes a pecar. Isto é, esquece o passado, olha pra frente, daqui em
diante farei novas todas as coisas na tua vida. O perdão de Jesus
fez daquela mulher uma discípula fiel e deixou ainda mais furiosos
os fariseus dissimulados. Estes nunca conseguiram compreender as
“coisas novas” e o seu apego ao passado foi a sua derrota até o
fim.
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