COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – RECONCILIAR-SE
COM DEUS – 31.03.2019
Nas leituras deste 4º domingo da
quaresma, destaca-se o tema da reconciliação, presente nos vários
textos lidos, dentre eles aquela conhecida história do “filho
pródigo”, que a liturgia agora prefere chamar de “pai
misericordioso”. Vivenciando essa temática, o Papa Francisco
celebrou hoje a santa missa da Misericórdia e ele mesmo se
apresentou como penitente, passando depois a confessar alguns fiéis
presentes. O Papa tem insistido nessa temática com frequência. Para
haver reconciliação, é necessário que haja perdão, sem o que
aquela não será possível. E o perdão é a atitude mais louvável
e digna que uma pessoa humana pode ter, pois o ato de perdoar tem a
dupla função de salvar tanto o perdoado quanto quem perdoa.
Na primeira leitura, do livro de Josué
(5, 9-12), temos a narração da primeira Páscoa que os israelitas
comemoraram após adentrar na terra prometida. Javeh diz a Josué:
'Hoje
tirei de cima de vós o opróbrio do Egito',
isto é, agora vocês estão livres novamente, habitando a terra dos
vossos pais, não precisam mais temer o dominador egípcio. Após uma
passagem de quarenta anos em peregrinação pelo deserto, durante a
qual a velha geração dos israelitas sucumbiu, a reconciliação de
Javeh com o seu povo se deu, finalmente, pelas mãos de Josué,
sucessor de Moisés no comando da nova geração de israelitas, que
adentraram a terra prometida. Moisés não viveu tempo suficiente
para celebrar essa ocasião. A primeira Páscoa celebrada em Canaã
significa o cumprimento da promessa de Javeh e a renovação da
aliança. A oferenda dos primeiros frutos da terra prometida vem
selar a fidelidade de Javeh com o seu povo, que nunca deixou
faltar-lhes o alimento, nem mesmo nos dias mais árduos da vida no
deserto.
Na segunda leitura, da carta de Paulo a
Coríntios (2Cor 5, 17-21), o apóstolo lembra que, por Cristo, Deus
reconciliou o mundo com ele próprio e nos deu o ministério da
reconciliação. Esta carta foi escrita num momento difícil para a
comunidade de Corinto, envolta com a polêmica dos judaizantes
(judeus x gentios convertidos) e atormentada por adversários de
Paulo, que teimavam em manter os velhos costumes judeus, mesmo depois
da conversão. Por isso, Paulo adverte: “Se
alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho
desapareceu. Tudo agora é novo.
” (2Cor 5,7) Os velhos costumes judaicos não deviam mais ser
invocados diante da nova geração de cristãos, porque em Cristo
tudo foi reconfigurado. E de uma forma bastante contundente, ele
conclama toda a comunidade a deixar-se reconciliar com Deus. “Em
nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus”
(2Cor 5,20) para que não recebais em vão a Sua graça. A exortação
de Paulo acerca da reconciliação e do perdão se fazia necessária
porque a comunidade de Corinto havia afastado os dissidentes e não
aceitava mais a participação destes nas atividades eclesiais. Por
isso, Paulo insistia na exigência do perdão e da reconciliação
com os dissidentes ao dizer que Deus nos deu, através de Cristo, o
ministério da reconciliação. E até evitou fazer uma viagem a
Corinto, a fim de não exaltar ainda mais os ânimos, preferindo só
mandar a carta.
Na leitura do evangelho de Lucas (Lc
15, 11-32), temos a narração de uma das parábolas de Cristo mais
conhecidas, ao lado da parábola do Bom Samaritano, que é a história
do filho pródigo. Durante muito tempo, a liturgia focalizava esse
episódio reportando-se à figura do filho que esbanjou frivolamente
todos os seus bens de herança e depois voltou para a casa paterna.
Reformulando o tema, a liturgia agora mudou o foco do episódio para
a figura do pai misericordioso, que acolhe o filho irresponsável e
arrependido, e se esforça buscando a reconciliação com o irmão
mais velho, que não aceitava aquela situação.
Essa historinha contada por Jesus foi
mais um “cascudo” na cabeça dura dos fariseus, que se
consideravam (assim como o irmão mais velho da parábola) os únicos
merecedores da amizade de Javeh, porque eram os herdeiros legítimos
da tradição veterotestamentária. Como sempre, os fariseus não
entenderam a mensagem, porque estavam seguros demais dos seus méritos
e, na sua estreiteza de pensamento, não podiam admitir que os
convertidos (simbolizados na figura do irmão mais novo), povos
estranhos à aliança antiga, passassem a ter assento junto com eles
na mesa da refeição divina.
O contexto da narração se dá num
momento em que Jesus conversava com publicanos e pecadores. Para
começar, é importante lembrar que os fariseus se consideravam puros
e sem pecado, ao contrário dos publicanos, que eram pecadores
públicos. Os fariseus cumpriam rigorosamente a lei, jejuavam, davam
esmolas, iam à sinagoga nos sábados, isto é, faziam tudo como
mandava a lei de Moisés, tal como o irmão mais velho da parábola.
Embora essas práticas fossem, muitas vezes, hipócritas e
exteriorizadas, eles se consideravam pessoas exemplares e quem não
fazia isso era considerado pecador. Dentro da mentalidade judaica,
os publicanos viviam permanentemente no pecado e não tinham jeito,
ou seja, não havia como eles deixarem essa vida marginal e passarem
à condição de pessoas justas. Por isso, o simples contato com
essas pessoas, ainda que fosse para um mero aperto de mão, era
suficiente para deixar impuro quem se assim fizesse, havendo a
necessidade de fazer depois um ritual de purificação. No caso,
Jesus estava todo contaminado, porque conversava com eles.
O fato de Jesus ter comunicação com
essas pessoas pecadoras públicas era fortemente censurado pelos
fariseus e um dos motivos para que estes duvidassem da divindade de
Jesus, porque um enviado de Javeh saberia da proibição legal de ter
contato com essa gente 'imunda'. Daí que, conforme diz Lucas (15,
1), os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-los
e Jesus os recebia, e isso gerava revolta nos fariseus. Por isso,
Jesus contou-lhes a história onde o filho mais velho ficou se roendo
de ciúmes porque o irmão pecador retornou a casa depois de uma
temporada de aventuras e o pai, além de não repreendê-lo, ainda
fez uma grande festa. Neste mesmo trecho (15, 7), que foi omitido na
leitura litúrgica, Jesus justificou isso, quando disse que haverá
grande alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais
do que por noventa e nove justos que não necessitam de
perdão. Por não compreenderem e nem aceitarem essa verdade, os
fariseus terminaram perdendo a oportunidade de participar da festa
pascal promovida pelo Pai.
Vê-se, meus amigos, nessa narração
uma atitude acima de tudo preconceituosa por parte dos fariseus.
Naquela época, tanto quanto hoje, existia a praxe de rotular as
pessoas por critérios nem sempre justificáveis, mas que tinham
aprovação social tácita. Naquela época, eram os publicanos e
prostitutas. Nos dias de hoje, são as pessoas humildes, as de pouca
instrução, alguns grupos que sofrem segregação por causa da cor
ou pela opção sexual, sem falar também na discriminação que,
muitas vezes, sofrem as pessoas de outras crenças religiosas, que
são logo tachadas de hereges ou infiéis. Esses preconceitos, que
nos são repassados pelo processo de aculturação, se alojam no
nosso inconsciente e, de repente, nos surpreendemos tendo atitudes
que nós mesmos reprovamos nos outros. O comportamento de Cristo,
acolhendo a todos indistintamente, aliás, acolhendo com mais atenção
aqueles que eram os mais excluídos na sociedade farisaica, deve
servir-nos de exemplo para a nossa vida cotidiana, a fim de nos
vigiarmos para não cairmos no mesmo falso moralismo e na mesma falsa
fé dos fariseus.
Vemos também, na pedagogia paulina,
uma atitude de respeito que serve de modelo para nós, educadores de
nossos filhos ou de alunos, que é a prática da humildade. Paulo
tinha conhecimento da rebeldia de seus críticos, que viviam na
comunidade de Corinto, todavia, não se prevaleceu da sua autoridade
de apóstolo e enviado por Cristo para impor o seu pensamento. Ao
contrário, ele muito humildemente “suplicou” aos coríntios para
que se deixassem reconciliar com Deus, não ameaçou, não intimidou,
não impôs condições. Ao apelar para o ministério da
reconciliação, ele ensinou que, mesmo quando o irmão está numa
posição errônea, não se deve expor os seus defeitos nem apelar
para ameaças e castigos, como estratégia de convencimento porque,
diz ele, “em
Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens
as suas faltas”, mas
ao contrário, “aquele
que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que
nele nós nos tornemos justiça de Deus.”
(2Cor 5, 21).
Que
o Divino Mestre nos ensine sempre a humildade no trato com os irmãos,
exercitando cada vez mais e melhor o ministério da reconciliação e
do perdão.
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