COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – A FÉ UNIVERSAL
– 12.05.2019
A liturgia do 4º domingo da Páscoa
evoca a imagem do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas (Jo 10,
27). Por obra dos capuchinhos, celebra-se também a figura da Divina
Pastora, figura mariana análoga à missão pastoral de Jesus. As
primeiras leituras, uma de Atos e outra do Apocalipse, relatam a
opção dos apóstolos Paulo e Barnabé de se voltarem para a
evangelização dos gentios, dadas as enormes resistências opostas
pelos líderes judeus. Um detalhe muito importante que se retira da
leitura do evangelho de hoje é a afirmação de João, pronunciada
por Jesus: “eu e o Pai somos um”. Algumas dezenas de anos depois,
João vem recordar uma verdade revelada por Cristo e, sem a qual, a
mente humana jamais imaginaria a existência do Deus uno e trino.
O Papa disse, em uma de suas homilias,
algo que fez estremecer os ouvidos dos cristãos burocratas,
modalidade da qual o Vaticano está cheia: “O Senhor redimiu a nós
todos, a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas
católicos. Todos.” E, na sequência, ele mesmo fez uma
interpelação: “Padre… os ateus também?” E em seguida,
respondeu: “Mesmo os ateus? Todos!” Logo depois, o setor de
imprensa do Vaticano tratou de amenizar a fala do Papa, tentando
esclarecer o que não precisa ser esclarecido, pois o que ele falou é
o que Jesus Cristo realmente ensinou. O que ele quis mostrar foi que
a fé é universal e não é propriedade de uma ou outra religião.
Esse dilema foi enfrentado por Paulo e Barnabé, em Antioquia, nos
primeiros tempos do cristianismo. E o Espírito os inspirou o que
deviam fazer.
Assim se lê na primeira leitura, dos
Atos dos Apóstolos (13, 14ss), relatando a missão de Paulo e
Barnabé, em Antioquia, onde havia muitos judeus simpatizantes do
cristianismo. O sermão dos dois atraía mais fiéis do que o culto
na sinagoga, por isso a pregação
dos Apóstolos atiçou a
ira dos chefes dos sacerdotes
judeus, que não queriam ouvir falar no nome de Jesus. Obtendo apoio
das mulheres ricas e dos homens influentes do lugar, os chefes dos
judeus puseram toda a cidade contra Paulo e Barnabé, forçando-os a
fugirem para outro local. Foi quando Paulo lançou-lhes o anátema:
“'Era
preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a
rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabei que vamos
dirigir-nos aos pagãos.”
(At 13, 46) Então, os Apóstolos deixaram de insistir com os judeus
pela sua conversão ao cristianismo e passaram a pregar a Palavra aos
gentios, donde foi atribuído a Paulo o título de Apóstolos dos
gentios. Foi o ponto de partida para a fé universal.
Um detalhe interessante dessa narrativa
(At 14, 50) é quando Lucas relata que os
judeus recorreram às
mulheres ricas e religiosas, bem como aos homens influentes da cidade
para buscarem apoio a fim de expulsarem Paulo e Barnabé dali. Há
duas observações que quero fazer aqui. Primeiro, a menção das
mulheres ricas. Sabe-se que, naquela época, as mulheres eram
submissas aos maridos e, por elas mesmas, não tinham força para se
projetarem socialmente. Será que os homens influentes, referidos
pelo escritor sagrado, eram os maridos dessas mulheres ricas? Talvez
um dos objetivos do texto seja estabelecer um confronto entre as
classes sociais daquele tempo, querendo destacar que as primeiras
comunidades cristãs eram compostas por pessoas simples e mais
pobres, como que ainda denunciar que as elites judaicas e gregas
rejeitaram o cristianismo. Isso mesmo havia acontecido com a pregação
de Cristo, que sempre se dirigia à classe popular. São raros os
relatos de pessoas ricas que buscavam ouvi-lo e segui-lo, como foi o
caso de Nicodemos e de José de Arimateia. Esse fato explica também
o motivo de Paulo ter-se dedicado integralmente à pregação do
evangelho nas comunidades gregas, porque percebera que era inútil
trabalhar para a conversão dos judeus. E talvez esse fato também
explique um certo ranço de distanciamento que se verificou, durante
séculos, entre cristãos e judeus, problema que somente após o
Concílio Vaticano II começou a ser atenuado, quando o Papa Paulo VI
iniciou um movimento de aproximação com as igrejas católicas
orientais (consideradas cismáticas) e com as comunidades judaicas.
Sabemos, pelos escritos de Paulo, que
diversos judeus, residentes em cidades gregas, aderiram ao
cristianismo, apensar da influência negativa dos fariseus, então
quiseram ter uma 'prioridade' em relação aos novos cristãos de
origem grega, considerando-se eles os primeiros a quem a Palavra fora
dirigida, e assim eles deveriam ter um tratamento diferenciado. Paulo
opôs-se veementemente a isso, afirmando que, após a nova aliança
celebrada por Cristo, já não há mais diferença entre judeu e
grego, porque agora todos estão incluídos no mesmo rebanho e são
conduzidos pelo mesmo Bom Pastor. Convém sempre lembrar que foi em
decorrência desse novo direcionamento da catequese dos Apóstolos,
voltada para os não judeus, que nós brasileiros, latino americanos,
tivemos o acesso à Boa Nova cristã, na continuidade da ação
apostólica de Paulo. O cristianismo no Brasil, portanto, é uma
etapa da concretização da profecia de Jesus acerca da fé
universal.
A pregação do cristianismo aos
gentios (não judeus) está também representada no texto da segunda
leitura, retirada do Apocalipse de João: “Eu,
João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos,
povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante
do trono e do Cordeiro.”
(Ap 7, 9) Embora João tenha se mantido em território habitado por
judeus e mesmo não tendo seguido Paulo em suas pregações pelos
domínios gregos, no entanto, ele teve a mesma intuição de que o
cristianismo obteria mais sucesso entre os gentios do que entre os
judeus. E prossegue João: “Esses
são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as
suas roupas no sangue do Cordeiro.
” (Ap 7, 14) Com outras palavras, João repete o mesmo ensinamento
de Paulo a respeito da questão dos judaizantes: todos os que foram
lavados no sangue do Cordeiro pertencem ao mesmo rebanho, sem
distinção de origem. Todos passaram pela 'grande tribulação' e
saíram vitoriosos. João estava, certamente, se lembrando da
promessa de Cristo de que eles iriam ser perseguidos por causa do
nome d'Ele, mas que, ao final, sairiam vitoriosos. João foi um
exemplo de alguém que sofreu na pele inúmeras provações por causa
da pregação do evangelho. Mas ele tinha certeza de que, depois
daquela tribulação, o sangue do Cordeiro o habilitaria a receber a
recompensa. Após a provação pelo sofrimento, todos “nunca
mais terão fome, nem sede, nem os molestará o sol, nem algum calor
ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu
pastor e os conduzirá às fontes da água da vida.
” (Ap 7, 16-17)
Na parábola do bom pastor, aludida no
texto do evangelho de João, podemos vislumbrar novamente a vocação
dos gentios para terem prioridade na pregação dos Apóstolos.
Quando João reproduz as palavras de Jesus: “As
minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem.
” (Jo 10, 27), esta frase nos deixa a cogitar no porquê de não
terem os judeus escutado a voz do Bom Pastor e não o terem seguido.
Eles não eram Suas ovelhas? Ora, mas foi para eles, o povo da
promessa, que a Palavra divina foi dirigida em primeiro lugar, como
não seriam eles Suas ovelhas? Parece, meus amigos, que o problema é
o seguinte: ouvir a palavra sem escutá-la. Embora estes dois verbos
sejam gramaticalmente sinônimos, observemos bem, quantas vezes, nós
ouvimos algo e não conseguimos mentalizar aquilo? Seja porque
estamos distraídos, seja porque nos faltou interesse, seja porque
estávamos ocupados com outras coisas mais importantes naquele
momento. Deve ter sido algo semelhante que aconteceu com os judeus:
ouviram a pregação de João Batista e não a escutaram; ouviram a
pregação de Cristo e não a escutaram; ouviram a pregação dos
apóstolos e não a escutaram. Talvez estivessem com os ouvidos
ocupados com outras coisas “mais importantes”.
No final desse trecho do evangelho (Jo
10, 30), o evangelista faz uma breve afirmação, que contém um
imenso significado. Depois de dizer que não irá perder aquelas
ovelhas, porque foi o Pai quem havia lhe dado, Jesus arremata:
“porque eu e o Pai somos um”. O grande diferencial do evangelho
joanino, em relação aos outros, está nessas inserções teológicas
que João faz. Ele não se limita a narrar o fato, mas trata de
mesclar com ensinamentos doutrinários. Dizer que “eu e o Pai somos
um” significa que Jesus também é Deus, mas não um “outro”
Deus, e sim o mesmo Deus que é o Pai. Com outras palavras, aqui está
a mesma afirmação que ele colocou no prólogo do seu evangelho: no
princípio…, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus… tudo que
existe foi feito por ele e sem ele nada foi feito. Com poucas
palavras e belas imagens, João sintetiza a doutrina teológica da
trindade.
Essa verdade teológica do Deus Trino
não se encontra em nenhuma outra religião, bem como também não
está presente no Antigo Testamento. Nenhum profeta anteviu isso,
nenhum escriba antigo mencionou nada parecido. Somente a revelação
neotestamentária veio trazer essa novidade, somente a pregação de
Cristo trouxe a lume tão complexa figura, impossível de ser
imaginada e alcançada pela mente humana sozinha. O motivo pelo qual
uma tal afirmação só veio a aparecer nos textos de João significa
que somente muitos anos após a morte de Cristo, com o
desenvolvimento doutrinário da revelação contida no evangelho, foi
que os líderes cristãos começaram a entender isso. E o contato e a
influência da filosofia grega foi um recurso de grande importância
para a construção desses esclarecimentos conceituais.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário