domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - 12.05.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – A FÉ UNIVERSAL – 12.05.2019



A liturgia do 4º domingo da Páscoa evoca a imagem do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas (Jo 10, 27). Por obra dos capuchinhos, celebra-se também a figura da Divina Pastora, figura mariana análoga à missão pastoral de Jesus. As primeiras leituras, uma de Atos e outra do Apocalipse, relatam a opção dos apóstolos Paulo e Barnabé de se voltarem para a evangelização dos gentios, dadas as enormes resistências opostas pelos líderes judeus. Um detalhe muito importante que se retira da leitura do evangelho de hoje é a afirmação de João, pronunciada por Jesus: “eu e o Pai somos um”. Algumas dezenas de anos depois, João vem recordar uma verdade revelada por Cristo e, sem a qual, a mente humana jamais imaginaria a existência do Deus uno e trino.

O Papa disse, em uma de suas homilias, algo que fez estremecer os ouvidos dos cristãos burocratas, modalidade da qual o Vaticano está cheia: “O Senhor redimiu a nós todos, a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas católicos. Todos.” E, na sequência, ele mesmo fez uma interpelação: “Padre… os ateus também?” E em seguida, respondeu: “Mesmo os ateus? Todos!” Logo depois, o setor de imprensa do Vaticano tratou de amenizar a fala do Papa, tentando esclarecer o que não precisa ser esclarecido, pois o que ele falou é o que Jesus Cristo realmente ensinou. O que ele quis mostrar foi que a fé é universal e não é propriedade de uma ou outra religião. Esse dilema foi enfrentado por Paulo e Barnabé, em Antioquia, nos primeiros tempos do cristianismo. E o Espírito os inspirou o que deviam fazer.

Assim se lê na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (13, 14ss), relatando a missão de Paulo e Barnabé, em Antioquia, onde havia muitos judeus simpatizantes do cristianismo. O sermão dos dois atraía mais fiéis do que o culto na sinagoga, por isso a pregão dos Apóstolos atiçou a ira dos chefes dos sacerdotes judeus, que não queriam ouvir falar no nome de Jesus. Obtendo apoio das mulheres ricas e dos homens influentes do lugar, os chefes dos judeus puseram toda a cidade contra Paulo e Barnabé, forçando-os a fugirem para outro local. Foi quando Paulo lançou-lhes o anátema: “'Era preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabei que vamos dirigir-nos aos pagãos.” (At 13, 46) Então, os Apóstolos deixaram de insistir com os judeus pela sua conversão ao cristianismo e passaram a pregar a Palavra aos gentios, donde foi atribuído a Paulo o título de Apóstolos dos gentios. Foi o ponto de partida para a fé universal.

Um detalhe interessante dessa narrativa (At 14, 50) é quando Lucas relata que os judeus recorreram às mulheres ricas e religiosas, bem como aos homens influentes da cidade para buscarem apoio a fim de expulsarem Paulo e Barnabé dali. Há duas observações que quero fazer aqui. Primeiro, a menção das mulheres ricas. Sabe-se que, naquela época, as mulheres eram submissas aos maridos e, por elas mesmas, não tinham força para se projetarem socialmente. Será que os homens influentes, referidos pelo escritor sagrado, eram os maridos dessas mulheres ricas? Talvez um dos objetivos do texto seja estabelecer um confronto entre as classes sociais daquele tempo, querendo destacar que as primeiras comunidades cristãs eram compostas por pessoas simples e mais pobres, como que ainda denunciar que as elites judaicas e gregas rejeitaram o cristianismo. Isso mesmo havia acontecido com a pregação de Cristo, que sempre se dirigia à classe popular. São raros os relatos de pessoas ricas que buscavam ouvi-lo e segui-lo, como foi o caso de Nicodemos e de José de Arimateia. Esse fato explica também o motivo de Paulo ter-se dedicado integralmente à pregação do evangelho nas comunidades gregas, porque percebera que era inútil trabalhar para a conversão dos judeus. E talvez esse fato também explique um certo ranço de distanciamento que se verificou, durante séculos, entre cristãos e judeus, problema que somente após o Concílio Vaticano II começou a ser atenuado, quando o Papa Paulo VI iniciou um movimento de aproximação com as igrejas católicas orientais (consideradas cismáticas) e com as comunidades judaicas.

Sabemos, pelos escritos de Paulo, que diversos judeus, residentes em cidades gregas, aderiram ao cristianismo, apensar da influência negativa dos fariseus, então quiseram ter uma 'prioridade' em relação aos novos cristãos de origem grega, considerando-se eles os primeiros a quem a Palavra fora dirigida, e assim eles deveriam ter um tratamento diferenciado. Paulo opôs-se veementemente a isso, afirmando que, após a nova aliança celebrada por Cristo, já não há mais diferença entre judeu e grego, porque agora todos estão incluídos no mesmo rebanho e são conduzidos pelo mesmo Bom Pastor. Convém sempre lembrar que foi em decorrência desse novo direcionamento da catequese dos Apóstolos, voltada para os não judeus, que nós brasileiros, latino americanos, tivemos o acesso à Boa Nova cristã, na continuidade da ação apostólica de Paulo. O cristianismo no Brasil, portanto, é uma etapa da concretização da profecia de Jesus acerca da fé universal.

A pregação do cristianismo aos gentios (não judeus) está também representada no texto da segunda leitura, retirada do Apocalipse de João: “Eu, João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro.” (Ap 7, 9) Embora João tenha se mantido em território habitado por judeus e mesmo não tendo seguido Paulo em suas pregações pelos domínios gregos, no entanto, ele teve a mesma intuição de que o cristianismo obteria mais sucesso entre os gentios do que entre os judeus. E prossegue João: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. ” (Ap 7, 14) Com outras palavras, João repete o mesmo ensinamento de Paulo a respeito da questão dos judaizantes: todos os que foram lavados no sangue do Cordeiro pertencem ao mesmo rebanho, sem distinção de origem. Todos passaram pela 'grande tribulação' e saíram vitoriosos. João estava, certamente, se lembrando da promessa de Cristo de que eles iriam ser perseguidos por causa do nome d'Ele, mas que, ao final, sairiam vitoriosos. João foi um exemplo de alguém que sofreu na pele inúmeras provações por causa da pregação do evangelho. Mas ele tinha certeza de que, depois daquela tribulação, o sangue do Cordeiro o habilitaria a receber a recompensa. Após a provação pelo sofrimento, todos “nunca mais terão fome, nem sede, nem os molestará o sol, nem algum calor ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida. ” (Ap 7, 16-17)

Na parábola do bom pastor, aludida no texto do evangelho de João, podemos vislumbrar novamente a vocação dos gentios para terem prioridade na pregação dos Apóstolos. Quando João reproduz as palavras de Jesus: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. ” (Jo 10, 27), esta frase nos deixa a cogitar no porquê de não terem os judeus escutado a voz do Bom Pastor e não o terem seguido. Eles não eram Suas ovelhas? Ora, mas foi para eles, o povo da promessa, que a Palavra divina foi dirigida em primeiro lugar, como não seriam eles Suas ovelhas? Parece, meus amigos, que o problema é o seguinte: ouvir a palavra sem escutá-la. Embora estes dois verbos sejam gramaticalmente sinônimos, observemos bem, quantas vezes, nós ouvimos algo e não conseguimos mentalizar aquilo? Seja porque estamos distraídos, seja porque nos faltou interesse, seja porque estávamos ocupados com outras coisas mais importantes naquele momento. Deve ter sido algo semelhante que aconteceu com os judeus: ouviram a pregação de João Batista e não a escutaram; ouviram a pregação de Cristo e não a escutaram; ouviram a pregação dos apóstolos e não a escutaram. Talvez estivessem com os ouvidos ocupados com outras coisas “mais importantes”.

No final desse trecho do evangelho (Jo 10, 30), o evangelista faz uma breve afirmação, que contém um imenso significado. Depois de dizer que não irá perder aquelas ovelhas, porque foi o Pai quem havia lhe dado, Jesus arremata: “porque eu e o Pai somos um”. O grande diferencial do evangelho joanino, em relação aos outros, está nessas inserções teológicas que João faz. Ele não se limita a narrar o fato, mas trata de mesclar com ensinamentos doutrinários. Dizer que “eu e o Pai somos um” significa que Jesus também é Deus, mas não um “outro” Deus, e sim o mesmo Deus que é o Pai. Com outras palavras, aqui está a mesma afirmação que ele colocou no prólogo do seu evangelho: no princípio…, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus… tudo que existe foi feito por ele e sem ele nada foi feito. Com poucas palavras e belas imagens, João sintetiza a doutrina teológica da trindade.

Essa verdade teológica do Deus Trino não se encontra em nenhuma outra religião, bem como também não está presente no Antigo Testamento. Nenhum profeta anteviu isso, nenhum escriba antigo mencionou nada parecido. Somente a revelação neotestamentária veio trazer essa novidade, somente a pregação de Cristo trouxe a lume tão complexa figura, impossível de ser imaginada e alcançada pela mente humana sozinha. O motivo pelo qual uma tal afirmação só veio a aparecer nos textos de João significa que somente muitos anos após a morte de Cristo, com o desenvolvimento doutrinário da revelação contida no evangelho, foi que os líderes cristãos começaram a entender isso. E o contato e a influência da filosofia grega foi um recurso de grande importância para a construção desses esclarecimentos conceituais.

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