domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DOS RAMOS - 14.04.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – O SERVO SOFREDOR – DOMINGO DE RAMOS - 14.04.2019



A liturgia do domingo dos ramos traz uma leitura clássica da profecia de Isaías acerca do servo sofredor. É oportuno lembrar que Isaías era o profeta preferido nas citações de Cristo, quando em discussão com os fariseus referia-se à sua pessoa. É realmente desconcertante observar que, com cerca de 700 anos de antecedência dos fatos, a visão profética de Isaías tenha sido tão perfeita e fiel em relação ao que sucedeu com o Messias. Outro relato profético de grande precisão foi a profecia de Miqueias, acerca do nascimento de Jesus em Belém (Mq 5, 2). Mas os relatos de Isaías são muito mais impressionantes e com grande riqueza de detalhes.

É também oportuno mencionar que a festa da páscoa, no tempo de Cristo, era celebrada no sábado, porque este era o dia santificado para os judeus. Na condição de judeu convicto, Jesus foi diversas vezes a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Nessa vez, que ele sabia que seria a última, ele fez de propósito uma chegada diferente, montado num jumento e aclamado pela multidão. Essa entrada especial se deu em cumprimento ao preceito mosaico (Ex 12, 3), onde está escrito que Javeh mandou que o “cordeiro a ser sacrificado” seria escolhido no décimo dia daquele mês, e no décimo quarto dia, à tarde, o cordeiro seria imolado. Jesus, cordeiro de Deus, quis proceder integralmente como diz a lei de Moisés, a qual ele não veio revogar, mas cumprir. A mudança da celebração pascal para o domingo ocorreu somente por volta do século IV, quando a tradição cristã de homenagear o dia da ressurreição de Cristo passou a prevalecer. e ainda para indicar uma nova regra celebrativa, diferente dos costumes antigos dos patriarcas, pois Cristo afirmou, por diversas vezes, que viera trazer um novo mandamento, uma nova proposta religiosa, um novo estilo de adorar o Pai. Essa é a justificativa teológica oficial. Mas no meu ponto de vista pessoal, opino que foi uma deliberação imprópria, pois devia ter-se mantido a festa sabática, de acordo com a mais vetusta tradição, sem prejuízo do destaque que sempre foi dado à ressurreição de Jesus. Obviamente, a essas alturas da história ocidental, não faz mais sentido retornar ao antigo costume, todavia registro o meu voto de desacordo com essa mudança. A Páscoa já existia antes do cristianismo, pois é a festa mais antiga da humanidade e continua regida pelo calendário lunar, sendo este mais um motivo para não ter sido alterada a sua data comemorativa sabática.

Passando às leituras, a primeira, do profeta Isaías, (Is 50, 4-7) assim descreve a imagem do servo sofredor: aquele que não foge diante dos castigos, que oferece a outra face a quem lhe bateu e não se afasta diante de bofetões e cusparadas. E complementa: “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. ” O texto de São Jerônimo, traduzido literalmente, é mais enfático: por isso, expus o meu rosto como pedra duríssima, pois sei porque não ficarei desconcertado. O servo sofredor era a imagem oposta da figura do Messias esperado pelos fariseus, que o imaginavam um cavaleiro real, altivo e indomável, brandindo a espada e expulsando os romanos do território deles. Decepcionaram-se.

Temos, na segunda leitura, outro conhecido texto de Paulo à comunidade de Filipos, a sua preferida. Falando sobre o sacrifício de Cristo, diz que ele não fez da sua condição divina um privilégio para evitar os sofrimentos. Eu não gosto da tradução oficial do texto da CNBB, que usa o vocábulo “usurpação” (não fez do ser igual a Deus uma usurpação – Fl 2, 6). A meu ver, modifica totalmente o sentido da mensagem paulina. Paulo estava afirmando que Jesus sofreu realmente os castigos que lhe foram impostos, ele abriu mão de sua condição divina em preferência à condição humana, a fim de nos redimir de todos os pecados e nos dar a salvação. Havia alguns cristãos que acreditavam que Jesus não havia sofrido de verdade, pois ele era Deus e podia evitar o sofrimento, assim toda a sua paixão teria sido uma encenação de sofrimento, mas não real. Paulo afirma exatamente o oposto. Cristo não escapou do sofrimento, porque ele quis assim. Esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo (Fl 2, 7), se ele não tivesse feito assim, a sua paixão não teria valor nenhum e dela nós não aproveitaríamos. Pela sua obediência ao plano do Pai, ele foi exaltado acima de todos e assim conquistou a redenção em nosso favor. Esse é o grande mistério que os judeus até hoje não compreenderam e não aceitaram. Para os judeus atuais, Jesus foi apenas mais um profeta famoso.

Na leitura do evangelho de Lucas (22, 14), o evangelista descreve a condenação e crucifixão de Jesus, juntamente com outros dois condenados. Há um trecho interessante, que reproduz o momento em que o 'mau ladrão' com Ele crucificado, o provoca dizendo: “salvou os outros, salva agora a ti mesmo”. A resposta para esta provocação está na passagem de Isaías acima e também está explicada na carta de Paulo aos Filipenses. Se Jesus tivesse utilizado o seu poder miraculoso para se livrar da cruz, o plano do Pai teria fracassado. Daí a queixa humana de Jesus: “Pai, por que me abandonaste?” E depois, a entrega: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Jesus veio para o mundo humano a fim de cumprir a missão que o Pai lhe destinou, então não seria Ele próprio o gestor desta empreitada, e sim o Pai que O enviou. As diversas manifestações miraculosas realizadas em outras pessoas tinham como finalidade levar aquelas pessoas a acreditarem n'Ele, na Sua missão, na Sua divindade, na Sua entrega total ao cumprimento da promessa. Vejamos o grande testemunho contido nos versículos 47 e 48 do cap. 23 de Lucas: “O oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus dizendo: 'De fato! Este homem era justo!' E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para casa, batendo no peito.” O sacrifício de Cristo começou a produzir seus efeitos logo logo, de modo imediato, após o “consumatum est”. Nem foi preciso esperar a Sua miraculosa ressurreição nem a vinda do Paráclito para que os resultados pudessem ser notados.

Consta nas narrações dos evangelistas que a crucifixão de Jesus teria sido por volta da hora sexta (meio dia) e que se fizeram trevas no local até a hora nona (3 da tarde), cf. Lucas, 23, 44, quando Jesus entregou o espírito ao Pai. Especulando sobre esse fenômeno, o que teria provocado tal escuridão? Talvez um eclipse? Bem, a festa da Páscoa, desde tempos imemoriais, está sempre associada à ocorrência da primeira lua cheia da primavera (isso, para os europeus; para nós, seria a primeira lua cheia do outono). Eu nunca li nada a respeito de um provável eclipse do sol associado à morte de Cristo, mas eu arriscaria essa probabilidade, pois o evangelista Lucas é bastante cuidadoso na produção do seu texto e bastante criterioso na citação dos detalhes, portanto, essa referência a um horário de trevas não teria sido inventada. O sol parou de brilhar e a cortina do templo partiu-se ao meio. A inauguração da vida missionária de Jesus deu-se com o evento miraculoso da aparição do Espírito juntamente com a voz do Pai. A sua finalização na cruz também merecia, certamente, ser marcada com eventos miraculosos provocados na natureza, isso me parece coerente. Por outro lado, é bem verdade que os relatos dos evangelhos não podem ser entendidos como “atas” dos acontecimentos ou “reportagens” de profissionais, mas sim como relatos de testemunhas e expressões de fé das primeiras comunidades, as quais são críveis exatamente porque estão situadas temporalmente bem próximas dos fatos. Isso nos ajuda a ultrapassar dúvidas infundadas e questionamentos desnecessários. A nossa fé deve estar adiante e acima desses detalhes.

Devemos também estar cientes de que a comemoração da Páscoa não deve ter seu foco apenas na paixão de Cristo, mas sempre nos lembrarmos que os sofrimentos de Cristo são a transição para a Sua glória, pois não há como falar em ressurreição sem falar em morte, no entanto, o que deve ser ressaltado nas comemorações da semana santa há de ser muito mais a ressurreição do que a paixão. As encenações teatrais da Paixão de Cristo formam uma tradição mundial, até filmes já exploraram exaustivamente o tema, no entanto, não é esse sentimentalismo e essa consciência de culpa que deve nos servir de estímulo, e sim o resultado final disso tudo, ou seja, o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. O sacrifício de Cristo não se esgota na paixão, mas se corrobora na ressurreição. Os sofrimentos são constantes na nossa vida, mas Jesus nos ensina a não nos concentrarmos neles nem nos deixarmos sucumbir por eles, porque Ele nos deu o maior exemplo de que todo sofrimento será superado e toda morte será vencida, e o que nos coloca nesta perspectiva é a nossa fé sempre viva e produtiva. Fé sem obras não existe.

Portanto, meus amigos, vivamos e comemoremos as festividades desta semana santa dentro do espírito da verdadeira 'parasceve', isto é, a preparação para a Páscoa do Senhor, que nos conduz à verdadeira vida. E, para não perder a tradição que aprendi no Seminário, sugiro que rezemos diante do altar a jaculatória: Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum.

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