COMENTÁRIO LITÚRGICO – O SERVO SOFREDOR – DOMINGO DE RAMOS -
14.04.2019
A liturgia do domingo dos ramos traz
uma leitura clássica da profecia de Isaías acerca do servo
sofredor. É oportuno lembrar que Isaías era o profeta preferido nas
citações de Cristo, quando em discussão com os fariseus referia-se
à sua pessoa. É realmente desconcertante observar que, com cerca de
700 anos de antecedência dos fatos, a visão profética de Isaías
tenha sido tão perfeita e fiel em relação ao que sucedeu com o
Messias. Outro relato profético de grande precisão foi a profecia
de Miqueias, acerca do nascimento de Jesus em Belém (Mq 5, 2). Mas
os relatos de Isaías são muito mais impressionantes e com grande
riqueza de detalhes.
É também oportuno mencionar que a
festa da páscoa, no tempo de Cristo, era celebrada no sábado,
porque este era o dia santificado para os judeus. Na condição de
judeu convicto, Jesus foi diversas vezes a Jerusalém, para a festa
da Páscoa. Nessa vez, que ele sabia que seria a última, ele fez de
propósito uma chegada diferente, montado num jumento e aclamado pela
multidão. Essa entrada especial se deu em cumprimento ao preceito
mosaico (Ex 12, 3), onde está escrito que Javeh mandou que o
“cordeiro a ser sacrificado” seria escolhido no décimo dia
daquele mês, e no décimo quarto dia, à tarde, o cordeiro seria
imolado. Jesus, cordeiro de Deus, quis proceder integralmente como
diz a lei de Moisés, a qual ele não veio revogar, mas cumprir. A
mudança da celebração pascal para o domingo ocorreu somente por
volta do século IV, quando a tradição cristã de homenagear o dia
da ressurreição de Cristo passou a prevalecer. e ainda para indicar
uma nova regra celebrativa, diferente dos costumes antigos dos
patriarcas, pois Cristo afirmou, por diversas vezes, que viera trazer
um novo mandamento, uma nova proposta religiosa, um novo estilo de
adorar o Pai. Essa é a justificativa teológica oficial. Mas no meu
ponto de vista pessoal, opino que foi uma deliberação imprópria,
pois devia ter-se mantido a festa sabática, de acordo com a mais
vetusta tradição, sem prejuízo do destaque que sempre foi dado à
ressurreição de Jesus. Obviamente, a essas alturas da história
ocidental, não faz mais sentido retornar ao antigo costume, todavia
registro o meu voto de desacordo com essa mudança. A Páscoa já
existia antes do cristianismo, pois é a festa mais antiga da
humanidade e continua regida pelo calendário lunar, sendo este mais
um motivo para não ter sido alterada a sua data comemorativa
sabática.
Passando às leituras, a primeira, do
profeta Isaías, (Is 50, 4-7) assim descreve a imagem do servo
sofredor: aquele que não foge diante dos castigos, que oferece a
outra face a quem lhe bateu e não se afasta diante de bofetões e
cusparadas. E complementa: “o
Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o
ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não
sairei humilhado. ”
O texto de São Jerônimo, traduzido literalmente, é mais enfático:
por isso, expus o meu rosto como pedra duríssima, pois sei porque
não ficarei desconcertado. O servo sofredor era a imagem oposta da
figura do Messias esperado pelos fariseus, que o imaginavam um
cavaleiro real, altivo e indomável, brandindo a espada e expulsando
os romanos do território deles. Decepcionaram-se.
Temos, na segunda leitura, outro
conhecido texto de Paulo à comunidade de Filipos, a sua preferida.
Falando sobre o sacrifício de Cristo, diz que ele não fez da sua
condição divina um privilégio para evitar os sofrimentos. Eu não
gosto da tradução oficial do texto da CNBB, que usa o vocábulo
“usurpação” (não
fez do ser igual a Deus uma usurpação
– Fl 2, 6). A meu ver, modifica totalmente o sentido da mensagem
paulina. Paulo estava afirmando que Jesus sofreu realmente os
castigos que lhe foram impostos, ele abriu mão de sua condição
divina em preferência à condição humana, a fim de nos redimir de
todos os pecados e nos dar a salvação. Havia alguns cristãos que
acreditavam que Jesus não havia sofrido de verdade, pois ele era
Deus e podia evitar o sofrimento, assim toda a sua paixão teria sido
uma encenação de sofrimento, mas não real. Paulo afirma exatamente
o oposto. Cristo não escapou do sofrimento, porque ele quis assim.
Esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo (Fl 2, 7),
se ele não tivesse feito assim, a sua paixão não teria valor
nenhum e dela nós não aproveitaríamos. Pela sua obediência ao
plano do Pai, ele foi exaltado acima de todos e assim conquistou a
redenção em nosso favor. Esse é o grande mistério que os judeus
até hoje não compreenderam e não aceitaram. Para os judeus atuais,
Jesus foi apenas mais um profeta famoso.
Na leitura do evangelho de Lucas (22,
14), o evangelista descreve a condenação e crucifixão de Jesus,
juntamente com outros dois condenados. Há um trecho interessante,
que reproduz o momento em que o 'mau ladrão' com Ele crucificado, o
provoca dizendo: “salvou os outros, salva agora a ti mesmo”. A
resposta para esta provocação está na passagem de Isaías acima e
também está explicada na carta de Paulo aos Filipenses. Se Jesus
tivesse utilizado o seu poder miraculoso para se livrar da cruz, o
plano do Pai teria fracassado. Daí a queixa humana de Jesus: “Pai,
por que me abandonaste?” E depois, a entrega: “Pai, em tuas mãos
entrego o meu espírito”. Jesus veio para o mundo humano a fim de
cumprir a missão que o Pai lhe destinou, então não seria Ele
próprio o gestor desta empreitada, e sim o Pai que O enviou. As
diversas manifestações miraculosas realizadas em outras pessoas
tinham como finalidade levar aquelas pessoas a acreditarem n'Ele, na
Sua missão, na Sua divindade, na Sua entrega total ao cumprimento da
promessa. Vejamos o grande testemunho contido nos versículos 47 e 48
do cap. 23 de Lucas: “O
oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus
dizendo: 'De fato! Este homem era justo!' E as multidões, que tinham
acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para
casa, batendo no peito.”
O sacrifício de Cristo começou a produzir seus efeitos logo logo,
de modo imediato, após o “consumatum est”. Nem foi preciso
esperar a Sua miraculosa ressurreição nem a vinda do Paráclito
para que os resultados pudessem ser notados.
Consta nas narrações dos evangelistas
que a crucifixão de Jesus teria sido por volta da hora sexta (meio
dia) e que se fizeram trevas no local até a hora nona (3 da tarde),
cf. Lucas, 23, 44, quando Jesus entregou o espírito ao Pai.
Especulando sobre esse fenômeno, o que teria provocado tal
escuridão? Talvez um eclipse? Bem, a festa da Páscoa, desde tempos
imemoriais, está sempre associada à ocorrência da primeira lua
cheia da primavera (isso, para os europeus; para nós, seria a
primeira lua cheia do outono). Eu nunca li nada a respeito de um
provável eclipse do sol associado à morte de Cristo, mas eu
arriscaria essa probabilidade, pois o evangelista Lucas é bastante
cuidadoso na produção do seu texto e bastante criterioso na citação
dos detalhes, portanto, essa referência a um horário de trevas não
teria sido inventada. O sol parou de brilhar e a cortina do templo
partiu-se ao meio. A inauguração da vida missionária de Jesus
deu-se com o evento miraculoso da aparição do Espírito juntamente
com a voz do Pai. A sua finalização na cruz também merecia,
certamente, ser marcada com eventos miraculosos provocados na
natureza, isso me parece coerente. Por outro lado, é bem verdade que
os relatos dos evangelhos não podem ser entendidos como “atas”
dos acontecimentos ou “reportagens” de profissionais, mas sim
como relatos de testemunhas e expressões de fé das primeiras
comunidades, as quais são críveis exatamente porque estão situadas
temporalmente bem próximas dos fatos. Isso nos ajuda a ultrapassar
dúvidas infundadas e questionamentos desnecessários. A nossa fé
deve estar adiante e acima desses detalhes.
Devemos também estar cientes de que a
comemoração da Páscoa não deve ter seu foco apenas na paixão de
Cristo, mas sempre nos lembrarmos que os sofrimentos de Cristo são a
transição para a Sua glória, pois não há como falar em
ressurreição sem falar em morte, no entanto, o que deve ser
ressaltado nas comemorações da semana santa há de ser muito mais a
ressurreição do que a paixão. As encenações teatrais da Paixão
de Cristo formam uma tradição mundial, até filmes já exploraram
exaustivamente o tema, no entanto, não é esse sentimentalismo e
essa consciência de culpa que deve nos servir de estímulo, e sim o
resultado final disso tudo, ou seja, o triunfo de Cristo sobre o
pecado e a morte. O sacrifício de Cristo não se esgota na paixão,
mas se corrobora na ressurreição. Os sofrimentos são constantes na
nossa vida, mas Jesus nos ensina a não nos concentrarmos neles nem
nos deixarmos sucumbir por eles, porque Ele nos deu o maior exemplo
de que todo sofrimento será superado e toda morte será vencida, e o
que nos coloca nesta perspectiva é a nossa fé sempre viva e
produtiva. Fé sem obras não existe.
Portanto, meus amigos, vivamos e
comemoremos as festividades desta semana santa dentro do espírito da
verdadeira 'parasceve', isto é, a preparação para a Páscoa do
Senhor, que nos conduz à verdadeira vida. E, para não perder a
tradição que aprendi no Seminário, sugiro que rezemos diante do
altar a jaculatória: Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi quia
per sanctam crucem tuam redemisti mundum.
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