COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – MANDATUM NOVUM
18.05.2019
Na liturgia deste 5º domingo da
Páscoa, o apóstolo João nos traz um tema que é central para todo
o cristianismo: o novo mandamento de Jesus – amai-vos uns aos
outros como eu vos amei. O povo hebreu já conhecia os mandamentos da
Lei desde Moisés, mas João ensina que Jesus veio aperfeiçoar os
antigos mandamentos e resumi-los em um só: o mandamento do amor. Com
isso, aquela imagem do Javeh vingativo e possessivo, irado e
violento, que era transmitida na Torah de Moisés, transmudou-se no
Deus Amor, revelado por Jesus, aquele que está sempre pronto para
perdoar.
Na primeira leitura, lemos o testemunho
de Paulo e Barnabé, em viagem missionária pelas cidades da
Capadócia, pregando aos pagãos e voltando anunciar que Deus abrira
a porta da fé a eles, já que os judeus recusaram-se a aceitar o
Messias. No domingo anterior, vimos como Paulo e Barnabé foram
maltratados em Antioquia e proibidos de pregar o nome de Jesus.
Então, partiram para pregar a palavra de Cristo aos gentios. E
assim, eles viajaram por várias cidades da região da Frigia e
Capadócia (Listra, Icônio, Pisídia, Panfília, Perge, Atália) e
retornaram a Antioquia, onde anunciaram à comunidade de cristãos
como os pagãos tinham sido receptivos à pregação do evangelho e
tinham-se engajado com entusiasmo, produzindo bons frutos. Estas
cidades situam-se, geograficamente, na região que hoje corresponde
ao território da Turquia, sendo as mais famosas Antioquia da Síria
(hoje chama-se Antakya) e Antioquia da Pisídia. Este território,
atualmente, é vinculado à Igreja Católica Ortodoxa Siríaca, com
sede em Damasco. Esta última cidade, Antioquia da Pisídia, é a
mesma referida na leitura dos Atos do domingo anterior, onde Paulo e
Barnabé foram perseguidos e expulsos. Esta foi também a primeira
viagem missionária de Paulo, houve ainda outras duas, nas quais ele
chegou a pregar o cristianismo em outras comunidades gregas,
aventurando-se até em Roma.
É importante lembrar que nem sempre
Paulo e Barnabé eram bem recebidos quando chegavam para a sua
pregação, no entanto, eles eram insistentes. Em Listra, por
exemplo, na primeira vez em que estiveram lá, pelos milagres que
realizavam, eles foram confundidos como personificações de Júpiter,
o deus principal da religião do lugar, e até chegaram a ser
homenageados por isso. Quando Paulo e Barnabé perceberam que os
listrenses estavam entendendo tudo errado do que eles pregaram,
afastaram-se das homenagens e foram explicar. Então, os judeus de
Antioquia haviam chegado à cidade em perseguição à dupla e
começaram a espalhar boatos contra eles. A população os perseguiu
e os apedrejou, arrastando-os até fora da cidade. Para eles, Paulo
havia sido dado como morto, talvez
tivesse desmaiado, perdido os sentidos, pois depois se recuperou.
Mas, apesar das perseguições, eles conseguiram obter muitas adesões
nestas cidades. E conforme está escrito em Atos 14, 23, eles
fundavam as comunidades, designavam presbíteros (ou sejam, ordenavam
sacerdotes os
lideres da comunidade) e seguiam adiante para continuar sua missão
em outras cidades.
A
segunda leitura, do livro do Apocalipse (21, 1-5), contém uma das
passagens bíblicas mais
conhecidas e interpretadas: a imagem da Nova Jerusalém, que desce do
céu, de junto de Deus. Isso aconteceu depois que o céu e a terra,
assim como o mar, foram destruídos, e apareceu um novo céu e uma
nova terra. A
Nova
Jerusalém era a própria morada de Deus entre os homens. A
Nova Jerusalém é
interpretada na teologia como
a Igreja de Cristo. Ao longo
do tempo, esta imagem foi explorada com um certo ar triunfalismo
desde os teólogos medievais, dando origem a uma espécie de
empoderamento com que os membros da hierarquia eclesiástica se viram
durante muito tempo (alguns ainda hoje assim se veem), ou seja,
interpretando esta imagem como um tipo de reino temporal ou poder
político, nos moldes como isso existia naquela época histórica.
Esqueceram, esses cristãos triunfalistas, da exortação de Paulo,
contida na primeira leitura de hoje (At 14, 22): 'É
preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de
Deus'.
Apesar da nova corrente interpretativa,
que passou a ser estimulada a
partir do Concílio Vaticano II e,
sobretudo a partir da Conferência de Puebla, em 1979 (cujo
40º aniversário está sendo comemorado),
acerca
da opção preferencial da Igreja pelos pobres, muitos eclesiásticos
e leigos ainda continuam a entender a Igreja de Cristo como um reino
temporal, muitos Bispos e Padres vivem e agem como verdadeiros
monarcas em seus territórios, em total oposição com o que Cristo
ensinou. Um exemplo disso é o modo como certos grupos católicos
tradicionalistas desdenham do
Papa Francisco,
comparando-o com a figura do papa emérito Bento, a quem consideram o
papa autêntico.
Na verdade, o papa Francisco tenta restaurar
o modelo original
da Igreja de Cristo: igreja
dos pobres para os pobres. E para não ficar apenas no discurso, ele
se reúne com os pedintes da
Praça de São Pedro oferecendo-lhes almoço e até mandou
construir banheiros públicos para uso dos moradores de rua do
Vaticano, dando-lhe mais condições humanas e dignidade.
Então, a Nova
Jerusalém, que surge dentro do contexto de um novo céu e uma nova
terra, a morada de Deus entre os homens, onde Ele enxugará toda
lágrima, a morte, a tristeza, a dor desaparecerão, conforme a visão
de João em Patmos, sempre cheia de metáforas e enigmas, deve mesmo
ser entendida como a imagem da Igreja de Cristo? Eu diria que sim e
não. Sim, porque a comunidade fundada por Cristo, a partir da
catequese distribuída aos doze apóstolos e, através deles, para
todos os crentes em todos os lugares, efetivamente desceu do céu, de
junto de Deus, formando um novo céu e uma nova terra. Não, ou ainda
não, porque essa comunidade, que forma a Igreja de Cristo, é por
enquanto só o prenúncio da “Jerusalém” verdadeira, a morada de
Deus na eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, a Nova
Jerusalém para onde nós seremos conduzidos, após passarmos pelos
muitos sofrimentos, conforme Paulo e Barnabé exortaram os
antioquienses (At 14, 22). Quando eu estudava teologia, no Seminário
da Prainha, na década de 1970, o Padre Antonio Sidra (que havia sido
capuchinho, com o nome de Frei Casemiro de Grajaú), professor de
teologia fundamental, dizia uma expressão que é clássica na
doutrina: a Igreja realiza o reino de Deus dentro da dialética do
“já e ainda não”. Desse modo, à luz da fé, a Nova Jerusalém
relatada por João no Apocalipse, já está aqui, porém, de fato,
ela ainda não está, pois nós chegaremos lá somente quando
passarmos para a dimensão da eternidade. A Igreja de Cristo
antecipa, pela fé, as promessas que Ele fez e nos deu como garantia
o seu sublime sacrifício. Mas esta antecipação é em termos, ou
seja, na fé e na esperança, e para alcançá-la, nós precisamos
praticar a caridade, o exemplo, a solidariedade, a justiça, a união,
a fraternidade... isto é, o novo mandamento que Jesus ensinou e
praticou. Como disse o apóstolo Paulo em I Cor 13, 12: agora vemos
de maneira confusa, como num espelho embaçado, mas depois o veremos
face a face. É isso o já e ainda não, o modo como a Igreja de
Cristo prefigura a Nova Jerusalém.
No evangelho de
João (13, 31), lemos a conversa que Jesus teve com os apóstolos no
final da Santa Ceia, após aquele momento tenso em que Judas se
retirou da recinto. Os outros discípulos ficaram atônitos e sem
reação. Jesus foi acalmá-los, dizendo: chegou o momento em que o
Pai será glorificado e isso logo acontecerá. E acrescentou: “por
um pouco de tempo, ainda estou com vocês. Lembrem-se do novo
mandamento que vos dei: que vos ameis uns aos outros, assim como eu
vos amei.” Aqui está a grande novidade que Jesus veio ensinar aos
seus seguidores: o mandamento do amor mútuo, sem reserva. Aquela
figura do Javeh odioso e vingativo ficou para trás, ela foi
substituída pela figura do Pai amoroso, que não quer a morte do
pecador, mas que ele se converta e viva. Todo o evangelho de João é
um grande testemunho deste amor sem medidas, o qual está presente em
todas as narrativas. Diferentemente dos demais evangelhos, em que os
fatos são o destaque, nos escritos de João (cartas e evangelho), os
fatos são apenas o pretexto para o amor de Deus se manifestar. A
própria terminologia usada no texto reflete essa temática, como
vemos em Jo 13, 33: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou
convosco.” Nenhum dos outros evangelistas utiliza essa linguagem
intimista e afetuosa de chamar os apóstolos de “filhinhos”. O
evangelho de João transpira o amor de Deus, revelado no amor de
Cristo.
Aqui está o nosso
desafio cotidiano: cumprir o novo mandamento de Cristo, para assim
testemunhar perante a comunidade que vivemos agora o “já e ainda
não” da Nova Jerusalém, que é a nossa futura e definitiva
morada.
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