COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – A METÁFORA DAS
TENTAÇÕES – 09.03.2019
A liturgia deste 1º domingo da
quaresma põe para nossa reflexão o tema das tentações suportadas
por Jesus Cristo, logo após o batismo e antes de iniciar sua
atividade missionária. Esse tema traz de imediato a pergunta: Jesus
podia ser tentado? Teria Satanás um poder tão extraordinário, a
ponto de perturbar a paz de espírito de Jesus? Ou será que o
evangelista exagerou na narrativa, com figuras de linguagem
exacerbadas para chamar a atenção dos leitores? Nas duas primeiras
leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade:
no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de
Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.
De início, convém observar a
simbologia bíblica do número 40, visto que estamos no início da
quaresma, cuja palavra, em latim, se diz “quadragesima” e o
número 40 está em destaque tanto na leitura de Deuteronônio e
quanto no evangelho de Lucas. Dentro do contexto bíblico, o número
40 aparece com frequência e sempre antecedendo a ocorrência de um
fato muito importante. Quando o narrador inclui uma situação em que
desponta o símbolo 40, isso não significa literalmente a passagem
de 40 dias ou meses ou anos contados matematicamente, mas o tempo
oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra
grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada
no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai
da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.
Na primeira leitura (Deuteronômio, 26,
4-10), o texto traz as instruções de Moisés aos seus auxiliares,
porque ele já sabia que não chegaria até a terra prometida, apenas
a veria de longe. Possivelmente, a instrução seria para Josué, que
foi o sucessor de Moisés no comando do povo, na reta final. Por
isso, Moisés disse que, quando chegassem à terra prometida, deviam
levar ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos produzidos
naquela terra e ali professar o agradecimento de todo o povo pela
libertação da escravidão e pela condução que tiveram durante a
peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de enfrentar um sem
número de desafios físicos e espirituais, tendo o Senhor
conduzido-os sempre e constantemente perdoado as infidelidades deles.
O livro bíblico que contém essas instruções tem o título de
Deuteronômio (deuteros+nomos=segunda lei) porque se trata de um
compêndio de normas encontradas posteriormente numa escavação no
templo e que repete, em parte, as normas já contidas em outros
escritos da Torah. Este livro é um verdadeiro 'código de
legislação' hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as
prescrições e os rituais descritos. É uma verdadeira compilação
do direito hebreu, que não fazia distinção entre normas religiosas
e normas civis, porque a sua organização era um estado teocrático,
situação que ainda hoje persiste nos países da religião islâmica.
Temos na segunda leitura (Paulo a
Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a universalidade da fé
em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu ou grego, nascido na fé
ou pagão convertido – e nós podemos acrescentar: europeu ou
americano, africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com
o coração e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer
não ficará confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava
apenas no mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós.
Especificamente, Paulo tencionava solucionar aquela polêmica que
surgiu em Roma com os cristãos judaizantes em relação aos novos
cristãos convertidos do paganismo. Os judeus cristãos achavam que
só podia ser cristão quem aderisse primeiro à lei de Moisés e
fizesse a circuncisão, querendo que essa regra fosse observada pelos
cristãos convertidos de origem grega. Então, Paulo ensinou que o
batismo cristão supre e substitui todos os rituais da antiga lei
judaica. Roma, a grande metrópole na qual o cristianismo se
universalizou, era uma grande babel daquele tempo, abrigando pessoas
das mais diversas origens e nacionalidades, consequentemente, dos
mais diversos idiomas e costumes. Foi o primeiro grande desafio do
cristianismo enfrentado na pregação do evangelho para os pagãos
ou gentios, resolvido graças à intervenção oportuna e sábia de
Paulo, que fez prevalecer a sua autoridade de apóstolo para
convencer os mais reticentes.
A leitura do evangelho de Lucas (4,
1-13) repete a narração contida nos outros dois sinóticos: após
ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao
deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi tentado por Satanás.
Ora, pergunta-se: Qual o poder que Satanás teria sobre o Filho de
Deus, a ponto de desafiá-lo? Em que medida Satanás teria controle
sobre as riquezas da terra, de modo a colocar isso como um atrativo
para Jesus? Qual o conhecimento que Satanás tem da Sagrada
Escritura, de modo a utilizar citações bíblicas para tentar
convencer Jesus? Ora, com certeza temos aí figuras literárias,
simbolismos linguísticos, certo exagero de descrição com caráter
pedagógico para ilustração dos leitores. As tentações de Jesus
representam, na verdade, os 'perigos' que, para a sua natureza
divino-humana, poderiam significar as situações de extrema pressão
psicológica. Ele estava prestes a iniciar a sua missão de pregador
e devia saber controlar adequadamente o exercício do poder divino,
que ele sabia possuir. Para cumprir os desígnios do Pai e para
cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todas aquelas
provações, enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus
enfrentou diversos desafios, que para Ele seriam facilmente
resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim.
As tentações representam, na verdade, as grandes ambições que
mais seduzem os seres humanos: vaidade, poder, riqueza. Foi uma
espécie de “treinamento” que ele realizou para comportar-se
plenamente conforme a natureza humana elevada ao seu mais alto grau
de perfeição.
Então, quais foram mesmo as grandes
'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão...
tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da
riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do
orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram contra Jesus
para que Ele realizasse um milagre na presença deles, porque eles só
ouviam falar pela boca dos outros e queriam presenciar. Jesus nunca
os atendeu. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é
uma piada”, porque insistiu para Jesus fazer um 'milagrezinho' na
presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Ele nada disse. Portanto, o
“retiro espiritual” que Jesus fez antes de começar a pregar foi
também uma preparação psicológica para as dificuldades práticas
que ele teria de enfrentar. Assim, se quisermos encontrar a figura de
satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele
jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio
Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não
conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações
impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima'
numa situação de extremo perigo, até pagou pra ver, mas perdeu a
aposta. Desculpem-me, meus amigos, porque talvez alguns não
concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, as pessoas se
servem a figura de satanás para encobrir suas próprias fraquezas e
personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não
nos vêm de um agente exterior tentador, um “demônio” externo,
mas da nossa “trindade” interior, que habita no nosso
subconsciente mais recôndito: id, ego e superego (tomando emprestada
a terminologia de Freud).
Meus amigos, o filósofo austríaco
Edmund Husserl, criador da filosofia fenomenológica, tinha uma frase
que usava insistentemente: “voltemos às coisas mesmas”. Trago
esta frase para este contexto pela mensagem que ela contém. Em vez
de atribuirmos a satanás as coisas más que fazemos, vamos olhar no
espelho, encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações
ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de
assumir nossas fraquezas, pois somente assim criaremos condições de
superá-las. Foi o que Jesus fez no deserto: refletir sobre si mesmo,
sobre sua condição divina e humana, sobre a sua missão espinhosa e
dolorosa da qual ele não podia se esquivar. A literatura transformou
essa autoanálise em tentação e os subterfúgios inconscientes dele
na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora
tradicional. Quando fazemos algo do qual depois ficamos arrependidos,
não foi um satanás exterior que nos tentou, foi ação daquele
demônio que reside num canto obscuro do nosso ser mais íntimo e nós
fazemos tudo para ocultá-lo, ignorá-lo através de processos de
racionalizações das nossas próprias decisões equivocadas. Se
sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de
pecado.
Que o Mestre nos ensine sempre e nos dê
sempre força para superarmos as nossas imperfeições e frustrações.
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