domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 10.03.2019

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – A METÁFORA DAS TENTAÇÕES – 09.03.2019



A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, logo após o batismo e antes de iniciar sua atividade missionária. Esse tema traz de imediato a pergunta: Jesus podia ser tentado? Teria Satanás um poder tão extraordinário, a ponto de perturbar a paz de espírito de Jesus? Ou será que o evangelista exagerou na narrativa, com figuras de linguagem exacerbadas para chamar a atenção dos leitores? Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade: no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.

De início, convém observar a simbologia bíblica do número 40, visto que estamos no início da quaresma, cuja palavra, em latim, se diz “quadragesima” e o número 40 está em destaque tanto na leitura de Deuteronônio e quanto no evangelho de Lucas. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece com frequência e sempre antecedendo a ocorrência de um fato muito importante. Quando o narrador inclui uma situação em que desponta o símbolo 40, isso não significa literalmente a passagem de 40 dias ou meses ou anos contados matematicamente, mas o tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.

Na primeira leitura (Deuteronômio, 26, 4-10), o texto traz as instruções de Moisés aos seus auxiliares, porque ele já sabia que não chegaria até a terra prometida, apenas a veria de longe. Possivelmente, a instrução seria para Josué, que foi o sucessor de Moisés no comando do povo, na reta final. Por isso, Moisés disse que, quando chegassem à terra prometida, deviam levar ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos produzidos naquela terra e ali professar o agradecimento de todo o povo pela libertação da escravidão e pela condução que tiveram durante a peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de enfrentar um sem número de desafios físicos e espirituais, tendo o Senhor conduzido-os sempre e constantemente perdoado as infidelidades deles. O livro bíblico que contém essas instruções tem o título de Deuteronômio (deuteros+nomos=segunda lei) porque se trata de um compêndio de normas encontradas posteriormente numa escavação no templo e que repete, em parte, as normas já contidas em outros escritos da Torah. Este livro é um verdadeiro 'código de legislação' hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as prescrições e os rituais descritos. É uma verdadeira compilação do direito hebreu, que não fazia distinção entre normas religiosas e normas civis, porque a sua organização era um estado teocrático, situação que ainda hoje persiste nos países da religião islâmica.

Temos na segunda leitura (Paulo a Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a universalidade da fé em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu ou grego, nascido na fé ou pagão convertido – e nós podemos acrescentar: europeu ou americano, africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com o coração e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer não ficará confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava apenas no mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós. Especificamente, Paulo tencionava solucionar aquela polêmica que surgiu em Roma com os cristãos judaizantes em relação aos novos cristãos convertidos do paganismo. Os judeus cristãos achavam que só podia ser cristão quem aderisse primeiro à lei de Moisés e fizesse a circuncisão, querendo que essa regra fosse observada pelos cristãos convertidos de origem grega. Então, Paulo ensinou que o batismo cristão supre e substitui todos os rituais da antiga lei judaica. Roma, a grande metrópole na qual o cristianismo se universalizou, era uma grande babel daquele tempo, abrigando pessoas das mais diversas origens e nacionalidades, consequentemente, dos mais diversos idiomas e costumes. Foi o primeiro grande desafio do cristianismo enfrentado na pregação do evangelho para os pagãos ou gentios, resolvido graças à intervenção oportuna e sábia de Paulo, que fez prevalecer a sua autoridade de apóstolo para convencer os mais reticentes.

A leitura do evangelho de Lucas (4, 1-13) repete a narração contida nos outros dois sinóticos: após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi tentado por Satanás. Ora, pergunta-se: Qual o poder que Satanás teria sobre o Filho de Deus, a ponto de desafiá-lo? Em que medida Satanás teria controle sobre as riquezas da terra, de modo a colocar isso como um atrativo para Jesus? Qual o conhecimento que Satanás tem da Sagrada Escritura, de modo a utilizar citações bíblicas para tentar convencer Jesus? Ora, com certeza temos aí figuras literárias, simbolismos linguísticos, certo exagero de descrição com caráter pedagógico para ilustração dos leitores. As tentações de Jesus representam, na verdade, os 'perigos' que, para a sua natureza divino-humana, poderiam significar as situações de extrema pressão psicológica. Ele estava prestes a iniciar a sua missão de pregador e devia saber controlar adequadamente o exercício do poder divino, que ele sabia possuir. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todas aquelas provações, enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele seriam facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As tentações representam, na verdade, as grandes ambições que mais seduzem os seres humanos: vaidade, poder, riqueza. Foi uma espécie de “treinamento” que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana elevada ao seu mais alto grau de perfeição.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram contra Jesus para que Ele realizasse um milagre na presença deles, porque eles só ouviam falar pela boca dos outros e queriam presenciar. Jesus nunca os atendeu. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu para Jesus fazer um 'milagrezinho' na presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Ele nada disse. Portanto, o “retiro espiritual” que Jesus fez antes de começar a pregar foi também uma preparação psicológica para as dificuldades práticas que ele teria de enfrentar. Assim, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima' numa situação de extremo perigo, até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, porque talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, as pessoas se servem a figura de satanás para encobrir suas próprias fraquezas e personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior tentador, um “demônio” externo, mas da nossa “trindade” interior, que habita no nosso subconsciente mais recôndito: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud).

Meus amigos, o filósofo austríaco Edmund Husserl, criador da filosofia fenomenológica, tinha uma frase que usava insistentemente: “voltemos às coisas mesmas”. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela contém. Em vez de atribuirmos a satanás as coisas más que fazemos, vamos olhar no espelho, encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, pois somente assim criaremos condições de superá-las. Foi o que Jesus fez no deserto: refletir sobre si mesmo, sobre sua condição divina e humana, sobre a sua missão espinhosa e dolorosa da qual ele não podia se esquivar. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e os subterfúgios inconscientes dele na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Quando fazemos algo do qual depois ficamos arrependidos, não foi um satanás exterior que nos tentou, foi ação daquele demônio que reside num canto obscuro do nosso ser mais íntimo e nós fazemos tudo para ocultá-lo, ignorá-lo através de processos de racionalizações das nossas próprias decisões equivocadas. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.

Que o Mestre nos ensine sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas imperfeições e frustrações.

****

Nenhum comentário:

Postar um comentário